Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 0205803-97.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: (...)

Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Objeto: Lei Municipal nº 2.692, de 06 de fevereiro de 2006, de Ferraz de Vasconcelos

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 2.692, de 06 de fevereiro de 2006, de Ferraz de Vasconcelos, que “dispõe sobre a denominação de Complexo Poliesportivo Municipal que especifica e dá outras providências correlatas”.

2)      Lei de iniciativa de vereador em matéria típica de administração. Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º da Constituição Paulista; art. 2º da CF).

3)      Violação do princípio da impessoalidade. Ato legislativo que evidencia publicidade com fins de promoção pessoal (art. 111 e 115, § 1º da Constituição Paulista; art. 37, § 5º da CF).

4)      Desrespeito ao princípio da moralidade administrativa. Atribuição ao próprio municipal de apelido do senhor Prefeito Municipal, segundo as informações e provas existentes nos autos, ou seja, pessoa viva, no exercício do mandato de chefe do Executivo local (art. 111 da Constituição Paulista; art. 37, “caput” da CF).

5)      Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 13ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0004833-95.2008.8.26.0191, relator o Desembargador Ferraz de Arruda, em 27 de julho de 2011.

A Col. Câmara arguiu a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2692, de 06 de fevereiro de 2006, de Ferraz de Vasconcelos, que “dispõe sobre a denominação de Complexo Poliesportivo Municipal que especifica e dá outras providências correlatas”.

Em conformidade com o v. acórdão de fls. 531/539, a inconstitucionalidade do ato normativo estaria centrada na sua contrariedade aos artigos 37, § 1º, da CF, e 111, 115, § 1º, da Constituição Paulista.

Do voto vencedor constou a seguinte passagem:

“(...)

Sem embargo de que diplomas anteriores já vedavam a colocação de nome de pessoas vivas em bens públicos de qualquer espécie, o art. 37, § 1º da Constituição Federal, devidamente conjugado aos arts. 111 e 115, § 1º da Constituição do Estado de São Paulo, impôs aos administradores públicos a estrita observância dos princípios da impessoalidade e moralidade que por si só repelem toda e qualquer forma de promoção pessoal.

(...)

Com efeito, a Lei Municipal nº 2692/06 atribuiu ao Complexo Poliesportivo Henry Gotthard Kaesemodel o mesmo apelido pelo qual o Prefeito (...), ora réu, é conhecido na Municipalidade de Ferraz de Vasconcelos – ‘Turcão’, limitando a manutenção do nome originariamente aposto apenas o âmbito do estádio de futebol localizado no interior do complexo, a par do que se infere do § 1º.

Mais do que isso, a introdução da norma no ordenamento jurídico municipal operou-se em plena vigência do mandato eletivo do réu, que não obstante detivesse o poder do veto a sancionou.

(...)“

É o relato do essencial.

A arguição de inconstitucionalidade deve ser conhecida e acolhida.

A Lei Municipal nº 2692, de 06 de fevereiro de 2006, de Ferraz de Vasconcelos, que “dispõe sobre a denominação de Complexo Poliesportivo Municipal que especifica e outras providências correlatas”, objeto do presente incidente de inconstitucionalidade, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. O atual Complexo Poliesportivo Municipal, localizado entre Avenida Governador Jânio Quadros, Ruas Guarda Civil, Duque de Caxias, Armênia e José Moreno, passa a denominar-se ‘Complexo Poliesportivo Municipal Turcão’.

Parágrafo único. Fica preservada para todos os efeitos a denominação do estádio municipal localizado no interior do referido complexo, consoante disposição contida no Decreto 1.054, de 30 de setembro de 1969.

Art. 2º. As despesas decorrentes com a execução da presente lei, correrão à conta de dotações próprias consignadas no orçamento.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial aquelas constantes da Lei nº 2184, de 16 de dezembro de 1996.

(...)”

