Autos n. 0142749-60.2011.8.26.0000
Suscitante: Quinta
Câmara de Direito Público
Objeto da
impugnação: Lei nº 1.328, de 06 de abril de 1994, do Município de Diadema
Ementa:
1) Lei nº 1.328, de 06 de abril de 1994, do Município de Diadema, “Autoriza o
Poder Executivo a prestar garantias em contratos, convênios ou acordos
celebrados pela Companhia de Saneamento de Diadema – SANED, na forma que
especifica”; 2) Instauração de incidente determinada pelo Órgão Fracionário do
Egrégio Tribunal de Justiça, que declarou vislumbrar a inconstitucionalidade do
citado diploma legal; 3) Parecer pela inconstitucionalidade da norma.
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
Trata-se de Acórdão proferido pela Quinta
Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da
Apelação Cível n. 0159611-43.2010.8.26.0000, que suscitou a instauração de
incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos autos ao Excelso
Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal
Federal, mas sem decidir a questão da constitucionalidade da Lei nº 1.328, de
06 de abril de 1994, do Município de Diadema.
Manifestação do Colendo Órgão Fracionário
do Egrégio Tribunal de Justiça no sentido de que vislumbra a
inconstitucionalidade, por afronta o disposto no art. 160, da Constituição
Federal, “que veda a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego das
receitas tributárias, eis que o produto da arrecadação pertence à Administração
Pública”, além de privilégio a determinado credor na ordem de pagamento.
É o breve relatório.
Com a advertência de que o parecer se
restringe à questão prejudicial, o parecer é no sentido da
inconstitucionalidade do diploma legal impugnado.
Sem embargo ao fundamento apontado no V.
Acórdão para o reconhecimento da inconstitucionalidade do diploma legal
impugnado, que já seria o suficiente a tal desiderato, acrescente-se que a
Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável
ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da
análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes,
in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).
Essa autonomia consagrada aos Municípios
não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos
princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que
instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário
Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por
José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios,
dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a
Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros
Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).
A autonomia municipal se assenta em
quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei
orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos
Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante
competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração
própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso
da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas quatro capacidades, encontram-se
caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e
autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre
matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria
e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de
decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma
característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).
Com fulcro na autonomia política,
administrativa e financeira é que os Municípios estão autorizados a instituir
os tributos e demais receitas de sua competência, consoante prevê o texto
constitucional. Ou seja, tais entes arrecadam para prover as despesas com obras
e serviços públicos, sobretudo nas áreas da saúde, educação, saneamento básico,
habitação, transportes, etc., que são do estreito interesse da população local.
No entanto, a autonomia política de que
goza o Município não o permite vincular a receita proveniente da arrecadação de
impostos a órgão, fundo ou despesa, como a seguir se demonstra.
O princípio da não afetação da receita de
impostos a órgão, fundo ou despesa, denota a característica não vinculada dessa
espécie tributária (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo:
Atlas, 1998, 4ª ed., p. 74) e significa que “não pode haver mutilação das
verbas públicas. O Estado deve ter disponibilidade da massa de dinheiro
arrecadado, destinando-o a quem quiser, dentro dos parâmetros que ele próprio
elege como objetivos preferenciais” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de
Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).
Com efeito,
o princípio da não afetação se justifica “na medida em reserva ao orçamento e à
própria Administração, em sua atividade discricionária na execução da despesa
pública, espaço para determinar os gastos com os investimentos e as políticas sociais”
(Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e
Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 275), pois, “em
virtude da generalidade e da impessoalidade que haverão de presidir a
elaboração e a execução do orçamento, em obséquio, inclusive, ao postulado de
igualdade, que não poderia tolerar privilégios na destinação dos recursos
públicos, que pertencem a toda a coletividade e não a um grupo de suseranos”
(Eduardo Marcial Ferreira Jardim. Manual de Direito Financeiro e Tributário,
São Paulo: Saraiva, 1994, 2ª ed., p. 25).
Como
esclarece a literatura especializada, na atividade financeira a Administração
Pública deve ter a prerrogativa de estabelecimento de metas e prioridades e os
recursos oriundos dos impostos se destinam, via de regra, ao atendimento das
necessidades gerais, e o princípio tende a evitar leis que, vinculando receita
proveniente de impostos, prejudiquem o custeio de despesas genéricas pelo
orçamento (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de
Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., p. 348; Pinto
Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo: Saraiva, 1994, vol.
VI, p. 115), assegurando “que os recursos sejam livres e à disposição para a
realização de obras e serviços, em conformidade com as necessidades existentes
e em obediência à escala de prioridades estabelecida a partir de análise
rigorosa da situação existente” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 697).
Trata-se de
princípio constitucional de obediência obrigatória não só pela União, mas,
também, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios (STF, ADI
103-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, 03-08-1995, v.u., DJ
08-09-1995, p. 28.353), atuando como princípio sensível e norma de reprodução
obrigatória pelos Estados e Municípios.
Portanto, o
princípio da não afetação é acima de tudo uma interdição dirigida à lei, ao
processo legislativo e ao legislador, pois, como destacado pelo Ministro Celso
de Mello, “traduz vedação constitucional que incide sobre o legislador, pois
impede que se proceda, em sede meramente legislativa, à vinculação”, que “há de
ser observada pelo legislador comum, que não poderá fixar regras em sentido
diverso, ressalvadas, unicamente, as situações excepcionais previstas, de modo
expresso, no texto da própria Constituição da República” (STF, ADI-MC 2.355-PR,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-
Cuida-se,
também, de norma de direito financeiro e não de direito tributário (STF, AgR-RE
329.196-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 17-09-2002, v.u., DJ
11-10-2002, p. 42).
Ademais,
ressalta a adequada exegese constitucional que em se tratando de receita resultante
da arrecadação e participação de ICMS a sua afetação (ou vinculação) só é
admitida nas hipóteses constitucionalmente previstas (art. 167, inc. IV da CF),
que não é o caso ora em estudo.
De outra
banda, a garantia firmada também constitui em privilégio a determinado credor,
em detrimento de outros que se encontrem no mesmo pé de igualdade, revelando,
desta forma, violação aos princípios da isonomia (art. 5º, “caput” da CF) e da
impessoalidade e da moralidade, que norteiam os atos da Administração Pública,
nos termos do art. 37 da Constituição Federal, sem contar a afronta à ordem de
pagamento imposta no art. 100 da mesma Carta Magna.
Em suma, a inconstitucionalidade é
flagrante.
Em tais circunstancias, o parecer é no
sentido do acolhimento da tese da inconstitucionalidade.
São
Paulo, 13 de julho de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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