ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo n.º 0205694-83.2011.8.26.0000

Suscitante: 3.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Interessadas: Fazenda do Estado de São Paulo e outra

 

EMENTA: Arguição de inconstitucionalidade. Art. 7.º, inciso I, da Portaria CAT 23/2005. Questão já enfrentada pelo Órgão Especial do TJ/SP noutro processo (Autos 0077090-07.2011.8.26.0000), no qual foi reconhecida incidentalmente a inconstitucionalidade do aludido dispositivo, que, demais a mais, é indiferente à resolução da controvérsia instaurada nestes autos, pois nem sequer foi cogitado na sentença recorrida. Inovação trazida apenas nas razões recursais. Ato normativo subalterno que, em verdade, extrapolou os parâmetros legais (art. 67, § 1.º, da Lei Estadual n.º 6.374/89), inaugurando, assim, mera crise de legalidade, insuscetível de aferição no controle normativo incidental. Parecer pelo não conhecimento da presente arguição.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

                   Ao examinar recurso interposto pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo contra sentença proferida em MS impetrado por contribuinte o qual teve negado pedido de autorização de impressão de documentos fiscais (AIDF) na Delegacia Regional Tributária de Guarulhos, a 3.ª Câmara de Direito Público desse egrégio Tribunal de Justiça suscitou incidente de inconstitucionalidade do art. 7.º, inciso I, da Portaria CAT 23/2005, que condiciona o deferimento prévio da solicitação de AIDF Eletrônica à comprovação de regularidade cadastral e ao cumprimento das demais obrigações tributárias.  

                   É o caso, porém, de não se conhecer da arguição.

                   A princípio, cumpre obtemperar que controvérsia idêntica à tratada nos presentes autos foi recentemente solucionada no AI 0077090-07.2011.8.26.0000 (vide extrato de acompanhamento anexo); como já houve pronunciamento definitivo do Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça acerca da temática constitucional, torna-se desnecessário o processamento deste incidente.

                   Por outro lado, a discussão acerca da possível inconstitucionalidade do preceito normativo em epígrafe não surgiu no julgamento do MS, pois em nenhuma de suas passagens a respeitosa sentença recorrida alude a tal dispositivo, mas sim foi serodiamente introduzida nas razões recursais, impedindo a sua análise, em grau de recurso, sob pena de supressão de instância, aliada ao fato de que a referida norma não serviu à resolução da controvérsia. 

                   Em caráter ilustrativo, peço vênia para reproduzir fragmento da sentença recorrida:

 

               “.............................

                   A falta de informações prestadas pela autoridade coatora, aliada à admissão dos fatos pela assistente, faz presumir a veracidade das ocorrências afirmadas pela impetrante e acarreta a procedência do mandado de segurança, em face do patente abuso cometido pelo impetrado ao negar autorização para edição dos documentos fiscais indispensáveis ao exercício das atividades comerciais da autora.

                   Se a impetrante é contumaz descumpridora de suas obrigações tributárias, toca ao fisco a promoção imediata da ação objetivando o recebimento do crédito.

                   Não se admite, entretanto, adoção de medidas de cunho intimidativo, sem amparo legal. O Poder Judiciário não dá respaldo a posturas desta natureza, como a própria Fazenda teve a dignidade de reconhecer.

                   Também não nos parece o caso de, pelo atendimento da ordem judicial proferida liminarmente, reconhecer a perda do objeto desta ação constitucional, porque as condições da ação, mormente o interesse de agir, devem ser verificadas, ao tempo da propositura, e aqui não se pode negar que aquele importante requisito estava presente quando do ajuizamento, porque se recusava a autoridade coatora a autorizar a impressão dos documentos referidos na emenda da petição inicial.

                   .................................

 

                   É necessário ao menos que haja relação de congruência entre a matéria decidida na primeira instância e a matéria rediscutida em grau de recurso (CPC, art. 515, § 1.º), não sendo admissível que o Tribunal aprecie fundamento nem sequer cogitado, pela Recorrente, no momento processual oportuno –embora pudesse sê-lo com o aparelhamento tempestivo de embargos declaratórios –, sob pena de, assim o fazendo, proferir julgamento ultra petita. 

                   Demais, segundo entendimento assente na jurisprudência, “no controle difuso o exame da constitucionalidade de lei só se faz quando necessário ao julgamento da causa” (TSE – Ag. Instr. n.º 2.049 – Classe 2.ª/MG – Rel. Min. Eduardo Ribeiro, Diário da Justiça, Seção I, 24/3/2000, pág. 125).

                   Na espécie, verifica-se que a Portaria CAT 23/2005 foi editada em cumprimento ao disposto no art. 67, § 1.º, da Lei Estadual n.º 6.374/89, de tal modo que, ao instituir proibição abusiva, não respaldada pelo direito, indo além do permissivo legal, a norma subalterna em exame inaugurou mera crise de legalidade, cuja aferição torna prescindível a instauração do controle incidental.

