Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0238642-78.2011.8.26.0000

Suscitante: 9ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 1.790 do Código Civil 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Dispositivo que confere mais direitos ao companheiro sobrevivente do que se concede ao cônjuge supérstite na sucessão. Ofensa ao princípio da isonomia e contrariedade da regra com o art. 226, § 3º da Constituição Federal. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 9ª Câmara de Direito Privado, nos autos de Agravo de Instrumento em que figuram como partes (...) E OUTROS (agravantes) e (...) E OUTROS (agravados).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 1790 do Código Civil.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPP).

Este é resumo do que consta dos autos.

Registro, de início, que, por provocação da C. 9ª. Câmara de Direito Privado, já se elevou ao C. Órgão Especial a tese de inconstitucionalidade do inc. II do art. 1790 do Código Civil, nos autos de arguição nº 177.115-0/2-00, de cujo julgamento ainda não se tem notícia.

Para a análise da questão trazida a lume, deve-se ter em mente que o art. 1790 do Código Civil traz regras sobre a sucessão na união estável que diferem daquelas aplicáveis aos cônjuges por força do art. 1829 do mesmo Codex.

As divergências foram delineadas por Euclides de Oliveira, citado pelo Órgão Fracionário, in verbis:

“A comparação entre os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro mostra sensíveis desvantagens ao cônjuge, seja por cuidar-se de herdeiro necessário, como receber quantia superior ao companheiro nos percentuais de quotas em concorrência com os descendentes. Além disso, o cônjuge participa da herança sobre os bens particulares do falecido, enquanto o companheiro só tem direito hereditário sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência. Mas, em determinadas situações, inverte-se o tratamento legal, aparecendo o companheiro como privilegiado (...). Isso acontece em duas hipóteses de fácil exame:

A primeira decorre do direito do companheiro concorrer na herança com os descendentes sem restrições quanto ao regime de bens adotado na união estável (...). Em qualquer situação (...), o companheiro continua partícipe da herança sobre os bens havidos onerosamente durante a vida comum. Para o casado existem as ressalvas do artigo 1.829 do Código Civil, pois o direito de concorrer na herança com descendentes não ocorre se o casamento foi celebrado no regime de comunhão universal, no regime de separação obrigatória, ou se no regime da comunhão parcial o falecido não deixou bens particulares.

A outra vantagem do companheiro resulta da forma da concorrência, que se dá cumulativamente, isto é, direito de meação sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência e mais o direito de uma quota na herança devida aos descendentes” (fls. 96/97)

O tratamento diferenciado entre cônjuges e companheiros é incompatível com a Constituição Federal.

Casamento e união estável são igualmente dignos, solidários e respeitosos, de tal modo que não cabe ao legislador infraconstitucional desrespeitar a isonomia instituída entre esses dois modos de se constituir a família. Não pode, por isso, estabelecer melhores condições para conviventes em detrimento daqueles que optaram pelo casamento:

“Se não se admite tratamento discriminatório, prejudicial ao companheiro em outros pontos, tampouco se mostra compatível com o princípio isonômico esse benefício maior que o Novo Código Civil concede a quem não tenha sido casado, sem falar na diminuição que essa atribuição de bens ao companheiro que já tem a meação ocasiona aos sucessores descendentes ou ascendentes do autor da herança” (OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Inventários e partilhas: direito das sucessões. Sebastião Luiz Amorim. 15ª. ed., rev. atual. e ampl. em face do novo Código Civil. São Paulo: Universitária de Direito, 2003, p. 174)

Por isso, o art. 1.790 do CC não se ajusta ao art. 226, § 3º, CF, em cuja parte final se encontra comando para estimular a conversão da união estável em casamento.

O dispositivo em exame caminha, na verdade, em sentido oposto e desestimula a conversão da união de companheiros cujos parceiros tenham descendentes de outras relações. Por que converteriam suas uniões estáveis em casamento se aquelas lhes concedem mais direito?

Consigne-se que tramitam pelo Congresso Nacional projetos de lei que visam afastar essa incongruência.

De toda sorte, pensamos, com apoio em PALERMO e DANTAS JÚNIOR, que, enquanto não aprovadas essas proposições, caberá aos magistrados “acatar a tese relacionada à inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, por violação à igualdade entre as diversas entidades familiares, com a aplicação às sucessões, em virtude da morte do convivente, dos dispositivos contidos no art. 1.829 e seguintes, entendendo que o legislador ao se referir ao cônjuge também pretendeu abranger, por extensão, o convivente...” (PALERMO, Carlos Eduardo de Castro. O cônjuge e o convivente no direito das sucessões: modificações introduzidas pelo Código Civil de 2002. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007, p. 116).

O tema foi aborado em recente Encontro de Juízes de Família do Interior do Estado de São Paulo sob a coordenação da E. Corregedoria Geral de Justiça e foi objeto dos seguintes enunciados, com os quais concordamos:

49. O art. 1.790 do código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.

50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação”.

Daí porque o tratamento diferenciado e assistemático, bem detectado pela C. Câmara, constitui-se num equívoco do legislador, pois contraria a mens legis constitucional e, por isso mesmo, conduz ao reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo em estudo.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração da inconstitucionalidade art. 1.790 do Código Civil.

 

São Paulo, 21 de setembro de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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