Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0172027-09.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelantes: Municipalidade de São Bernardo do Campo e outros

Apelados: (...) e outros

Objeto: Lei Municipal 5.364, de 2004, de São Bernardo do Campo

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal 5.364, de 2004, de São Bernardo do Campo, que “Dispõe sobre a transferência de toda disponibilidade financeira do ativo financeiro constante dos balanços patrimoniais apurados em 30 de novembro de 2004 da Autarquia Municipal Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo ao Município de São Bernardo do Campo, e dá outras providências”.

2)      Inconstitucionalidade, por violação à autonomia autárquica e à autonomia universitária, ao princípio da eficiência administrativa e ao direito de propriedade (art. 5º, XXII; art. 37, caput; art. 37, § 8º, art. 207; todos da CR).

3)      Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 5ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível 0200750-43.2008.8.26.0000, da Comarca de São Bernardo do Campo, na sessão realizada em 07 de fevereiro de 2011, sendo relator o Desembargador Franco Cocuzza.

A Col. Câmara arguiu a inconstitucionalidade da Lei Municipal 5.364, de 2004, de São Bernardo do Campo.

Em conformidade com o v. acórdão de fls. 831/842, a inconstitucionalidade do ato normativo estaria centrada na sua contrariedade ao art. 37, § 8º, e art. 5º, XXII, da Constituição da República.

Do voto vencedor constou a seguinte passagem:

“(...)

Assim, depreende-se que a Lei nº 5.364/04 do Município de são Bernardo do Campo é manifestamente inconstitucional por ferir a autonomia gerencial e financeira da Autarquia ao desviar o seu patrimônio financeiro para os cofres municipais, ferindo o disposto nos artigos 37, § 8º e art. 5º, XXII da Constituição Federal.

Diante do exposto e com fundamento no art. 97 da CF, Súmula Vinculante 10 do STF e arts. 190/191 do RITJESP remeto os autos ao C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça para apreciar a inconstitucionalidade da Lei nº 5.364/04 do Município de São Bernardo do Campo...

(...)”

É o relato do essencial.

A Lei Municipal 5.364/2004, de São Bernardo do Campo, que conforme respectiva rubrica “Dispõe sobre a transferência de toda disponibilidade financeira do ativo financeiro constante dos balanços patrimoniais apurados em 30 de novembro de 2004 da Autarquia Municipal Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo ao Município de São Bernardo do Campo, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º A Autarquia Municipal Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo transferirá ao Município de São Bernardo do Campo, até 10 (dez) dias antes do término do exercício financeiro de 2004, toda a disponibilidade financeira de seu ativo financeiro constante dos balanços patrimoniais apurados em 30 de novembro de 2004, ressalvados os valores relativos a compromissos financeiros e os necessários ao funcionamento e a prestação de seus serviços.

Parágrafo único. Os referidos valores serão utilizados na execução de projetos aprovados previamente pela própria autarquia, no prazo a ser avençado entre as partes.

Art. 2º. Em caso de descumprimento da obrigação constante do artigo 1º desta lei, fica o Município de São Bernardo do Campo autorizado a se apropriar diretamente dos referidos ativos financeiros.

Art. 3º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações próprias constantes do orçamento.

Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

(...)”

A inconstitucionalidade do ato normativo se revela por mais de um aspecto: (a) ofensa à autonomia universitária (art. 207 da CR); (b) ofensa à autonomia das entidades autárquicas (art. 37, § 8º da CR); (c) ofensa ao princípio da eficiência da atividade administrativa (art. 37, caput, da CR); (d) ofensa ao direito de propriedade (art. 5º, XXII da CR).

Observe-se que por força do ato normativo examinado, foi determinada a transferência de todo o patrimônio financeiro da Autarquia – Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo - ao Município, a fim de que o Poder Executivo local gerenciasse a execução de projetos aprovados previamente pela própria Autarquia, mediante prévio consenso da Administração Direta do Município.

Há manifesta incompatibilidade entre esse dispositivo e o art. 207 da Constituição da República, que assegura às universidades “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”.

