Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0228247-27.20011.8.26.0000

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público

Objeto: arts. 20, §§ 1º e 2º; 28; 29; 30; 31; 32 e 33 do Decreto Municipal nº 51.627, de 31/07/2010.

 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 9ª Câmara de Direito Público, dos arts. 20, §§ 1º e 2º; 28; 29; 30; 31; 32 e 33 do Decreto nº 51.627, de 31/07/2010, do Município de São Paulo. Dispositivos que obrigam os notários e oficiais de registro a não procederem, diante da constatação de débitos tributários, à lavratura e ou registro de instrumentos e negócios jurídicos que objetivem a transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos, sob pena de multa e responsabilidade subsidiária com o contribuinte. Regras que não se sustentam diante do art. 96, inc. II, alíneas “a” e “d” (que tratam da iniciativa do Poder Judiciário para a edição de leis que disponham sobre a organização de seus serviços auxiliares) e do art. 22, incisos I e XXV (que carreia à União, de forma exclusiva, a competência para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos), da Constituição Federal. Igual afronta à Carta Paulista (arts. 69, inc. II e 77). Precedente do C. Órgão Especial referente a disposições análogas, constantes de lei. Parecer pelo acolhimento da arguição.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 9ª  Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível nº 0029226-42.2010.8.26.0053, em que figuram como partes, de um lado, a ASSOCIAÇÃO DOS REGISTRADORES IMOBILIÁRIOS DE SÃO PAULO – ARISP e o COLÉGIO NOTORIAL DO BRASIL – SEÇÃO SÃO PAULO (apelantes) e, de outro, o SECRETÁRIO DAS FINANÇAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO (apelado).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), cogitando-se do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, dos arts. 20, §§ 1º e 2º; 28; 29; 30; 31; 32 e 33 do Decreto Municipal nº 51.627, de 31/07/2010, que obriga os notários e oficiais de registro a não procederem à lavratura e/ou registro de instrumentos e negócios jurídicos que objetivem a transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos, se existente, na ocasião, débito fiscal.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do ato normativo questionado (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

O Decreto Municipal nº 51.627, de 31/07/2010, “aprova o Regulamento do Imposto sobre Transmissão ‘Inter Vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição – ITBI-IV”.

O ato normativo impõe aos apelantes que respondam solidariamente com os contribuintes pelo débito tributário, acaso procedam à lavratura ou registro de instrumentos representativos da transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos sem exigir as certidões negativas.

Essas regras, segundo a tese acatada pela Câmara julgadora, desvirtuam os serviços registrais, olvidando competir ao Poder Judiciário estabelecer as normas de procedimento e das técnicas registrais. Os registradores, por outro lado, não são, a teor do art. 134, VI, CTB, responsáveis pelos débitos tributários.

Como o Decreto inova nesses temas, está em desacordo com as disposições do art. 96, inc. II, alíneas “a” e “d” (que tratam da iniciativa do Poder Judiciário para a edição de leis que disponham sobre a organização de seus serviços auxiliares[1]) e com o art. 22, incisos I e XXV (que carreia à União, de forma exclusiva, a competência para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos), da Constituição Federal. Igual afronta se verifica com as mesmas normas trasladadas para a Carta Paulista (art. 69, inc. II e 77).

Os dispositivos questionados têm a seguinte redação:

“Art. 20. Comprovada, a qualquer tempo, pela fiscalização, a omissão de dados ou a falsidade das declarações consignadas nas escrituras ou instrumentos particulares de transmissão ou cessão, o Imposto ou sua diferença será exigido com o acréscimo da multa de 100% (cem por cento), calculada sobre o montante do débito apurado, sem prejuízo dos acréscimos devidos em razão de outras infrações eventualmente praticadas.

§ 1º. Pela infração prevista no “caput” deste artigo respondem, solidariamente com o contribuinte, o alienante ou o cessionário.

§ 2º. Nos casos de omissão de dados ou de documentos demonstrativos das situações previstas no artigo 5º deste regulamento, além das pessoas referidas no § 1º deste artigo, respondem solidariamente com o contribuinte os notários, os oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos.

(...)

Art. 28. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos ficam obrigados a verificar a exatidão e a suprir as eventuais omissões dos elementos de identificação do contribuinte e do imóvel transacionado no documento de arrecadação, nos atos em que intervierem.

