Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0206557-05.2012.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: Município de Americana e Juízo “ex officio

Apelado: Companhia Ultragaz S.A.

Objeto: Lei Municipal nº 4.595/2008 e Decreto Municipal nº 7.612/2008 de Americana

 

 

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.595/2008 e Decreto Municipal nº 7.612/2008 de Americana. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 22, inciso IV da Constituição Federal.

2)      Exigência para comercialização de botijões de gás (GLP) de etiqueta, rótulo ou lacre mencionando a tara do peso/tara dos botijões, bem como pesagem dos mesmos diante dos compradores. Violação ao princípio federativo por invasão da competência da União para legislar sobre direito energia (art. 22, I e IV, CF.).

3)      Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.595/2008 e, por arrastamento, do Decreto Municipal nº 7.612/2008 de Americana.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, quando do julgamento da apelação cível nº 959.763-5/8 da Comarca de Americana, na sessão realizada em 18 de abril de 2012, figurando como Relator o Des. Osni de Souza.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.595/2008 de Americana que “Obriga a pesagem, a informação da tara dos botijões de gás de cozinha (GLP) e dá outras providências” e do Decreto Municipal nº 7.612/2008 que a regulamentou.

Em conformidade com o v. acórdão (fls. 221/227), a inconstitucionalidade dos referidos diplomas normativos decorre de sua contrariedade ao art. 22, inciso IV da Constituição Federal, pois, nos termos do voto do relator:

“(...)

As normas impugnadas nos presentes autos, como já se anotou, cuidam da forma de distribuição de gás liquefeito de petróleo – GLP, tratando, pois, de distribuição de forma de energia, cuja competência legislativa é privativa da União, conforme dispõe o artigo 22, inciso IV, da Constituição Federal:

(...)

Anote-se, apenas para que não restem dúvidas a respeito, não ter havido delegação de competência da União, aos Estados ou Municípios.

A legislação editada pelo Município, destarte, ao tratar de competência privativa da União, sem a necessária delegação, afronta ao princípio do pacto federativo e, consequentemente, é inconstitucional.

É a síntese do ocorrido nos autos.

O incidente deve ser conhecido, e merece acolhimento.

A Lei nº 4.595/2008 do Município de Americana que Obriga a pesagem, a informação da tara dos botijões de gás de cozinha (GLP) e dá outras providências, estabelece que:

“Art. 1º  Os botijões de gás de cozinha (GLP) deverão conter etiqueta, rótulo ou lacre que exiba a informação de sua tara e do peso bruto após o envasamento.

Art. 2º  Os revendedores de botijões de gás de cozinha (GLP), fixos ou móveis, com exceção das motos, deverão estar equipados com balança digital e pesar o botijão à vista do consumidor.

Art. 3º  O Poder Executivo regulamentará a presente lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados de sua publicação.

Art. 4º  As despesas com a execução desta lei correrão por conta das disposições orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º  Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

A referida lei foi regulamentada pelo Decreto Municipal nº 7.612/2008 de Americana.

Não obstante o louvável propósito do legislador municipal, ao estabelecer obrigação para os revendedores de botijões de gás de cozinha (GLP), fixos ou móveis, de pesar o botijão à vista do consumidor e de trazer etiqueta, rótulo ou lacre que exiba a informação de sua tara e do peso bruto após o envasamento invade competência legislativa privativa da União nos termos do art. 22, inciso IV, da Constituição Federal.

A Lei Municipal nº 4.595/2008 de Americana viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (art. 1º e art. 144 da Constituição Paulista).

A matéria disciplinada na lei impugnada refere-se às condições da distribuição e comercialização de botijões de gás de cozinha (GLP), encontrando-se no âmbito da competência legislativa privativa da União (art. 22, IV da CF), por se tratar de questão relativa a uma forma de energia.

Não há nem mesmo competência legislativa concorrente entre União, Estado ou Município para legislar sobre energia (art. 24 da CF).

A pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da CR, não há espaço para o legislador municipal estabelecer as condições em que o botijão de gás de cozinha (GLP) deva ser comercializado, sob pena de converter a competência suplementar do Município em competência concorrente, da qual a comuna não dispõe.

A competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

Assim, na hipótese em análise, seria admissível, por exemplo, que o Município legislasse de modo suplementar a respeito do horário de funcionamento dos fornecedores de gás de cozinha, por tratar-se de assunto de interesse local, sendo pacífico o entendimento do Col. STF nesse particular tomando por analogia as farmácias e drogarias: AI 622.405-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 22-5-2007, Segunda Turma, DJ de 15-6-2007; AI 729.307-ED, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 27-10-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009; RE 189.170, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 1º-2-2001, Plenário, DJ de 8-8-2003; RE 321.796-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 8-10-2002, Primeira Turma, DJ de 29-11-2002; RE 237.965-AgR, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-2-2000, Plenário, DJ de 31-3-2000; RE 182.976, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 12-12-1997, Segunda Turma, DJ de 27-2-1998; ADI 3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 29-8-2007, Plenário, DJ de 11-10-2007.

Nessa mesma linha de raciocínio, pode ainda o Município legislar sobre edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança em imóveis destinados à comercialização do gás de cozinha.

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar à legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estado e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei Municipal nº 4.595/2008 de Americana,        por invadir competência da União para legislar sobre direito à energia (art. 22, I e IV, CF), violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e o alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota, a propósito, Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da CR/88, prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Sendo inconstitucional a Lei Municipal nº 4.595/2008 de Americana, seu decreto regulamentador (Decreto Municipal nº 7.612/2008) é alcançado por esse vício em relação de sua dependência, como já decidido (RTJ 219/143), à luz da inconstitucionalidade consequencial ou por arrastamento.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade Lei Municipal nº 4.595/2008 de Americana e, por arrastamento, do Decreto Municipal nº 7.612/2008 que a regulamentou.

 

São Paulo, 01 de outubro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

aca