Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0169451-43.2011.8.26.0000

Suscitante: 12ª. Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: inconstitucionalidade do art. 6º, inc. III, e §§ 1º e 7º, da Lei nº 10.826/08 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de reexame necessário de ordem de habeas corpus preventivo. Art.                                                                                                                                               6º, inc. III, e §§ 1º e 7º, da Lei nº 10.826/08. Proibição do porte de arma, fora de serviço, aos integrantes de guardas municipais pertencentes às comunas com menos de 500.000 habitantes. Alegada ofensa aos princípios da isonomia e da autonomia municipal. Tese não acolhida. À luz do fim eleito pelo legislador – que é o de restringir o acesso e a circulação das armas de fogo – o discrímen normativo é legítimo e adequado às atribuições constitucionais dessas corporações. Precedentes. Parecer pela rejeição da arguição.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 12ª Câmara de Direito Criminal, nos autos de Reexame Necessário nº 0002957.13.2010.8.26.0296 de Ordem de “Habeas Corpus” Preventivo concedida em favor de guardas civis do Município de Jaguariúna.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 6º, inc. III, e §§ 1º e 7º, da Lei nº 10.826/08.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

A impetração tem o escopo de impedir que os integrantes da Guarda Municipal de Jaguariúna sejam presos pelo porte de arma de fogo fora do horário de serviço.

Para tanto, segundo estabeleceu o Órgão Fracionário, seria preciso afastar as regras acima destacadas, do Estatuto do Desarmamento, que proíbem o porte de arma fora de serviço aos milicianos pertencentes às comunas com menos de 500.000 habitantes. O discrímen, segundo se depreende do v. Acórdão de fls. 217/220, vai de encontro com o princípio da isonomia.

O tema já foi parcialmente enfrentado pelo C. Órgão Especial no Incidente de Inconstitucionalidade nº 126.032-0/5-00, embora restrito à análise do inc. IV do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003.

O julgado recebeu a seguinte ementa:

“Incidente de inconstitucionalidade de lei - Artigo 6º, inciso IV, da Lei n. 10.826, 22 de dezembro de 2003, com a redação dada pela Medida Provisória n. 157, de 23 de dezembro de 2003, que se converteu na Lei n. 10.867, de 12 de maio de 2004 - Dispositivo legal que exclui da proibição do porte de arma de fogo "os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 e menos de 500.000 habitantes, quando em serviço" - Ofensa aos princípios da isonomia e da autonomia municipal - Incidente julgado procedente” (Incidente de inconstitucionalidade nº 126.032.0/5-00, j. 02.02.2006, rel. desig. Des. PAULO FRANCO).

Do corpo do v. Acórdão se extrai que o Colegiado decidiu que o inc. IV do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que exclui da proibição do porte de arma “os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço”, é inconstitucional, por se traduzir em “tratamento discriminatório entre os Municípios, no que se refere à possibilidade de suas respectivas guardas portarem arma de fogo”.

Parece-me, no entanto, que, ao retirar do ordenamento jurídico o dispositivo que trata da ressalva à proibição do porte de arma, o Tribunal não ampliou a regra de exceção, ou seja, não estendeu o porte de arma fora do serviço aos guardas de municípios com menos de 500.000 habitantes. É que, abstraída a regra expurgada, prevalece a norma proibitiva na cabeça do artigo.

Talvez por isso o Órgão Fracionário tenha detectado que “a declaração de inconstitucionalidade do art. 6º, IV, da Lei nº 10.826/03, não é suficiente para franquear o porte de arma de fogo aos guardas municipais de cidades com menos de cinquenta mil habitantes, como Jaguariúna” (fls. 219), para pleitear, agora, a análise de outros dispositivos do Estatuto do Desarmamento, a saber:

Art. 6o  É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:

III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;

(...)

 § 1o  As pessoas previstas nos incisos I, II, III, V e VI do caput deste artigo terão direito de portar arma de fogo de propriedade particular ou fornecida pela respectiva corporação ou instituição, mesmo fora de serviço, nos termos do regulamento desta Lei, com validade em âmbito nacional para aquelas constantes dos incisos I, II, V e VI. (Redação dada pela Lei nº 11.706, de 2008)

 (...)

§ 7o  Aos integrantes das guardas municipais dos Municípios que integram regiões metropolitanas será autorizado porte de arma de fogo, quando em serviço. (Incluído pela Lei nº 11.706, de 2008)

Aberta a possibilidade de enfrentar novamente a questão constitucional, entendo, todavia, que a arguição não deve ser acolhida.

Com efeito, ao prever a diferenciação de tratamento no tocante ao porte de arma por Guardas Civis Metropolitanos, o legislador considerou que os Municípios menos populosos apresentam níveis de violência inferiores ao das grandes cidades, residindo aí, o fundamento político do tratamento diferenciado.

