Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0153970-06.2012.8.26.0000

Suscitante: Terceira Câmara de Direito Público

Objeto da impugnação: art. 4º da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do município de São José dos Campos

 

 

 

 

Ementa:

CONSTITUCIONAL. PROCESSO CIVIL. INCIDENTE DE INSCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DA LIVRE INICIATIVA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA. ART. 170 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.

1. Art. 4º da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do município de São José dos Campos. Lei Complementar que dispõe sobre a realização de feiras para comercialização direta de bens no Município. Impugnação do art. 4º do mencionado diploma normativo que dispõe: “O período de realização das feiras de que trata o artigo 1º desta lei complementar será de no máximo 07 (sete) dias corridos”.

2. Instauração de incidente determinada pelo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça, que declarou vislumbrar a inconstitucionalidade do citado dispositivo legal.

3. Acórdão que não apreciou a alegação de inconstitucionalidade. Impossibilidade de se conhecer da arguição de inconstitucionalidade.

4. No mérito, parecer pela inconstitucionalidade, se superada preliminar.

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Colendo Órgão Especial

 

Trata-se de Acórdão proferido pela Terceira Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 0154395-09.2007.8.26.0000, que suscitou a instauração de incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, mas sem decidir a questão da constitucionalidade art. 4º da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do município de São José dos Campos.

A Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do município de São José dos Campos que dispõe sobre a realização de feiras para comercialização direta de bens no Município.

Impugnação do art. 4º do mencionado diploma normativo que dispõe: “O período de realização das feiras de que trata o artigo 1º desta lei complementar será de no máximo 07 (sete) dias corridos”.

A sentença de primeira instância reconheceu a inconstitucionalidade.

Na fase de apelação, sobreveio a manifestação do Colendo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça no sentido de que vislumbra a inconstitucionalidade.

É o breve relatório.

Do não conhecimento do incidente

Antes do órgão fracionário deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para provê-lo ou não, há necessidade de ser instaurado o necessário Incidente de Inconstitucionalidade, disciplinado a partir do art. 480 do CPC.

Assim, arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, é necessária a prévia deliberação da Câmara, que se rejeitar a argumentação, deverá prosseguir no julgamento e, nesse caso, negar ou dar provimento ao recurso.

Só quando há o acolhimento da arguição de inconstitucionalidade a Câmara deve “suspender” o julgamento, isto é, não pode prosseguir no julgamento para dar ou negar provimento ao recurso e determinar a instauração do Incidente de Inconstitucionalidade, a fim de provocar a deliberação do Pleno.

Porém, é importante que fique bem claro que é necessária a pronúncia do órgão fracionário, acolhendo a alegação da inconstitucionalidade, para que seja determinada a instauração do incidente.

Portanto, como o V. Acórdão proferido pelo órgão fracionário, s.m.j., não pronunciou a inconstitucionalidade, não há como esse Colendo Órgão Especial conhecer da arguição de inconstitucionalidade, devendo os autos retornar ao juízo natural para deliberação.

Caso a deliberação do Colendo Órgão Fracionário seja pela inconstitucionalidade da lei, deve ser suscitada a formação do incidente para a análise da questão prejudicial pelo Excelso Órgão Especial.

Em função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral passa a analisar o mérito, com a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial, em relação à qual o parecer é no sentido da inconstitucionalidade do dispositivo legal impugnado.

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).

Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais      sobre       áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Também é relevante consignar a possibilidade do controle de constitucionalidade das leis municipais, em seus aspectos formais e materiais.

  Segundo Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 153):

“A supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’”.

Os parâmetros para o controle de constitucionalidade, portanto, são os aspectos formais e materiais da produção normativa infraconstitucional. Daí a razão pela qual se fala em inconstitucionalidade formal e material.

O dispositivo legal impugnado (4º da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do município de São José dos Campos), ao restringir abstratamente o período de realização das feiras, de fato, é ofensivo aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, como apontado na R. Sentença.

Trata-se de elemento de legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art. 170, IV, da CF:

“Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

IV – livre concorrência”.

Com efeito, o dispositivo mostra-se inconstitucional por mais de uma razão, pois o legislador municipal, a pretexto de legislar sobre assunto de interesse local (art. 30, I, da CR), desconsiderou princípios que regem a atividade econômica, especificamente a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170, IV, CF), mesmo porque às atividades comercial e econômica são aplicáveis os princípios constitucionais que a regem, entre os quais a livre iniciativa e a livre concorrência.

Dito de outro modo, ao limitar a legítima exploração de aspectos inerentes ao exercício da atividade econômica e comercial, deixou o legislador municipal de observar referidos princípios constitucionais.

Em tais circunstâncias, o parecer é no sentido do não conhecimento da arguição de inconstitucionalidade ou, se assim não se entender, que seja acolhida a tese da inconstitucionalidade.

São Paulo, 26 de setembro de 2012.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

-Jurídico –

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