Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0227995-87.2012.8.26.0000

Suscitante: Décima Terceira Câmara de Direito Público

Objeto da impugnação: Lei Estadual nº 13.747, de 07 de outubro de 2009

 

 

 

 

 

Ementa:

1. Incidente de inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 13.747, de 07 de outubro de 2009, que “obriga os fornecedores de bens e serviços localizados no Estado de São Paulo a fixar data e turno para a entrega dos produtos ou realização dos serviços aos consumidores e dá outras providências”.

2. Ofensa à regra da repartição constitucional de competências associada diretamente ao princípio federativo (art. 1º e art. 18 da CF/88). Princípios de observância obrigatória pelos Estados (art. 1º da Constituição do Estado de São Paulo). Lei de iniciativa parlamentar. Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47, XVIII, da Constituição Paulista).

3. Parecer pelo reconhecimento da inconstitucionalidade.

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Colendo Órgão Especial

 

Trata-se de Acórdão proferido pela Décima Terceira Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 0048313-81.2010.8.26.0053, que suscitou a instauração de incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a conclusão no sentido da inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 13.747, de 07 de outubro de 2009, que “obriga os fornecedores de bens e serviços localizados no Estado de São Paulo a fixar data e turno para a entrega dos produtos ou realização dos serviços aos consumidores e dá outras providências”.

Assiste razão ao Colendo Órgão Fracionário. Vejamos.

A Lei Estadual n. 13.747, de 07 de outubro de 2009, que “obriga os fornecedores de bens e serviços localizados no Estado de São Paulo a fixar data e turno para a entrega dos produtos ou realização dos serviços aos consumidores, e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Ficam os fornecedores de bens e serviços localizados no Estado obrigados a fixar data e turno para a realização dos serviços ou entrega dos produtos aos consumidores.

Art. 2º - Os fornecedores de bens e serviços deverão estipular, no ato da contratação, o cumprimento das suas obrigações nos turnos da manhã, tarde ou noite, em conformidade com os seguintes horários:

I- turno de manhã: compreende o período entre 7h00 e 12h00 (sete e doze horas);

II- turno da tarde: compreende o período entre 12h00 e 18h00 (doze e dezoito horas);

III-turno da noite: compreende o período entre 18h00 e 23h00 (dezoito e vinte e três horas).

Parágrafo único-vetado.

Art. 3º - vetado:

I-                   vetado;

II-                 vetado.

Art. 4º - vetado:

I-vetado;

II-vetado.

Art. 5º - O Poder Executivo regulamentará a presente lei.

Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

A inconstitucionalidade decorre da violação ao disposto no art. 1º da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art. 1º O Estado de São Paulo, integrante da república Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal”.

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda a deliberação de proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a ideia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Estadual que regula matéria cuja competência é do legislador federal desrespeita a repartição constitucional de competências e viola, assim, o princípio federativo.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que a prestação de serviço das concessionárias de serviço público federal de distribuição de energia elétrica é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 21, XII, alínea “b” e do  art. 22, IV, ambos da CR/88, verbis:

“Art. 21. Compete à União:

(...)

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

(...)

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

III-               águas, energia, informática, telecomunicações e rádio difusão”.

Feitas essas primeiras considerações, deve-se observar que as concessionárias de serviço público federal de distribuição de energia elétrica estão sujeitas à regulamentação e à fiscalização do Poder concedente (União) no tocante à qualidade e eficiência dos serviços prestados, bem como em relação à forma e às condições de relacionamento com seus consumidores.

Nestes termos, aliás, determina o art. 29, da Lei de Concessões (Lei Federal n. 8.987/95), que:

“Art. 29. Incumbe ao poder concedente:

I-                   regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação;

(...)

VII- zelar pela boa qualidade do serviço, receber, apurar e solucionar queixas e reclamações dos usuários, que serão cientificados, em até trinta dias, das providências tomadas;

(...)

XII- estimular a formação de associações de usuários para defesa de interesses relativos ao serviço”.

 

Por outro lado, a Lei Federal n. 9.427/96, atribuiu à ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) a competência para regulamentar e fiscalizar a prestação do serviço público de energia elétrica.

Com efeito, os arts. 2º e 3º, XIX, da Lei Federal n. 9.427/96, estabelecem:

“(...)

Art. 2º - A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

(...)

Art. 3º - Além das atribuições previstas nos incisos, II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no §1º, compete à ANEEL:

(...)

XIX- regular o serviço concedido, permitido e autorizado e fiscalizar permanentemente a sua prestação”.

 A ANEEL, no uso de suas atribuições, editou a Resolução Normativa n. 456/00, que disciplina a forma e o prazo para a prestação dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica, através dos arts. 26, 27, 40, 107 e 108, verbis:

“Art. 26. A vistoria de unidade consumidora, quando de fornecimento em tensão de distribuição inferior a 69kV, será efetuada no prazo de 3 (três) dias úteis, contados da data do pedido de fornecimento, ressalvado os casos previstos no art. 28.