É manifesta a inconstitucionalidade, no caso, em decorrência:

(a) da violação do princípio da separação de poderes (art. 5º da Constituição Paulista; art. 2º da CF), tendo em vista que, de acordo com notícia existente nos autos, a lei decorreu de projeto de iniciativa de vereador, e trata da gestão administrativa do município;

(b) do princípio da impessoalidade, pois evidenciou o ato legislativo, publicidade com fins de promoção pessoal (art. 111 e 115, § 1º da Constituição Paulista; art. 37, § 5º da CF);

(c) do princípio da moralidade administrativa, considerando que foi atribuído ao próprio municipal o apelido do senhor Prefeito Municipal, segundo as informações e provas existentes nos autos, ou seja, pessoa viva, no exercício do mandato de chefe do Executivo local (art. 111 da Constituição Paulista; art. 37, “caput” da CF).

Pois bem.

É fora de duvida que a denominação de logradouros públicos municipais trata-se de matéria de interesse local (CF, art. 30, I), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. E, vale acrescentar, não há na Constituição em vigor reserva dessa matéria em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

Contudo, afigura-se necessário distinguir as seguintes situações:        (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, caso em que a iniciativa é concorrente;    

(b) o ato de atribuir nomes aos próprios e aos logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência administrativa privativa do Poder Executivo.

No Município, à Câmara Municipal incumbem as funções legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. “Nessa sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal.” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., pp. 427 e 508.)

Pois bem, em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. (ob. cit., p. 429).

Assim, no exercício de sua função normativa, a Câmara está habilitada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

Por outro lado, a nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 2.ª ed., p. 285). De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível, principalmente nos grandes aglomerados urbanos.

Diverso, porém, é o ato de denominar os próprios públicos, inclusive nos casos em que não se busca apenas permitir a orientação da população, mas sim homenagear determinadas pessoas ou fatos históricos.

Note-se: nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente estabelecidos em lei editada para regulamentar essa matéria. 

Definidas essas premissas básicas, entretanto, é imperativo o reconhecimento da inconstitucionalidade do ato normativo que é examinado no presente incidente.

É que ao se atribuir, especificamente, determinado nome a próprio integrante do patrimônio público municipal, a lei não se limitou ao natural conteúdo de normas abstratas ou teóricas, instituídas em caráter permanente e de generalidade.

Ou seja, a Câmara não pode, em nosso regime constitucional, invadir a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, atribuindo, especificamente e de modo individualizado, a determinados próprios integrantes do Município, denominação concreta.

As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos do Poder Legislativo, que invadem a esfera de competência constitucional do Poder Executivo.

Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula de Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a Administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis (Estado legal), pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, XIV).

Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

 

“(...)

Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes (...) não é lícito ao Parlamento editar, ao seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial. (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194.)

(...)”

 

Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).

Ao examinar assunto correlato, no julgamento da Repr. n.º 1.117-SP, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK consignou no seu respeitável Voto que:

“(...)

No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do Poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça.

Tudo isso posto de lado, porque desnecessário ao completo esquema da questão de inconstitucionalidade que aqui se discute, reponta claro o argumento do Presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo: parece-lhe que a competência para dar nome a logradouros públicos, porque não disciplinada na lei fundamental, há de sê-lo em lei ordinária; e que entre aqueles não há por que distinguir os de uso especial da Justiça dos vinculados aos demais poderes, ou entregues ao uso comum do povo. Aquela primeira ideia se viu desenvolver com esmero pelos fundadores da federação norte-americana, e, dessa e de outras fontes, foi sabidamente assimilada pelo direito público brasileiro: tudo quanto a Carta não diz por si mesma, di-lo-á não o Governo, nem tampouco a Justiça, mas o Congresso, compositor, por excelência, da ordem jurídica que a lei fundamental encabeça, sem poder exaurir.

