Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº.  0118027-25.2012.8.26.0000

Suscitante: Décima Quinta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: Lei Complementar n. 2.993, de 22 de dezembro de 2006 do Município de Mirassol

 

 

Parecer do Ministério Público

 

Ementa. Lei Complementar n. 2.993/06 do Município de Mirassol, que “Institui no Município de Mirassol a Taxa de Fiscalização de Licença para Funcionamento das Torres e Antenas de Transmissão e Receptação de Dados e Voz”.  Base de cálculo que corresponde a imposto – Valores fixados de acordo com a receita bruta da empresa. Violação ao art. 145, § 2º da CF e art. 160, inciso II e seu §2º, da Constituição do Estado de São Paulo. Invasão da competência legislativa privativa da União: violação ao princípio federativo.  Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

A BCP S.A, ajuizou Ação Ordinária de Anulação de Lançamento/Débito Fiscal, Com Pedido de Antecipação da Tutela, em face da Municipalidade de Mirassol, objetivando: a) a inconstitucionalidade da Lei n. 2.993, de 22 de dezembro de 2006, do Município de Mirassol; b) anulação do lançamento em face da autora, da taxa instituída por essa Lei, quer efetuado no presente exercício fiscal, quer em qualquer outro exercício posterior, impondo à ré a obrigação de não efetuar mais lançamentos dessa taxa.

A ação foi julgada procedente pela r. Sentença de fls. 97/99.

O Município de Mirassol interpôs recurso de apelação. Defendeu a constitucionalidade da norma, afirmando, em síntese, que os Municípios detêm competência suplementar prevista no art. 30 e incisos, da CF/88 e art. 78 do CTN, fls. 102/107.

 As contrarrazões foram apresentadas às fls. 122/127.

Pelo v. Acórdão de fls. 153/162, a Décima Quinta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça suspendeu o julgamento do recurso e determinou a remessa dos autos a este Colendo Colegiado para atendimento da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal.  

Eis, em síntese, o relatório.

Tem-se que é inconstitucional a legislação impugnada.

Primeiro, como bem detectado pelo V. Acórdão, o art. 2º da norma impugnada estabelece base de cálculo que corresponde a imposto, em contrariedade à proibição imposta no art. 145, § 2º da Constituição de Federal e no art. 160, inciso II e seu §2º, da Constituição do Estado de São Paulo.

Assim dispõe a norma constitucional estadual violada:

“Art. 160. Compete ao Estado instituir:

(...)

II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

§ 2º. As taxas não poderão ter base de cálculo própria dos impostos.”

A Constituição Federal, por seu turno, assim prescreve:

         “Art. 145 (...)

         § 2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.”

A lei impugnada é inconstitucional porque institui taxa cujo fato gerador é serviço público geral e indivisível e ainda contém base de cálculo própria dos impostos.

Ora, ao eleger como base de cálculo a receita bruta da pessoa jurídica, o legislador afastou-se do permissivo constitucional e enveredou pela proibição contida no art. 145, § 2º, da Constituição Federal, repetida no art. 160, § 2º, da Constituição Estadual.

É oportuno, ainda, ressalvar ser incontroverso no que tange à indivisibilidade do serviço que se quer tributar que, pela Constituição Federal, os Municípios integram a Federação e têm garantida sua autonomia, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (art. 29, CR). E essa autonomia é revelada pela competência dos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência, dentre outras (art. 30, CR).

No entanto, referida competência tributária encontra limite nas normas da Constituição Federal referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e seguintes, CR), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra matriz dos tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria).

A Constituição da República, no art. 145, ao conferir às pessoas políticas competência para que instituam impostos, taxas e contribuições de melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada  um  deles  e  vinculando o legislador ordinário.

E o inciso II, do mesmo art. 145, que traça a regra matriz das taxas - regra que é repetida no artigo 160, II, da Constituição do Estado de São Paulo -, dispõe que:

“Art. 145 - A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestado ao contribuinte ou postos a sua disposição”

Como se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa, como hipótese de incidência desse tributo, uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço público específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (cf. GERALDO ATALIBA, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2º ed., pág. 164).