Parágrafo único. Ocorrendo reprovação das instalações de entrada de energia elétrica, a concessionária deverá informar ao interessado, por escrito, o respectivo motivo e as providências corretivas necessárias.

(...)

Art. 27- A ligação de unidade consumidora, quando de fornecimento em tensão de distribuição inferior a 69 kV, será efetuada de acordo com os prazos a seguir fixados:

I - 3(três) dias úteis para unidade consumidora do grupo “B”, localizada em área urbana;

            II- 5 (cinco) dias úteis para unidade consumidora do Grupo “B”, localizada em área rural; e

            III- 10 (dez) dias úteis para a unidade consumidora do Grupo “A”, localizada em área urbana ou rural.

Parágrafo único. Os prazos fixados neste artigo devem ser contados a partir da data da aprovação das instalações e do cumprimento das demais condições regulamentadores.

                        (...)

                        Art. 40. A concessionária efetuará as leituras, bem como os faturamentos, em intervalos de aproximadamente 30 9trinta) dias, observado o mínimo de 27 (vinte e sete) e o máximo de 33 (trinta e três) dias, de acordo com o calendários respectivo.

                       §1º - O faturamento inicial deverá corresponder a um período não inferior a 15 (quinze) nem superior a 47 (quarenta e sete) dias.

                       §2º - Havendo necessidade de remanejamento de rota ou reprogramação do calendário, excepcionalmente, as leituras poderão ser realizadas em intervalos de, no mínimo, 15 (quinze) e, no máximo, 47 (quarenta e sete) dias, devendo a modificação ser comunicada aos consumidores, por escrito, com antecedência mínima de um ciclo completo de faturamento.

                       §3º - No caso de pedido de desligamento, mediante acordo entre as partes, o consumo e/ou a demanda finais poderão ser estimados com base na média dos 3 (três) último faturamentos, no mínimo, e proporcionalmente ao número de dias decorridos entre as datas de leitura e do pedido, ressalvado o disposto no art. 48.

                       Art. 107. Cessado o motivo da suspensão a concessionária restabelecerá o fornecimento no prazo de 48horas, após a solicitação do consumidor ou a constatação do pagamento.

                       (...)

                       Art. 108. Fica facultado à concessionária implantar procedimento de religação de urgência, caracterizado pelo prazo de até 4(quatro) horas entre o pedido e o atendimento, o qual, nas localidades onde for adotado, obriga a concessionária a :

I – informar ao consumidor interessado o valor e o prazo relativo à religação normal e da de urgência; e

II- prestar o serviço que qualquer consumidor solicitar”.

Assim, a legislação federal não estabelece às concessionárias de serviços públicos federais de distribuição de energia elétrica as obrigações e sanções constantes da Lei Estadual impugnada. E, na medida em que não cabe ao Estado impor às concessionárias de serviço público federal de distribuição de energia elétrica obrigações e sanções diversas das previstas pelas legislações federais, configura-se a inconstitucionalidade.

Note-se que não se trata de negar a existência da competência concorrente do Estado de legislar para aplicação do Código de Defesa do Consumidor prevista, nos arts. 4º, inciso VII, 6º, inciso X, e 22, todos da Lei n. 8.038/90, no que diz respeito à prestação de serviço público, eis que estes já se encontram regulamentados pela legislação federal,  na medida em que a União é detentora de competência privativa para legislar sobre a exploração da concessão de serviços e instalações de energia elétrica.

 O mesmo se pode dizer quanto ao fato de haver menção no tocante à aplicação genérica ao Código de Defesa do Consumidor no art. 7º da Lei n. 8.987/75, na medida em que não legitima o Estado para legislar de maneira diversa sobre assunto já disciplinado e regulamentado pela legislação federal.

A Lei Estadual impugnada também se afigura inconstitucional por violar o art. 47, XVIII, da Constituição Estadual, cuja redação é a seguinte:

“Art. 47- Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

XVIII- enviar à Assembleia Legislativa projeto de lei sobre o regime de concessão ou permissão de serviços públicos”.

Observe-se que compete privativamente ao Governador de Estado legislar sobre o regime de concessão ou permissão de serviços públicos.

Como a Lei Estadual é de iniciativa parlamentar, a mesma se afigura inconstitucional devido ao vício de iniciativa.

Por fim, a Lei Estadual n. 13.747/09 também padece de inconstitucionalidade por contrariar o art. 122 da Constituição Estadual, posto que o cumprimento das obrigações nela estabelecidas provocará quebra do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, por acarretar despesas não previstas contratualmente quando da outorga da concessão. 

Por essas razões, o parecer é pela declaração de inconstitucionalidade.

São Paulo, 21 de novembro de 2012.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

-Jurídico –

md