                   Nesse sentido:

 

               As instruções normativas, editadas por órgão competente da Administração Tributária, constituem espécies jurídicas de caráter secundário, cuja validade e eficácia resultam, imediatamente, de sua estrita observância dos limites impostos pelas leis, tratados, convenções internacionais, ou decretos presidenciais, de que devem constituir normas complementares. Essas instruções nada mais são, em sua configuração jurídico-formal, do que provimentos executivos cuja normatividade está diretamente subordinada aos atos de natureza primária, como as leis e as medidas provisórias, a que se vinculam por um claro nexo de acessoriedade e de dependência. Se a instrução normativa, editada com fundamento no art. 100, I, do Código Tributário Nacional, vem a positivar em seu texto, em decorrência de má interpretação de lei ou medida provisória, uma exegese que possa romper a hierarquia normativa que deve manter com estes atos primários, viciar-se-á de ilegalidade e não de inconstitucionalidade.” (ADI n.º 365 – AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. em 7/11/1990, DJ de 15/3/1991, pp. 02645).

 

                   Ou seja, se o ato normativo secundário excedeu os parâmetros legais, torna-se óbvio que não poderá subsistir ante a lei da qual derivou, e a solução do caso deverá ser orientada exatamente por esse contexto, dispensando o exame de constitucionalidade de norma subalterna que, antes de tudo, é atentatória à lei.

                   No sistema jurídico brasileiro a violação da lei, por ato secundário, sempre implicará reflexamente no desrespeito à própria Constituição, que consagrou o princípio da legalidade segundo o qual ‘ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei’ (CF, art. 5.º, II).

                   A norma objeto de impugnação nestes autos é encontrada numa simples portaria, pertencente à categoria dos atos administrativos ordinatórios, consoante o abalizado magistério de Hely Lopes Meirelles, verbis:

 

               Portarias são atos administrativos internos pelos quais os chefes de órgãos, repartições ou serviços expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou designam servidores para funções e cargos secundários. Por portaria também se iniciam sindicâncias e processos administrativos. Em tais casos a portaria tem função assemelhada à da denúncia do processo penal.

                   As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração Pública. Nesse sentido vem decidindo o STF (RF 107/65 e 277, 112/202)” (Cf. Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, São Paulo, 18.ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, p. 167).

                   No caso, a autoridade fazendária baixou uma portaria proibindo os seus subordinados de autorizarem a impressão de documentos fiscais por empresas em situação irregular perante o fisco, comando esse que, num primeiro momento, é endereçado aos agentes fazendários, mas que, indiretamente, ofendeu o direito líquido e certo da impetrante à continuidade de suas atividades.

                   Como se trata de espécie de ato administrativo, a portaria se sujeita ao controle da própria Administração e do Judiciário, sob o aspecto de legalidade, e poderá ser invalidada sempre que se revelar ilegal, como nesse caso.

                   Segundo Hely Lopes Meirelles,

 

               Anulação é a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário.

                             (.......)

                   Desde que a Administração reconheça que praticou um ato contrário ao Direito vigente, cumpre-lhe anulá-lo, e quanto antes, para restabelecer a legalidade administrativa. Se não o fizer, poderá o interessado pedir ao Judiciário que verifique a ilegalidade do ato e declare sua invalidade, através da anulação.”(ob. cit., pp. 186/187)

                           

                   Nesse contexto, afigura-se desnecessária a instauração do incidente a cada violação da lei, por ato normativo subalterno, sob pena de banalização do instituto, comportando – o caso em análise – solução que implica no simples reconhecimento da supremacia da lei sobre a norma que lhe é subordinada.

                   Derradeiramente, cumpre obtemperar que a existência de precedentes da mais alta Corte Judiciária desse país, onde inclusive a matéria já se encontra sumulada, torna desnecessária a instauração do incidente, “verbis”:

 

               Inaplicabilidade, em outros tribunais, quando já declarada pelo Supremo Tribunal, ainda que incidentemente, a inconstitucionalidade da norma questionada: precedentes. 1. A reserva de Plenário da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo funda-se na presunção de constitucionalidade que os protege, somada a razões de segurança jurídica. 2.A decisão plenária do Supremo Tribunal, declaratória de inconstitucionalidade da norma, posto que incidente, sendo pressuposto necessário e suficiente a que o Senado lhe confira efeitos erga omnes, elide a presunção de sua constitucionalidade: a partir daí, podem os órgãos parciais dos outros tribunais acolhê-la para fundar a decisão de casos concretos ulteriores, prescindindo de submeter a questão de constitucionalidade ao seu próprio plenário (RTJ 164/1.093).”

 

                   Logo, mesmo se não houvesse a notícia de que o art. 7.º, I, da Portaria CAT 23/2005, foi declarado inconstitucional, diante dos enunciados das Súmulas 70 e 547 do STF, e malgrado estas não serem dotadas de eficácia vinculante, a aplicação na espécie da transcendência dos motivos determinantes seria perfeitamente possível.

                   Assim, com a devida vênia, o parecer é pelo não conhecimento da arguição.

 

                            São Paulo, 12 de setembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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