E as taxas de serviço, por definição constitucional, são aquelas cobradas pelo Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.” Já serviço público, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público” (em Curso de Direito Administrativo”, 7º ed., pág. 399).

Entrementes, não é qualquer serviço público que possibilita a tributação por via de taxa, mas apenas o serviço público específico e divisível, em contraste com o serviço público geral e indivisível, este passível de tributação apenas pela via do imposto. É o que ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA, nos seguintes termos:

“Os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados “uti universi”, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados “uti singuli”. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 12.º ed., pág. 448).

Diante disso, inegável que o Município de Mirassol extrapolou os limites e parâmetros constitucionais ao instituir a cobrança de Taxa de Fiscalização de Licença para Funcionamento das Torres e Antenas de Transmissão e Recepção de Dados e Voz.

A Lei Complementar n. 2.993/2006, que “institui no Município de Mirassol a Taxa de Fiscalização de Licença para Funcionamento das Torres e Antenas de Transmissão e Recepção de Dados e Voz”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica instituída no Município de Mirassol a Taxa decorrente do efetivo exercício do poder de polícia administrativa de fiscalização de licença para o funcionamento das torres e antenas de transmissão e recepção de dados e voz, que estejam instalados nos limites do Município.

Art. 2º - O valor cobrado de cada torre ou antena de que trata o artigo anterior, será de:

§ 1º - R$ 1.000,00 (um mil reais), para pessoa jurídica que tenha auferido no ano calendário anterior ao da cobrança, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais).

§ 2º - R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais), para pessoa jurídica que tenha auferido no ano calendário anterior ao da cobrança, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).

§ 3º - R$ 6.000,00 (seis mil reais), para pessoa jurídica que tenha auferido no ano calendário anterior ao da cobrança receita bruta superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).

Art. 3º - os contribuintes da Taxa de que trata o art. 1º, serão quaisquer Pessoas Jurídicas que deram causa ao exercício de atividade ou a prática de atos sujeitos ao poder de polícia administrativo do município.

Art. 4º - A taxa será arrecada mediante carnê expedido pela Prefeitura Municipal entregue ao contribuinte, cujo pagamento deverá ocorrer até o dia 28 de fevereiro de cada ano.

§ 1º - Quando anual, para efeito de renovação da licença será arrecadada conforme definido no artigo anterior e as iniciais serão arrecadadas no ato da concessão da licença.

§ 2º - Será a Taxa, lançada de forma individual e integral ou na razão de 1/12 (um doze avos) para cada um dos meses restantes do ano, a partir da data de início das atividades.                               

Outro ponto sensível é a inconstitucionalidade que contamina a norma em tela, porque ela rompe a repartição de competências legislativas ofendendo o princípio federativo.

Com efeito, o Município não tem competência para a disciplina de assunto pertencente a outra esfera da Federação e, muito menos, para, a pretexto de suplementá-la nos limites do interesse local, dispor de modo divergente a suas disposições e, consequentemente, nulificá-las.

A Constituição do Estado de São Paulo traça os limites da competência normativa municipal por força da permissão contida no art. 29, da Constituição Federal, que, ao conferir autonomia normativa ao Município, subordina-lhe, entretanto, aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição do respectivo Estado. Daí decorre a supremacia da Constituição Estadual em relação a leis ou atos normativos locais, abarcando todos os seus preceitos reproduzidos (obrigatoriamente ou não), remissivos, imitados ou implícitos de observância compulsória (princípios sensíveis e extensíveis; normas de preordenação institucional; princípios constitucionais estabelecidos) da Constituição Federal, ou, autonomamente estabelecidos (Léo Ferreira Leoncy. Controle de constitucionalidade estadual, São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 82-94).

Um desses princípios é o princípio federativo constante também da Constituição Federal em seu art. 1º. O pacto federativo é estabelecido exatamente através da repartição de competências entre os entes federados à vista da outorga das respectivas autonomias por critérios horizontais (privativas e exclusivas), através da enumeração das competências federais e municipais ou verticais e das residuais às estaduais, ou verticais (comuns e concorrentes próprias ou impróprias) pressupondo a simultaneidade de ação de cada um deles (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., pp. 179, 189-195), como se infere dos arts. 1º, 18, 21 a 25, 29 e 30, da Constituição Federal.