Art. 29. Para lavratura, registro, inscrição, averbação e demais atos relacionados à transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos, ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos obrigados a verificar:

I - a existência da prova do recolhimento do Imposto ou do reconhecimento administrativo da não incidência, da imunidade ou da concessão de isenção;

II - por meio de certidão emitida pela Administração Tributária, a inexistência de débitos de IPTU referentes ao imóvel transacionado até a data da operação;

III - a manifestação da Administração Tributária quanto à comprovação, pelo sujeito passivo, da situação prevista no § 4º do artigo 7º deste regulamento.

Parágrafo único. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos deverão transcrever os termos dos documentos a que se refere este artigo no instrumento, termo ou escritura que lavrarem.

Art. 30. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos ficam obrigados:

I - a facultar, aos encarregados da fiscalização, o exame em cartório dos livros, autos e papéis que interessem à arrecadação do Imposto;

II - a fornecer aos encarregados da fiscalização, quando solicitada, certidão dos atos lavrados ou registrados, concernente a imóveis ou direitos a eles relativos;

III - a fornecer dados relativos às guias de recolhimento.

Art. 31. Para lavratura, registro, averbação e demais atos relacionados à transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos, referentes à aquisição de unidades habitacionais financiadas pelo Fundo Municipal de Habitação, a que se refere o artigo 25 deste regulamento, ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos dispensados de exigir documento ou certidão, emitido pela Administração Tributária, que comprove a concessão de isenção do ITBI-IV.

Parágrafo único. A dispensa a que se refere o "caput" deste artigo fica condicionada ao atendimento das seguintes condições:

I - comprovação de que a origem dos recursos do financiamento é exclusivamente do Fundo Municipal de Habitação, o que deverá obrigatoriamente constar dos contratos aquisitivos;

II - ser a primeira aquisição feita pelo mutuário através do Fundo Municipal de Habitação, comprovada por declaração da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo - COHAB, constante do contrato.

Art. 32. Nas transmissões a que se refere o artigo 26 deste regulamento, ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos:

I - dispensados de exigir documento ou certidão que comprove a concessão da isenção;

II - obrigados a enviar mensalmente à Secretaria Municipal de Finanças relação com a identificação dos contribuintes beneficiados (nome, endereço e número de inscrição no Cadastro de Pessoa Física - CPF), o número do cadastro do imóvel e os dados da transmissão (data e valor).

§ 1º. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos que infringirem o disposto no inciso II do “caput” deste artigo ficam sujeitos à multa de R$ 1.190,13 (mil, cento e noventa reais e treze centavos), por transação não relacionada.

§ 2º. Observado o disposto no artigo 35 deste regulamento, valor da multa prevista no § 1º deste artigo será atualizado na forma do artigo 2º da Lei nº 13.105, de 29 de 2000.

Art. 33. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos que infringirem o disposto neste regulamento ficam sujeitos à multa de:

I - R$ 230,77 (duzentos e trinta reais e setenta e sete centavos), por item descumprido, pela infração ao disposto no artigo 28 deste regulamento;

II - R$ 5.769,54 (cinco mil, setecentos e sessenta e nove reais e cinquenta e quatro centavos), por item descumprido, pela infração ao disposto nos artigos 29 e 30 deste regulamento.

Parágrafo único. Observado o disposto no artigo 35 deste regulamento, os valores das multas previstas neste artigo serão atualizados na forma do artigo 2º da Lei nº 13.105, de 29 de 2000”.

São normas – como afirmado no parecer da Dra. EVELISE PEDROSO TEIXEIRA PRADO VIEIRA (fls. 301/305) – invasivas da competência legislativa da União.

É que, em termos constitucionais, não é dado ao município disciplinar assuntos relativos aos registros públicos e às atividades e ao regime e fiscalização dos serviços notoriais e de registro (CF, arts. 22, XXV e 236, § 1º, respectivamente).

Se o faz, como ocorre na hipótese dos autos, incide em flagrante inconstitucionalidade.

