Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0091659-13.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: (...)

Apelada: Municipalidade de Santos

Objeto: Art. 3º, parágrafo único da Lei Complementar Municipal 350/99, de Santos

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar Municipal 350/99, de Santos, que determina, na remuneração de horas extras, a adoção, como base de cálculo, do padrão dos vencimentos dos servidores. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 7º, XVI, c.c. o art. 39, § 3º, da CR.

2)      Inexistência de inconstitucionalidade. Emprego da expressão “remuneração”, no art. 7º, XVI, da CR, no sentido impróprio, tendo em vista que esse dispositivo constitucional refere-se aos direitos dos trabalhadores regidos pela CLT.

3)      Aplicação do art. 7º, XVI, da CR aos servidores estatutários, por força do art. 39, § 3º, da CR, que exige interpretação sistemática, considerando o disposto no art. 37, XIV, da CR.

4)      Impossibilidade, ademais, de reconhecimento de inconstitucionalidade e suprimento de lacuna legislativa daí decorrente, pela atuação direta do Tribunal ao decidir. Hipótese em que o Tribunal atuaria como “legislador positivo”, o que não se mostraria legítimo. Precedentes do Col. STF e do Col. TJSP.

5)      Parecer no sentido do conhecimento e rejeição da arguição.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 13ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação 0015534-98.2010.8.26.0562, da Comarca de Santos, na sessão realizada em 30 de março de 2011, sendo relator o Desembargador Ivan Sartori.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar 350/99 do Município de Santos.

Em conformidade com o v. acórdão de fls. 72/76, a inconstitucionalidade do ato normativo estaria centrada na sua contrariedade ao art. 7º, XVI, c.c. o art. 39, § 3º, da CR/88, tendo em vista que a norma glosada determina que o cômputo de horas extras dos servidores municipais seja realizado apenas sobre o “vencimento-base”, e não sobre a sua remuneração (englobando “gratificações temporais e percentual do P.C.C.S.”).

Do voto do relator colhe-se a seguinte passagem ilustrativa da discussão:

“(...)

O art. 7º, inciso XVI, da CF/88, prevê que o trabalhador tem direito à ‘remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal’, dispositivo esse que se estende, sem ressalvas, ao funcionalismo, a teor do art. 39, § 3º, do mesmo diploma.

Note-se que aqueloutro dispositivo fala em ‘remuneração’, expressão que, por certo, abarca salário ou vencimento e todas as vantagens regularmente recebidas.

(...)

Acrescente-se ser inegável a incorporação das vantagens excluídas pela ré da base de cálculo da hora extra, nos termos, inclusive, do art. 159 do estatuto.

Nesse contexto, afigura-se inconstitucional o art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar 350/99, do Município de Santos, que limita ao vencimento a base de cálculo da gratificação por hora extraordinária de serviço, excluídas as vantagens que integram a remuneração.

De fato, se a Carta da República toma como referência a remuneração, para o pagamento de hora extra, não pode a lei externar comando diverso.

(...)

Não se aplicam à espécie, outrossim, os arts. 37, XIV, da Lei Suprema, redação da EC 19/98, e o art. 115, XVI, da Carta Bandeirante, que trazem vedação quanto ao cômputo ou acumulação de acréscimos pecuniários, porque essas disposições estão a se referir aos acréscimos pessoais ou próprios da função ou do cargo e não à hora extra, obviamente, que tem natureza eventual e transitória, além de vir tratada de forma distinta na Lei Maior, como visto.

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente de inconstitucionalidade deverá ser admitido, mas no mérito rejeitado.

A norma glosada pela Col. 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça é o parágrafo único do art. 3º da Lei Complementar Municipal 350/99, de Santos, que em conformidade com a contestação apresentada pela Municipalidade (fls. 30/v) assim dispõe:

“(...)

Art. 3º...

Parágrafo único. A gratificação de que trata o ‘caput’ deste artigo incidirá sobre o vencimento do servidor.

(...)”

A alegação de que o art. 7º, inciso XVI, combinado com o art. 39, § 3º, da CR seria o fator determinante de que no pagamento de horas de serviços extraordinários a base de cálculo da vantagem seja o total da remuneração (e não apenas o padrão dos vencimentos) ampara-se em interpretação meramente literal do dispositivo constitucional.

É cediço que a “remuneração” envolve a totalidade dos valores pagos aos servidores públicos estatutários, enquanto a referência a “vencimento” diz respeito ao padrão fixado em lei para a retribuição pecuniária de determinada categoria. É certo ainda, finalmente, que “vencimentos” (no plural) indicam o padrão somado a outras vantagens do servidor. Nesse sentido Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34. Ed., São Paulo, Malheiros, p. 488 e ss.; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19. Ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 514/515.

