Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0073418-88.2011.26.0000

Requerente: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: Lei Municipal n. 6.114/04, modificada pela Lei Municipal n. 6.329/05

 

 

EMENTA

1.  Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 6.114, de 12 de novembro de 2004, de Marília, responsável por disciplinar a obrigatoriedade de prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras em estabelecimentos comerciais denominados supermercados, hipermercados ou similares, alterada pela Lei 6.329, de 06 de setembro de 2005, a qual modificou o inciso II do art. 4º da Lei nº 6.114/04.

2. Ao exigir dos hipermercados, supermercados e estabelecimentos similares, a presença de empacotadores, dita legislação acabou por invadir o campo de competência legislativa da União, a quem cabe legislar sobre Direito Comercial e Direito do Trabalho (art. 22, I, da CF). Restrição à livre iniciativa e à livre concorrência.

3. Parecer no sentido do acolhimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei 6.114, de 12 de novembro de 2004, alterada pela Lei 6.329, de 06 de setembro de 2005.

Colendo Órgão Especial:

 

A Colenda 6ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suscitou incidente de inconstitucionalidade da Lei 6.114, de 12 de novembro de 2004, responsável por disciplinar a obrigatoriedade de prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras em estabelecimentos comerciais denominados supermercados, hipermercados ou similares (PL 117/03 do Vereador Sydney Gobetti de Souza), alterada pela Lei 6.329, de 06 de setembro de 2005, a qual modificou o inciso II, do art. 4º, da Lei nº 6.114/04.

É o breve relato.

Como se sabe, o procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade tem por escopo, em última análise, a observância da denominada “cláusula de reserva de plenário”, prevista no art. 97 da CR/88, pela qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Essa regra define a competência funcional e absoluta do Tribunal (Pleno ou Órgão Especial), bem como o quórum mínimo para a deliberação, quando for o caso de reconhecimento de incompatibilidade entre determinado ato normativo e o texto constitucional.

Em razão disso é que o Código de Processo Civil estabelece o procedimento previsto nos seus arts. 480 a 482.

O procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade é dividido em três fases: (a) a primeira, com a manifestação do órgão colegiado fracionário, admitindo o recurso e determinando a instauração do incidente por vislumbrar a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade do ato normativo; (b) a segunda perante o Tribunal ou respectivo Órgão Especial, para exame efetivo da questão constitucional; (c) a terceira, com o retorno dos autos ao órgão fracionário, para conclusão do julgamento do recurso, com aplicação do direito à espécie.

Isso decorre expressamente do CPC, uma vez que: (a) o art. 481, caput, prevê que, se for acolhida, no órgão fracionário, a alegação de inconstitucionalidade, “será lavrado acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno”; e (b) tratar o art. 482 e §§ do procedimento relativo ao julgamento do incidente no Tribunal Pleno ou Órgão Especial.

Esse sistema estabelece, nesse caso, o julgamento como um ato complexo, na medida em que o resultado final será formado pela manifestação de vontade de diferentes órgãos, todos eles com competência funcional e absoluta: (a) primeiro, a deliberação do colegiado fracionário, imprescindível à instauração do incidente; (b) depois, a deliberação do Tribunal, que se limita a examinar a quaestio iuris consubstanciada na discussão constitucional; (c) por último, o retorno dos autos com o acórdão relativo ao incidente ao colegiado fracionário, a quem caberá concluir o julgamento.

Pelo que se pode observar, a Lei 6.114, de 12 de novembro de 2004, disciplina a obrigatoriedade de prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras em estabelecimentos comerciais denominados supermercados, hipermercados ou similares, impondo várias sanções em caso de descumprimento, consoante previsto em seu art. 4º.

Ocorre que, ao legislar sobre a matéria contida na legislação em comento, o Município de Marília acabou por invadir o campo de competência da União. Ao exigir dos hipermercados, supermercados e estabelecimentos similares, nas condições que especifica, a presença de empacotadores, dita legislação acabou por invadir o campo de competência legislativa da União, a quem cabe legislar sobre Direito Comercial e do Trabalho (art. 22, I, da CF).

Como se sabe “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local” (Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 743). Neste caso, vê-se que a exigência de contratação de empacotadores não é um problema que deva ser resolvido em um ou outro Município; antes, diz respeito ao interesse geral, sobre o qual apenas à União compete legislar.

Em verdade, a Lei de Marília não trata de matéria relativa ao direito do consumidor, ainda que reflexamente ele possa ser atingido. O que a legislação restringe é a livre iniciativa e a livre concorrência. Como leciona José Afonso da Silva, “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: RT, 1989, pp. 662/663).

 Mantida a Lei, é evidente que o Município de Marília estará –quanto à atividade econômica em questão– em desvantagem em relação a outros municípios que não adotem idêntica exigência. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de examinar legislação semelhante do Estado do Rio de Janeiro, e, à época, em sede cautelar, decidiu:

“Argüição de inconstitucionalidade de norma estadual que obriga “as organizações de supermercados e congêneres a manterem pelo menos um funcionário, por cada máquina registradora, cuja atribuição seja o acondicionamento de compras ali efetuadas” (Lei nº 1.914/91, do Rio de Janeiro). Relevância da fundamentação do pedido, deduzida perante os artigos 22, I e parágrafo único e 24, § 3º, da Constituição Federal. Perigo da demora caracterizado pelo elevado montante da multa estipulada para o caso de descumprimento da obrigação” (Adin nº 669-0, Rio de Janeiro, Rel. Min. Octavio Gallotti, decisão de 20/3/1992).

         Nem se diga que o paradigma adotado, neste caso, é a Constituição Federal. Nos termos do art. 144 da Carta Paulista, os municípios têm autonomia legislativa, mas ficam compelidos a atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual. Esse Colendo Órgão Especial tem reiteradamente aplicado tal dispositivo como suporte exclusivo e necessário para a eliminação de regras que hostilizam o texto fundamental federal. Nesse sentido, caminhou decisão relatada pelo eminente Desembargador Oliveira Ribeiro, em parte aqui transcrita:

“Além disso, é de se ver que em abono do propósito declaratório da inconstitucionalidade do artigo discrepante, a Constituição do Estado de São Paulo, sem repetir expressamente a fixação de “quorum” de dois terços previsto na Constituição da República, não deixou de especificar o seu entendimento no sentido de impor observância desta exigência, fazendo-o com clareza posto que de modo indireto.Eis o texto do seu artigo 144: “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição” (Adin nº 097.085-0/1-00, Rel. Des. Oliveira Ribeiro, j. 10/3/2004).

         O mesmo posicionamento foi adotado na decisão proferida por esse Egrégio Colegiado, na Adin nº 108.578-0/4, em que foi relator o eminente Desembargador Denser de Sá, julgada em 23/3/2005.

Enfim, a Lei examinada afronta os artigos 1º e 144 da Constituição Bandeirante. Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do acolhimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei 6.114, de 12 de novembro de 2004, responsável por disciplinar a obrigatoriedade de prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras em estabelecimentos comerciais denominados supermercados, hipermercados ou similares (PL 117/03 do Vereador Sydney Gobetti de Souza), alterada pela Lei 6.329, de 06 de setembro de 2005, a qual modificou o inciso II, do art. 4º, da Lei nº 6.114/04.

 

São Paulo, 03 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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