Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0147314-67.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: (...)

Apelado: Ministério Público de São Paulo

Objeto: Lei Municipal 224/81 e Lei Municipal 537/88 de São Joaquim da Barra

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal 224/81 e 537/88, que concederam a pessoas determinadas pensão vitalícia equivalente a um salário mínimo.

2)      Leis anteriores à Constituição de 1988. Não recepção (revogação tática) em função da incompatibilidade com o novo regime constitucional. Desnecessidade de controle de constitucionalidade. Possibilidade de julgamento pelo órgão fracionário do tribunal, sem que haja desrespeito ao art. 97 da CR, ou à súmula vinculante 10 do STF.

3)      Parecer pelo não conhecimento do incidente.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 12ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível 0362307-05.2009.8.26.0000, da Comarca de São Joaquim da Barra, na sessão realizada em 27 de abril de 2011, sendo relator o Desembargador Venício Salles.

A Col. Câmara arguiu a inconstitucionalidade das Leis Municipais nº 224/81 e nº 537/88 de São Joaquim da Barra, que instituíram pensões vitalícias em benefício de pessoas determinadas, violando o princípio da impessoalidade, em conformidade com o v. acórdão de fls. 227/233.

Do voto vencedor constou a seguinte passagem:

“(...)

As leis municipais, a despeito da impropriedade formal, padecem de vício material, pois os ATOS (leis), vulneram o princípio da isonomia ao criar privilégios que não são extensíveis aos demais cidadãos que se encontram em idêntica situação de carência e necessidade.

Portanto, a concessão de pensão às rés fere o princípio da igualdade, posto que as diferencia de todos os outros cidadãos que se encontram na mesma situação, posto que as pensões foram concedidas sem qualquer critério ou pressuposto em ato de firme privilégio às rés.

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente não deve ser conhecido, e a razão para tanto é objetiva.

A Lei Municipal nº 224 foi editada em 30 de março de 1981 (fls. 43), enquanto a Lei Municipal nº 537 foi editada em 19 de abril de 1988 (fls. 47).

Como ambos os diplomas são anteriores à Constituição de 1988, a incompatibilidade se resolve pelo fenômeno da revogação tácita ou não recepção, o que torna não só desnecessário como inviável o controle de constitucionalidade das leis.

É assente o entendimento do Col. STF no sentido da impossibilidade de realização de controle de constitucionalidade de normas anteriores à Constituição, em função da revogação tácita ou não recepção que se opera com a vigência da nova ordem constitucional.

Confira-se:

“(...)

A vigência e a eficácia de uma nova Constituição implicam a supressão da existência, a perda de validade e a cessação de eficácia da anterior Constituição por ela revogada, operando-se, em tal situação, uma hipótese de revogação global ou sistêmica do ordenamento constitucional precedente, não cabendo, por isso mesmo, indagar-se, por impróprio, da compatibilidade, ou não, para efeito de recepção, de quaisquer preceitos constantes da Carta Política anterior, ainda que materialmente não-conflitantes com a ordem constitucional originária superveniente. É que – consoante expressiva advertência do magistério doutrinário (Carlos Ayres Britto, ‘Teoria da Constituição’, p. 106, 2003, Forense) – ‘Nada sobrevive ao novo Texto Magno’, dada a impossibilidade de convívio entre duas ordens constitucionais originárias (cada qual representando uma idéia própria de Direito e refletindo uma particular concepção político-ideológica de mundo), exceto se a nova Constituição, mediante processo de recepção material (que muito mais traduz verdadeira novação de caráter jurídico-normativo), conferir vigência parcial e eficácia temporal limitada a determinados preceitos constitucionais inscritos na Lei Fundamental revogada, à semelhança do que fez o art. 34, caput, do ADCT/1988. (AI 386.820-AgR-ED-EDv-AgR-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 24-6-2004, Plenário, DJ de 4-2-2005.)

(...)

Revela-se inaplicável, no entanto, a teoria da limitação temporal dos efeitos, se e quando o ST F, ao julgar determinada causa, nesta formular juízo negativo de recepção, por entender que certa lei pré-constitucional mostra-se materialmente incompatível com normas constitucionais a ela supervenientes. A não recepção de ato estatal pré-constitucional, por não implicar a declaração de sua inconstitucionalidade – mas o reconhecimento de sua pura e simples revogação (RTJ 143/355 — RTJ 145/339) –, descaracteriza um dos pressupostos indispensáveis à utilização da técnica da modulação temporal, que supõe, para incidir, dentre outros elementos, a necessária existência de um juízo de inconstitucionalidade. Inaplicabilidade, ao caso em exame, da técnica da modulação dos efeitos, por tratar-se de diploma legislativo, que, editado em 1984, não foi recepcionado, no ponto concernente à norma questionada, pelo vigente ordenamento constitucional. (AI 589.281-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-9-2006, Segunda Turma, DJE de 10-11-2006.) No mesmo sentido: AI 532.232-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 30-6-2009, Segunda Turma, DJE de 14-8-2009.

(...)

Vê-se, portanto, na linha de iterativa jurisprudência prevalecente nesta Suprema Corte e em outros tribunais (RTJ 82/44 – RTJ 99/544 – RTJ 124/415 – RTJ 135/32 – RT 179/922 – RT 208/197 – RT 231/665, v.g.), que a incompatibilidade entre uma lei anterior (como a norma ora questionada inscrita na Lei 691/1984 do Município do Rio de Janeiro/RJ, p. ex.) e uma Constituição posterior (como a Constituição de 1988) resolve-se pela constatação de que se registrou, em tal situação, revogação pura e simples da espécie normativa hierarquicamente inferior (o ato legislativo, no caso), não se verificando, por isso mesmo, hipótese de inconstitucionalidade (RTJ 145/339 – RTJ 169/763). Isso significa que a discussão em torno da incidência, ou não, do postulado da recepção – precisamente por não envolver qualquer juízo de inconstitucionalidade (mas, sim, quando for o caso, o de simples revogação de diploma pré-constitucional) – dispensa, por tal motivo, a aplicação do princípio da reserva de Plenário (CF, art. 97), legitimando, por isso mesmo, a possibilidade de reconhecimento, por órgão fracionário do Tribunal, de que determinado ato estatal não foi recebido pela nova ordem constitucional (RTJ 191/329-330), além de inviabilizar, porque incabível, a instauração do processo de fiscalização normativa abstrata (RTJ 95/980 – RTJ 95/993 – RTJ 99/544 – RTJ 143/355 – RTJ 145/339, v.g.). (AI 582.280 AgR, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2006, Segunda Turma, DJ de 6-11-2006.) No mesmo sentido: RE 495.370-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 10-8-2010, Segunda Turma, DJE de 1º-10-2010.

(...)”

Em outras palavras, se a norma é anterior à Constituição de 1988, e foi revogada (ou não recepcionada) por sua incompatibilidade com a nova ordem constitucional, torna-se não apenas desnecessário, mas descabido o controle de constitucionalidade, podendo o recurso ser julgado sem a prévia manifestação do C. Órgão Especial.

Em síntese, poderá a Col. Câmara concluir julgamento do recurso, reconhecendo, se assim entender, a não recepção da Lei Municipal 224/81 e da Lei Municipal 537/88 de São Joaquim da Barra pela Constituição de 1988, sem que para isso necessite contar com a prévia manifestação do Col. Órgão Especial, e sem que isso configure ofensa ao art. 97 da CR, ou desrespeito à súmula vinculante 10 da do Col. STF.

Dessa forma, sendo manifestamente inadmissível o incidente, nosso parecer é pelo seu não conhecimento.

São Paulo, 05 de agosto de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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