Essa questão foi analisada com precisão pelo Des. MARCOS NAHUM, em recente julgado. Extrai-se de seu voto, acolhido à unanimidade pela C. 1ª Câmara Criminal:

“O legislador ao prever a diferenciação de tratamento no tocante ao porte de arma por Guardas Civis Metropolitanos considerou que os Municípios com menos de 50.000 habitantes apresentam níveis de violência menores do que os apresentados em cidades maiores e, nesse sentido, a abstenção de porte de arma encontra fundamento no próprio espírito da lei que, às claras, pretende que armamentos tenham o menor uso possível. Por outro lado, nas funções primordiais da Guarda Civil Metropolitana não se inclui o policiamento ostensivo, que é atribuição das Policias Militar e Civil. Assim, não é essencial ao desenvolvimento de suas atividades, notadamente em municípios de populações menores, o porte e uso de arma de fogo como se pretende na presente impetração. Nesse sentido, o dispositivo legal em questão é constitucional e tal fato impede o uso de arma de fogo por Guardas Civis Metropolitanos em municípios com menos de 50.000 habitantes” (Reexame Necessário nº 0024686-56.2010.8.26.0309, Jundiaí, j. 31.01.2011).

 

No mesmo sentido se encontra o voto vencido do Des. CELSO LIMONGI, na arguição de inconstitucionalidade antes destacada, no qual cita ilustrativo precedente da 3ª. Câmara Criminal (Recurso ex-officio em habeas corpus nº 498.737.3/2):

 

“‘Ora, é perfeitamente razoável que se estabeleça um critério diferenciador pelo número de habitantes da cidade para permitir ou não o porte de arma das guardas municipais, mormente ao se considerar as suas atribuições constitucionalmente definidas, que dizem com a proteção dos bens do município, bem como de seus serviços e instalações, na forma da lei (art. 144, § 8o, CF). É de se destacar que o fato de as guardas municipais encontrarem sua previsão em um capítulo da Lei Maior dedicado à segurança pública não transmuda as suas funções constitucionais, dentre as quais não se incluem a de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública - afetas às polícias civis (art. 144, § 4o, CF). Frise-se, mais uma vez, que as guardas municipais têm por escopo a proteção do patrimônio, bens e serviços do município, e que sua atuação prática, embora possa ser desenvolvida em colaboração com as polícias estaduais civis e militares, não pode se efetivar em substituição a estas últimas, cujas competências também vêm descritas na Constituição da República.

Disso se dessume que o argumento de que as guardas municipais atuam prevenindo e reprimindo o crime, de modo que o seu desarmamento acarretará insegurança e desordem e afetará de maneira exemplar a população carente, embora possua vigoroso impacto emocional e fático, não tem força jurídica suficiente para caracterizar a necessidade de manutenção das guardas municipais armadas, contrariamente ao previsto pela lei.

A distinção efetivada pelo legislador infraconstitucional, diferentemente do sustentado pelos impetrantes e do que foi albergado na decisão judicial, não implica em violação do princípio da isonomia, mesmo porque o critério de diferenciação não se mostra absurdo e nem desprovido de sentido. Ora, ante a função constitucional das guardas municipais, que, como já mencionado, é a de preservar os bens, serviços e instalações do município, é perfeitamente razoável que se permita às corporações de certas cidades - com maior número de habitantes - o porte de arma, enquanto para outros municípios - com menor número de habitantes - tal não seja deferido. A arma a ser utilizada pelos membros das guardas municipais não terá aqui a função de permitir policiamento ostensivo, prevenção e repressão de delitos - mesmo porque esta não é finalidade para a qual foi criada - mas sim possibilitar o correto exercício de suas atribuições, consistentes na preservação da incolumidade do patrimônio público. A distinção revela, pois, a observância de um critério lógico e, nesse, sentido não enverga relevância constitucional’.

Considere-se, ainda, a lição de Alexandre de Moraes: "Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos" ("Direito Constitucional", pág. 65, 12a edição, Atlas).

Assim, o critério utilizado pelo legislador ordinário levou em conta o número de habitantes, o que é razoável e não fere o princípio de isonomia (Incidente de inconstitucionalidade nº 126.032.0/5-00, j. 02.02.2006, do voto do Des. CELSO LIMONGI).

Em conclusão, os dispositivos destacados se harmonizam com o escopo da lei, que é o de restringir o acesso às armas de fogo e desarmar a população.

O discrímen é razoável, pois os riscos a que guardas municipais se sujeitam fora do horário de serviço e nos municípios de menor porte não são significativamente mais sérios do que aqueles a que estão expostos os cidadãos em geral.

Guardas, aliás, não se confundem nem se equiparam a policiais, ainda que tenham alcançado dignidade constitucional e estejam previstos no capitulo da Constituição reservado à segurança pública.

Suas atribuições são bem mais restritas (art. 144, § 8º, CF).

No mais, como nem sempre as menores corporações municipais podem propiciar treinamento adequado a seus integrantes, é adequado que os milicianos e os cidadãos em geral suportem as mesmas regras do Estatuto e de seu regulamento para obter o porte de arma.

Assim, os dispositivos questionados não ofendem ao postulado da isonomia, especialmente quando confrontados com os fins eleitos pelo legislador, tarefa que se impõe ao intérprete (Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 3ª. ed., Brasília, Brasília Jurídica, 2003, p. 187).

Restringir o porte de armas de fogo, inclusive por integrantes de pequenas guardas municipais quando fora de serviço, constitui-se em legítima opção política do legislador, que não pode, sem forte razão jurídica, ser desprezada ou substituída pelo do Poder Judiciário, a pretexto de se igualar situações que são, no plano fático, bastante distintas.

Diante do exposto, opino pela rejeição da arguição, por entender que são constitucionais o art. 6º, inc. III, e §§ 1º e 7º da Lei nº 10.826/08.

 

São Paulo, 1º de agosto de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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