De resto e, a bem da verdade, o ato normativo reproduz vício análogo, reconhecido pelo C. Órgão Especial na Arguição de Inconstitucionalidade n. 994.08.217573-0, relatada pelo em. Des. CORRÊA VIANNA, relativa à Lei n. 14.256/2006, do Município de São Paulo.

Na lei anteriormente sindicada, os notários eram obrigados a constatar, por meio de certidões, a inexistência de débitos de IPTU e se sujeitavam à multa se procedessem ao registro desatendendo à regra.

Reconheceu-se, na oportunidade, que o Município de São Paulo acabou legislando sobre registro público e transmissão de propriedade de bem imóvel, invadindo, com isso, competência exclusiva da União (art. 22, incs. I e XXV, CF).

Além disso, as penalidades impostas aos notários, oficiais e prepostos, segundo o mesmo julgado, desconsideraram que a Carta Paulista atribui ao Poder Judiciário a aludida competência (arts. 69, II, “b” e 77), por se tratarem eles de serviços auxiliares da Justiça.

Confira-se:

“Incidente de inconstitucionalidade - Artigos 19 e 21 da Lei n. 11.154/91, com a redação dada pela Lei n. 14.256/06 - Obrigação imposta aos notários e registradores de verificar o recolhimento de imposto e a inexistência de débitos relativos ao imóvel alienado, sob pena de multa - Dispositivos que afrontam tanto a competência da União para legislar sobre registro público, como a do Poder Judiciário para disciplinar, fiscalizar e aplicar sanções aos que exercem tais atividades - Ofensa específica aos artigos 5º, “caput”, 69, II, "b" e 77 da Constituição do Estado - Procedência do incidente para declarar a inconstitucionalidade dos artigos mencionados” (Incidente de Inconstitucionalidade n. 994.08.217573-0, rel. Des. CORRÊA VIANNA, j. 05.05.2010).

Temos para nós que o Decreto Municipal nº 51.627, de 31/07/2010, que “aprova o Regulamento do Imposto sobre Transmissão ‘Inter Vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição – ITBI-IV” acabou reproduzindo o equívoco encontrado na lei mencionada, demandando o pronunciamento desse Colegiado em favor de sua insubsistência, à luz das normas-parâmetro constitucionais invocadas. Nesse passo, impõe-se considerar que é pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as leis que disponham sobre serventias judiciais e extrajudiciais são de iniciativa privativa dos Tribunais de Justiça, a teor do que estabelecem as alíneas "b" e "d" do inciso II do art. 96 da Constituição da República (Precedentes: ADI nº 1.935/RO, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 4/10/02; ADI nº 865/MA-MC, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 8/4/94).

Diante do exposto, o parecer é pelo acolhimento da presente arguição.

 

São Paulo, 16 de setembro de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

jesp



[1] “EMENTA Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Estadual (SP) nº 12.227/06. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Art. 96, II, "b" e "d", da Constituição Federal. 1. A declaração de inconstitucionalidade proferida por Tribunal estadual não acarreta perda de objeto da ação ajuizada na Suprema Corte, pendente ainda recurso extraordinário. 2. Vencido o Ministro Relator, que extinguia o processo sem julgamento do mérito, a maioria dos Julgadores rejeitou a preliminar de falta de interesse de agir por ausência de impugnação do art. 24, § 2º, item 6, da Constituição do Estado de São Paulo, com entendimento de que este dispositivo não serve de fundamento de validade à lei estadual impugnada. 3. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as leis que disponham sobre serventias judiciais e extrajudiciais são de iniciativa privativa dos Tribunais de Justiça, a teor do que dispõem as alíneas "b" e "d" do inciso II do art. 96 da Constituição da República. Precedentes: ADI nº 1.935/RO, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 4/10/02; ADI nº 865/MA-MC, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 8/4/94. 4. Inconstitucionalidade formal da Lei Estadual (SP) nº 12.227/06, porque resultante de processo legislativo deflagrado pelo Governador do Estado. 5. Ação direta que se julga procedente, com efeitos ex tunc” (ADI 3773, Relator(a):  Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 04/03/2009, DJe-167 DIVULG 03-09-2009 PUBLIC 04-09-2009 EMENT VOL-02372-01 PP-00132 RTJ VOL-00210-01 PP-00168 LEXSTF v. 31, n. 370, 2009, p. 47-97, g.n.).