Para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade da lei municipal essa infringência caracteriza violação aos arts. 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo, in verbis:

“Art. 1º. O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

A lei local impugnada exibe incompatibilidade vertical em face desses preceitos da Constituição Estadual na medida em que invadiu a esfera normativa da União prevista na partilha de competências normativas decorrente do princípio federativo - normas essas de observância compulsória por Estados e Municípios (regras de subordinação normativa) – que foram absorvidas da Constituição Federal pela Constituição Estadual e, que, portanto, limitam a atividade normativa municipal. A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que, obviamente, aplica-se aos Municípios,  já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado). Na glosa ao art. 25 da Constituição da República, que direciona as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), Manoel Gonçalves Ferreira Filho refere-se à existência das “regras de preordenação institucional”, “regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, pronunciando que:

 

 “ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa, como os arts. 37 e 39 da Constituição Federal. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções) (...) Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta ‘subordinação normativa indireta’ ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de ‘estabelecer normas gerais’ (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2°, 3° e 4°)” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, v. I, p. 197).

Ora, conforme disposto na Constituição Federal:

 

“Art. 21. Compete à União:

(...)

XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;

(...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

IV – águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão”.

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para Estados e Municípios, tanto a competência material dos serviços de telecomunicações e radiodifusão (art. 21, XI e XII, a), titularizando essa atividade como serviço público federal, quanto a competência legislativa revelada duplamente no art. 22, IV, e na expressão “nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de órgão regulador e outros aspectos institucionais”, constante da segunda parte do inciso XI do art. 21.

E a razão é muito simples. O trato da matéria, visualizada numa perspectiva abrangente e múltipla, envolve não só as telecomunicações, mas, sua conexão com relações e efeitos direta ou indiretamente dela derivados, ou seja, o impacto e a interferência em questões colaterais à execução da atividade, como segurança, meio-ambiente, saúde, tranquilidade, privacidade, proteção ao consumidor etc., demandando, por isso mesmo, uma disciplina normativa uniforme para todo território nacional e aplicável a todas as coisas e pessoas físicas ou jurídicas.

Nem se alegue a existência de interesse local ou autonomia municipal para simples disciplina do uso e ocupação do solo urbano. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência da predominância – chave-mestra para delimitação da autonomia local – na medida em que não se cinge às peculiaridades de cada comuna o estabelecimento de posturas edilícias para evitar riscos ou perigos à vida, à saúde, à segurança, decorrentes de instalações de telecomunicações, posto que em qualquer espaço do território nacional prevalece, ao contrário, a identidade de causas e efeitos. Deste modo, normas que contém ou indicam padrões ou parâmetros para uso de instalações e equipamentos dos serviços de telecomunicações, inclusive relativamente a seus reflexos a terceiros, são da órbita de competência normativa federal.

Ademais, a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações já vem sendo exercida, com a edição do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n. 4.177/62), Lei Geral de Telecomunicações (Lei n. 9.472/97), Regulamento da Agência Nacional de Telecomunicações (Decreto n. 2.338/97), Lei n. 9.691/98 e Resoluções da ANATEL, destacando a Resolução 255 de 2001, que regulamenta a arrecadação de receitas do fundo de fiscalização das telecomunicações – FISTEL.

Assim é que cabe à ANATEL a responsabilidade pelo efetivo exercício do poder de polícia sobre tal atividade, cabendo exclusivamente a ela, expedir normas e padrões quanto aos equipamentos utilizados pelas prestadoras de serviços de telecomunicações, e, ainda, expedir e extinguir licença, autorização e permissão para prestação do serviço de telecomunicações, instalação e funcionamento de equipamentos, fiscalização e aplicação de sanções.

Por fim, a instituição da taxa de funcionamento e antenas pelo Município de Mirassol configura bitributação, na medida em que a requerente já está obrigada ao pagamento de taxa de funcionamento cobrada pela ANATEL para cada uma de suas estações de rádio base instaladas no território nacional.

Em tais circunstancias, o parecer é no sentido que seja reconhecida a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.993, de 22 de dezembro de 2006, do Município de Mirassol.

                    São Paulo, 3 de outubro de 2012.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

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