A expressão utilizada no art. 7º, XVI, da CR, insere-se no contexto dos direitos assegurados ao trabalhador regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, sendo ali utilizada em sentido impróprio. Parece-nos, por essa razão, equivocada sua interpretação como se tivesse o significado da acepção técnica de “remuneração”, tal como se utilizada em referência ao regime estatutário dos servidores públicos da administração direta.

Por isso, não obstante o direito à remuneração por serviços extraordinários, previsto no art. 7º, XVI, da CR, seja aplicável aos servidores públicos por força do art. 39, § 3º, da Constituição, é evidente que essa aplicação deve ocorrer dentro dos parâmetros específicos que regem o serviço público, assentados na própria Lei Maior.

Em outras palavras, é indispensável que a aplicação dos preceitos contidos no art. 7º da CR aos servidores públicos, com fundamento no art. 39, § 3º, da CR, seja sempre realizada de forma compatível com as peculiaridades inerentes ao regime jurídico de direito público e estatutário que rege o funcionalismo, e que também conta com assento constitucional.

Não há como deixar de lado, nesse particular, parâmetros da atuação da administração pública que estão assentados no art. 37 da CR.

É inevitável, com a devida vênia quanto ao entendimento adotado na Col. 13ª Câmara de Direito Público, recordar a denominada vedação ao “efeito cascata” ou “repicão”, decorrente do art. 37, XIV, da CR, por força do qual “os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores”.

Dessa forma, não pode ser aplicado aos servidores estatutários o mesmo raciocínio que se aplica aos trabalhadores celetistas, na medida em que, para estes últimos não existe a vedação contida no art. 37, XIV, da CR. E em função dessa disposição normativa, vantagens subsequentes dos servidores públicos, gratificações de qualquer natureza, remuneração extraordinária, ou mesmo os adicionais, são sempre calculadas com base em critério legal que toma como ponto de partida o padrão dos respectivos vencimentos.

Nesse sentido, confiram-se os julgados a seguir indicados do Col. STF, aplicáveis ao caso mutatis mutandis: AI 392.954-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 4-11-2003, Plenário, DJ de 5-3-2004; RE 231.361-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 18-11-2003, Segunda Turma, DJ de 12-12-2003.

Ademais, não bastasse isso, o reconhecimento da inconstitucionalidade trará como resultado a impossibilidade de pagamento de horas extraordinárias aos servidores municipais, dado o surgimento de verdadeira lacuna legislativa.

Como o Poder Judiciário, em sede de controle de constitucionalidade de normas, não pode atuar como legislador positivo, restará inviabilizado o próprio pagamento das horas extras até que seja editado ato normativo infraconstitucional no âmbito do Município estipulando tal benefício.

Em outras palavras, o reconhecimento da inconstitucionalidade criará um prejuízo ainda maior aos servidores municipais, tendo em vista a impossibilidade de suprimento da omissão por outro modo que não a via legislativa.

Anote-se, por oportuno, que no julgamento em 13.04.2011 do Incidente de Inconstitucionalidade 0018627-72.2011.8.26.000, suscitado pela 18ª Câmara de Direito Público, o Col. Órgão Especial, em decisão em que figurou como relator o desembargador Renato Nalini, por votação unânime rejeitou a arguição de inconstitucionalidade, reconhecendo a impossibilidade de atuar o Poder Judiciário como legislador positivo.

No referido precedente, ficou consignada no voto do relator, acolhendo a posição desta Procuradoria-Geral de Justiça, a seguinte passagem, aplicável à hipótese em exame mutatis mutandis:

“(...)

Para culminar, o acórdão do STF relatado pelo erudito Ministro Celso de Mello parece perfeitamente adequado à espécie:

‘Os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção. Entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional esta que lhe recusou a própria Lei Fundamental do Estado. É de acentuar, neste ponto, que, em tema de controle de constitucionalidade de atos estatais, o Poder Judiciário, os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção.’

(...)”

Essa é a razão pela qual o Col. STF há muito editou a Súmula 339, com o seguinte teor:

“(...)

Súmula 339: Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia.

(...)”

Os precedentes do Col. STF, no sentido da impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade e subsequente suprimento da lacuna normativa, em verdadeira atuação da Corte exercendo o papel de legislador positivo, são inúmeros.

Apenas a título de exemplificação, confira-se: RE 432460 ED-AgR-ED/DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010; AI 360461 AgR/MG, rel. Min. Celso de Mello, j. 06/12/2005; ADI 2554 AgR/DF, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 16/05/2002; ADI 1755/DF, rel. Min. Nelson Jobim, j. 15/10/1998.  

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da admissão do incidente, mas pela rejeição da arguição de inconstitucionalidade.

São Paulo, 17 de maio de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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