ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo n.º 0226394-80.2011.8.26.0000

Suscitante: 2.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Interessados: Câmara Municipal de Embu e outros

 

                   Ementa: Arguição de inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 2.002, de 12/7/2002, de Embu, que autorizou a desafetação de uma praça pública, incorporada ao patrimônio do Município de Embu em razão do registro de loteamento, e sua doação à Mitra Diocesana de Campo Limpo, independentemente de avaliação e prévio certame licitatório. Estado brasileiro é leigo ou laico. Separação entre Estado e Igreja. Incompatibilidade com o art. 19, inciso I, da Carta Magna. Desafetação de área institucional de loteamento. Inobservância da vedação contida no art. 180, inciso VII, da Constituição do Estado de São Paulo. Desobediência aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, motivação, eficiência e interesse público (CE, art. 111).Parecer pela procedência da presente arguição.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

                   No julgamento da Apelação Cível n.º 0012814-36.2002.8.26.0176, verificado nos autos de ação popular movida por cidadão contrário à doação pelo Município de Embu de área pública a entidade religiosa, a 2.ª Câmara de Direito Público desse egrégio Tribunal de Justiça suscitou incidente de inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 2002/2002, de Embu, que autorizou a desafetação do mencionado bem público e sua doação a particular.

                   A lei sobre a qual paira a suspeita de inconstitucionalidade reza o seguinte:

 

                   LEI MUNICIPAL Nº 2.002, DE 12/07/2002

Dispõe sobre desafetação de área localizada na Vila Maria Auxiliadora, autoriza a alienação e dá providências correlatas.

 

                   Art. 1.º Fica desafetada de sua condição de uso público, passando para a categoria de bem dominial uma área com 1.473,94m² (um mil quatrocentos e setenta e três metros e noventa e quatro decímetros quadrados), localizada na Rua Santo Antônio, constituída de parte do Sistema de Recreio da Quadra F do Loteamento Vila Maria Auxiliadora, zona urbana do Distrito e Município de Embu, Comarca de Itapecerica da Serra e Estado de São Paulo, assim descrito:

 

"Principia na estaca "0" que está situada na lateral da Rua Santo Antônio, distante 25,00m da Rua São José, lado esquerdo de quem desta Rua se dirige para o terreno pela Rua Santo Antônio, daí segue em diversas retas nos seguintes rumos e distâncias: estaca 0-1 NW23º26'29" e 19,90m, estaca 1-2 NW23º17'19" e 19,90m, estaca 2-3 NW23047'20" e 20,11m, confrontando da estaca 0 a 1 com os Lotes 15 e 14, da estaca 1 a 2 com o Lote 13, da estaca 2 a 3 com os Lotes 12 e 11, daí deflete à direita e segue com o rumo NE81º55'01" e 37,24m até MC12A, daí deflete à direita e segue no rumo SE09º20'49" e 46,34m, confrontando nestes dois segmentos com a área remanescente; do MC12 deflete à direita e segue em reta margeando a Rua Santo Antônio no rumo SW77º37'14" e na distância de 25,00m até a estaca "0" Inicio da presente descrição", encerrando uma área de 1.473,94m².

 

                Art. 2.º Fica o Executivo Municipal autorizado a doar a área descrita no artigo 1º, à Mitra Diocesana de Campo Limpo, para construção de Igreja e dependências para atendimento religioso e social.

 

                Art. 3.º A doação de que trata a presente Lei ficará automaticamente revogada se não iniciada a construção, na área doada, no prazo de dois anos a partir da assinatura da escritura pública de transferência do patrimônio.


                Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no "caput", fica autorizado o início das obras a partir da publicação desta Lei.


                Art. 4.º As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta de verbas próprias do Orçamento vigente.


Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as suas disposições em contrário
.

 

                   Data venia, a arguição é procedente.

                   Com efeito, na ordem constitucional em vigor existe a separação total entre Estado e Igreja;a República Federativa do Brasil é leiga ou laica, isto é,não professa nenhuma religião,embora – no capítulo dos direitos e garantias fundamentais – a Constituição considere inviolável a liberdade de consciência e de crença, além de assegurar o livre exercício dos cultos religiosos e garantir, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

                   Porém, uma coisa é a liberdade de crença e religião, típico direito de primeira dimensão, assegurado pela vigente Constituição em favor de todos os indivíduos, outra coisa bem diferente é o Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, o que essa mesma Carta expressamente proíbe, conforme se vê do seu art. 19, inciso I.

