Parecer em incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0146021-62.2011.8.26.0000

Suscitante: Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 1.790, inc. II, do Código Civil 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade do art. 1.790, inc. II, do Código Civil. Dispositivo que confere, para o regime da comunhão parcial de bens, mais direitos ao companheiro sobrevivente do que se concede ao cônjuge supérstite na sucessão. Ofensa ao princípio da isonomia e contrariedade da regra com o art. 226, § 3º da Constituição Federal. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 8ª Câmara de Direito Privado, nos autos de recurso de Agravo de Instrumento.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 1790, inc. II, do Código Civil.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Consigno, entretanto, que o debate já foi encaminhado ao C. Órgão Especial nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade n. 177.115-0/2-00 e 990.10.135025-4, nos quais ofertamos parecer.

Este é breve resumo.

Para a análise da questão trazida a lume, recorda-se que, no casamento sob o regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente tem direito à meação dos bens adquiridos a título oneroso e concorre com descendentes ou ascendentes em relação aos bens particulares deixados pelo finado. Meação e sucessão não incidem, portanto, sobre o mesmo monte-mor (art. 1.829, inc. I e III, CC).

O art. 1790, inc. II, do Código Civil, objeto do presente incidente, concede à companheira e ao companheiro a participação na sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Estipula, além disso, que, concorrendo o companheiro com descendentes só do autor da herança, “tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles”.

Essa regra tem gerado perplexidade na doutrina, pois confere ao companheiro mais direito do que se atribui ao cônjuge supérstite casado sob o regime da comunhão parcial de bens, como comprova o seguinte excerto:

“Num aspecto, porém, apresenta-se vantajoso o direito sucessório do companheiro em relação ao do cônjuge viúvo. Diz com a cumulação, para o primeiro, dos direitos de meação e de herança, pois o comentado artigo 1.790 refere direito sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência, sem qualquer ressalva. Diversamente, o cônjuge sobrevivente tem direito a concorrer na herança com descendentes e ascendentes, salvo se casado com o falecido no regime da comunhão univeral ou no da separação obrigatória de bens; ou, se no regime da comunhão parcial, o autor não houver deixado bens particulares.

(...)

Parece demasia, esse favorecimento maior do companheiro em comparação ao cônjuge, pois além da meação sobre tais bens, tem ainda percentual na herança atribuível aos descendentes ou aos ascendentes. Assim, se o autor da herança deixa um único bem adquirido onerosamente durante a convivência, um herdeiro filho e a companheira, esta receberá 50% do bem pela meação e mais 25% pela concorrência na herança com o filho. Se o autor da herança fosse casado, nas mesmas condições, o cônjuge-víúvo teria direito a 50% pela meação, restando igual percentagem íntegra para o herdeiro filho” (OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Inventários e partilhas: direito das sucessões. Sebastião Luiz Amorim. 15ª. ed., rev. atual. e ampl. em face do novo Código Civil. São Paulo: Universitária de Direito, 2003, p. 173-4).

O tratamento diferenciado entre cônjuges e companheiros é incompatível com a Constituição Federal.

Casamento e união estável são igualmente dignos, solidários e respeitosos, de tal modo que não cabe ao legislador infraconstitucional desrespeitar a isonomia instituída entre esses dois modos de se constituir a família. Não pode, por isso, estabelecer melhores condições para conviventes em detrimento daqueles que optaram pelo casamento:

“Se não se admite tratamento discriminatório, prejudicial ao companheiro em outros pontos, tampouco se mostra compatível com o princípio isonômico esse benefício maior que o Novo Código Civil concede a quem não tenha sido casado, sem falar na diminuição que essa atribuição de bens ao companheiro que já tem a meação ocasiona aos sucessores descendentes ou ascendentes do autor da herança” (OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Inventários e partilhas: direito das sucessões. Sebastião Luiz Amorim. 15ª. ed., rev. atual. e ampl. em face do novo Código Civil. São Paulo: Universitária de Direito, 2003, p. 174)

Por isso, a redação do art. 1.790, II, CC não guarda compatibilidade com o art. 226, § 3º, CF, em cuja parte final se encontra comando para estimular a conversão da união estável em casamento.

O dispositivo em exame caminha, na verdade, em sentido oposto e desestimula a conversão da união de companheiros cujos parceiros tenham descendentes de outras relações. Por que converteriam suas uniões estáveis em casamento se aquelas lhes concedem mais direito?

Registre-se que tramitam pelo Congresso Nacional projetos de lei que visam afastar essa incongruência. De toda sorte, pensamos, com apoio em PALERMO e DANTAS JÚNIOR, que, enquanto não aprovadas essas proposições, caberá aos magistrados “acatar a tese relacionada à inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, por violação à igualdade entre as diversas entidades familiares, com a aplicação às sucessões, em virtude da morte do convivente, dos dispositivos contidos no art. 1.829 e seguintes, entendendo que o legislador ao se referir ao cônjuge também pretendeu abranger, por extensão, o convivente...” (PALERMO, Carlos Eduardo de Castro. O cônjuge e o convivente no direito das sucessões: modificações introduzidas pelo Código Civil de 2002. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007, p. 116).

O tema foi abordado em recente Encontro de Juízes de Família do Interior do Estado de São Paulo sob a coordenação da E. Corregedoria Geral de Justiça e foi objeto dos seguintes enunciados, com os quais concordamos:

49. O art. 1.790 do código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.

50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação”.

Daí porque o tratamento diferenciado e assistemático, bem detectado pela C. Câmara, constitui-se num equívoco do legislador, pois contraria a mens legis constitucional e, por isso mesmo, conduz ao reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo em estudo.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790, inc. II, do Código Civil.

 

São Paulo, 12 de julho de 2011.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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