Tratando de entidades autônomas da Administração Indireta do Estado, José Afonso da Silva, invocando estudo da lavra de Anísio Teixeira, anota que se a Constituição Federal, no art. 206, II, consagrou a “liberdade de aprender ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, como princípio basilar do ensino, “a coerência exigia uma manifestação normativa expressa em favor da autonomia das Universidades, autonomia que não é ‘apenas a independência da instituição universitária, mas a do próprio saber humano’, pois ‘as universidades não serão o que devem ser se não cultivarem a consciência da independência do saber e se não souberem que a supremacia do saber, graças a essa independência, é levar a um novo saber. E para isto precisam viver numa atmosfera de autonomia e estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação’. (...) ‘Elas não são, com efeito, apenas instituições de ensino e de pesquisas, mas sociedades devotadas ao livre, desinteressado e deliberativo cultivo da inteligência e do espírito e fundadas na esperança do progresso humano pelo progresso da razão’” (Curso de direito constitucional positivo, 28. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 840).

Os órgãos autônomos por disposição legal, instituídos no contexto da Administração Indireta, têm liberdade de gerenciamento financeiro e orçamentário que afasta sua subordinação, embora não fique afastada sua vinculação à Administração Direta (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 33. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 766/767).

Isso nos leva a concluir que a autonomia universitária, prevista na Constituição Federal e na Estadual, embora não seja absoluta, protege a entidade, essencialmente, no que diz respeito à sua liberdade de gestão que está centrada na autonomia didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial.

Esse alcance da autonomia universitária, mormente quando se trata de entidade pública de natureza autárquica, já foi afirmado pelo Col. STF em mais de uma ocasião: RE 83.962, Rel. Min. Soares Muñoz, DJ de 17-4-1979; ADI 1.599-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 18-5-2001; MS 22.412, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 1º-2-2002, Plenário, DJ de 1º-3-2002; entre outros.

Mas não é só.

A ofensa se revela, igualmente, considerada a autonomia das entidades autárquicas, decorrente do art. 37, § 8º, da CR, que menciona expressamente a autonomia “gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta”.

Se, por um lado, não se desconhece a vinculação existente entre as entidades da Administração Indireta e a Administração Direta, de outro lado tais entidades, dotadas de personalidade jurídica própria, são livres para, dentro dos limites da lei e da Constituição, exercerem sua autogestão, que inclui a administração financeira e orçamentária.

Assim, a lei, ao determinar a transferência do patrimônio financeiro da entidade autárquica para a Administração Direta, simplesmente aniquilou essa autonomia, subordinando a gestão da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo à imediata interferência do Poder Executivo.

Há ainda a considerar que houve, é possível afirmar, violação ao direito de propriedade, conflitando a lei com o art. 5º, XXII, da CR.

Embora a Autarquia seja vinculada à Administração Direta, ela possui personalidade jurídica e patrimônio próprio (Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, cit., p. 748; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25. Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 160/161; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19. Ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 421 e ss.).

Inerente à existência de personalidade e patrimônio próprios é a incidência da garantia ao direito de propriedade. Daí a conclusão a que se chega: a lei, ao desconhecer essa autonomia, acabou por violar o direito de propriedade, expropriando de modo inconstitucional o patrimônio financeiro da entidade, ao prever sua transferência para o Município.

Por último e não menos importante, o ato normativo impugnado tangencia o princípio da eficiência administrativa, previsto no art. 37, caput, da CR.

Como lembra Hely Lopes Meirelles “o princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros” (op. cit., p. 98).

O que a lei impugnada determinou foi que os recursos financeiros da Autarquia fossem transferidos ao Município, para que este último realizasse do ponto de vista da prática e da rotina administrativa, os atos de gestão.

Tanto assim que o art. 1º, parágrafo único da Lei Municipal 5.364, de 2004, previu que tais valores “serão utilizados na execução de projetos aprovados previamente pela própria autarquia, no prazo a ser avençado pelas partes”.

Cria a norma, portanto, uma desnecessária (além de indevida) burocracia que, seguramente, produz repercussões negativas do ponto de vista da eficiência, considerando a atividade administrativa da Autarquia e seu resultado concreto.

Por todos esses motivos, nosso parecer é pelo conhecimento do incidente, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.364, de 2004, de São Bernardo do Campo.

São Paulo, 05 de agosto de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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