                   Analisando tal disposição constitucional, Fernando Gonzaga Jayme anotou que:

 

                   A proibição dirigida aos entes federativos (...) constitui instrumento destinado a salvaguardar princípio republicano fundamental para a existência do Estado Democrático, que é a de assegurar a liberdade de consciência e de crença mediante o reconhecimento da igualdade de todos os cultos e credos.

                   A Constituição deve proteger o homem, suas instituições e suas crenças por serem esses os elementos mais centrais da convivência e da pertinência dos indivíduos em uma sociedade pluralista.

                   Essa norma, como ensina Hesse, ‘fundamenta a neutralidade religiosa e ideológica do estado como pressuposto de um processo político livre e como base da estatalidade jurídica atual’.

                   A ressalva estabelecida na parte final do inciso I deverá ser disciplinada por lei aprovada por cada ente federativo que pretender estabelecer relações de colaboração de interesse público com organizações religiosas, observada, naturalmente, as proibições contidas na primeira parte do dispositivo.” (Comentários à Constituição Federal de 1988, Forense, Rio de Janeiro, 2009, 1.ª edição, Coordenadores: Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra, comentário ao art. 19, I, p. 538)

 

                   É certo que a norma constitucional em exame, na sua parte final, ressalva a colaboração de interesse público, a ser executada na forma da lei, o que pressupõe que o Poder Público possa até incentivar ou fomentar alguma atividade desenvolvida por instituições, grupos ou agentes religiosos, desde que presente o interesse público, atendidos os critérios estabelecidos por lei.

                   No caso em análise, porém, em que por lei área pública foi desafetada de sua destinação original (bem de uso comum) e trespassada para a categoria de bem dominial, seguida de sua doação a entidade religiosa, não é possível identificar, prima facie, o enquadramento dessa situação na ressalva constitucional, que, de mais a mais, é dependente de legislação integradora, a ser editada pela entidade competente, da qual não se tem noticia.

                   Em verdade, a doação de bem público a entidade privada para a construção de templo religioso e suas dependências encontra óbice constitucional intransponível, lembrando, ainda, que indiretamente as igrejas e templos religiosos são subvencionados pelo Poder Público, visto que gozam de imunidade tributária, isto é, da dispensa constitucional do pagamento de impostos.             

                  Como a Constituição Federal em vigor proíbe o Estado de estabelecer cultos ou subvencioná-los, e a destinação de área pública para a construção de templo religioso não atende ao pressuposto do interesse público, mas sim o interesse da própria Igreja e de seus fiéis seguidores, é patente a violação, na espécie, do disposto no art. 19, inciso I, da referida Carta Política.

                   Por outro lado, o bem público objeto de doação trata-se inegavelmente de área definida em projeto de loteamento como área verde ou institucional, insuscetível, pois, de modificação quanto a sua destinação, fim e objetivos originariamente definidos, à vista do disposto no art. 180, inciso VII, da Constituição do Estado de São Paulo, cujas ressalvas não se aplicam a este caso. 

                   Bem a propósito, ao examinar propositura semelhante, o Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo posicionou-se no seguinte sentido:

 

                   Ementa: Açãodireta de inconstitucionalidade. Lei municipal. Desafetação de bem de uso comum. Permissão de uso sem licitação. 1. Viola o art. 117 da CE a norma municipal que outorga permissão de uso de bem de uso comum a particular sem a necessária licitação. 2. A desafetação de bem de uso comum somente se mostra legítima em casos excepcionais, quando afastado o prejuízo para a finalidade da sua instituição. Ação julgada procedente.” (ADI 0228513-82.2009.8.26.0000, Rel. Des. Laerte Sampaio, j. em 9/12/2009)  

                          

                   Enfim, malgrado os elevados propósitos que orientaram a edição dessa lei, é inegável que saíram feridos com tal iniciativa alguns princípios que são de observância compulsória, a exemplo da moralidade, impessoalidade, finalidade, motivação, eficiência e interesse público, isso sem falar que a regularidade da doação dependeria ainda da prévia realização de certame licitatório.

                   Nessa conformidade, o parecer é favorável ao acolhimento da arguição.

 

                   São Paulo, 15 de setembro de 2011.

 

                   Sérgio Turra Sobrane

                   Subprocurador-Geral de Justiça

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