Essa regra eminente traz, porém, consigo, duas presunções tácitas, a ditar-lhe o exato contorno. A primeira é a de que esse espaço a ser preenchido pela produção congressional reclame substância normativa, vestida da abstração e da generalidade que lhe são próprias. A segunda, indissociável da precedente, é a de que o vasto domínio dos poderes implícitos do Congresso não pretenda estender-se sobre área reservada pela lei fundamental às prerrogativas do Executivo e do Judiciário, com todos os desdobramentos necessários a que se não lhes afronta a independência.

(...)”

Em suma, a concessão de denominação a determinado bem municipal é ato concreto de administração, parte integrante do serviço público de sinalização urbana, cujo único responsável é o Prefeito.

Não há como aceitar a interpretação que inclui no rol dos poderes implícitos da Câmara a competência para editar leis formais, desvestidas dos atributos de generalidade e abstração, tampouco estender esses poderes sobre área de atuação exclusiva do Poder Executivo, a quem compete administrar os bens públicos e prestar os serviços públicos municipais. O ato de atribuir nomes a logradouros ou prédios públicos é mero corolário do poder de administrar.

Bem a propósito, ao examinar leis de conteúdo semelhante, esse egrégio Tribunal de Justiça decidiu que:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente (ADI nº 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, j. em 20/7/2005).

(...)

EMENTA: Constitucional. ADI. Inciso XV do artigo 35 da Lei Orgânica do Município de Olímpia. Atribui à Câmara, com sanção do Prefeito, dar denominações a próprios, vias e logradouros públicos, inclusive de pessoas vivas que mereçam e justifiquem a homenagem. Matéria relativa à direção superior da administração municipal. Usurpação de atribuições do Chefe do Executivo. Inconstitucionalidade. Violação do disposto nos artigos 5.º, 47, incisos II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. (ADI 163.689-0/3-00, Rel. Des. Luiz Tâmbara, j. em 22/7/2009, v.u.)

(...)”

Em suma, a Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão inafastável de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

Acrescente-se que nem mesmo a iniciativa do Prefeito para a lei, nessa matéria, afastaria o vício de inconstitucionalidade.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, também vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

Ademais, o fato de a lei ter atribuído ao próprio Municipal o nome de pessoa viva, particularmente o Prefeito, durante o exercício do mandato eletivo, revela, de modo inequívoco, que foi violado o princípio da impessoalidade, que rege a atividade pública, seja ela administrativa ou legislativa, vedando-se a realização de publicidade para fins de promoção pessoal.

Violou-se também, nessa mesma senda, o princípio da moralidade administrativa.

O posicionamento do Col. STF é pacífico a respeito desse tema.

Confira-se:

“(...)

Publicidade de atos governamentais. Princípio da impessoalidade. (...) O caput e o parágrafo 1º do art. 37 da CF impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo, informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens, aí incluídos slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de servidores públicos. A possibilidade de vinculação do conteúdo da divulgação com o partido político a que pertença o titular do cargo público mancha o princípio da impessoalidade e desnatura o caráter educativo, informativo ou de orientação que constam do comando posto pelo constituinte dos oitenta. (RE 191.668, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 15-4-2008, Primeira Turma, DJE de 30-5-2008.)

(...)

O inciso V do art. 20 da CE veda ao Estado e aos Municípios atribuir nome de pessoa viva a avenida, praça, rua, logradouro, ponte, reservatório de água, viaduto, praça de esporte, biblioteca, hospital, maternidade, edifício público, auditórios, cidades e salas de aula. Não me parece inconstitucional. O preceito visa a impedir o culto e a promoção pessoal de pessoas vivas, tenham ou não passagem pela Administração. Cabe ressaltar, que Proibição similar é estipulada, no âmbito federal, pela Lei 6.454/1977. (ADI 307, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 13-2-2008, Plenário, DJE de 1º-7-2009.)

(...)

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2692, de 06 de fevereiro de 2006, de Ferraz de Vasconcelos.

São Paulo, 26 de julho de 2012.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

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