Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0242148-62.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: (...)

Apelada: Municipalidade de Santos

Objeto: Art. 3º, parágrafo único da Lei Complementar Municipal 350/99, de Santos

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar Municipal nº 350/99, de Santos, que determina, na remuneração de horas extras, a adoção, como base de cálculo, do padrão dos vencimentos dos servidores. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 7º, XVI, c.c. o art. 39, § 3º da CR.

2)      Inadmissibilidade do incidente. Questão que já foi apreciada pelo Col. Órgão Especial do TJSP anteriormente, quando do julgamento do Incidente de Inconstitucionalidade nº 0091659-13.2011.8.26.0000, tendo sido reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo questionado. Desnecessidade de novo pronunciamento do Órgão Especial a respeito da mesma norma. (art. 481, parágrafo único, do CPC).

3)      Ad eventum, considerada a hipótese de admissão do incidente, inexistência de inconstitucionalidade. Emprego da expressão “remuneração”, no art. 7º, XVI da CR, no sentido impróprio, tendo em vista que esse dispositivo constitucional refere-se aos direitos dos trabalhadores regidos pela CLT.

4)      Aplicação do art. 7º, XVI da CR aos servidores estatutários, por força do art. 39, § 3º da CR, que exige interpretação sistemática, considerando o disposto no art. 37, XIV da CR.

5)      Impossibilidade, ademais, de reconhecimento de inconstitucionalidade e suprimento de lacuna legislativa daí decorrente, pela atuação direta do Tribunal ao decidir. Hipótese em que o Tribunal atuaria como “legislador positivo”, o que não se mostraria legítimo. Precedentes do Col. STF e do Col. TJSP.

6)      Parecer no sentido do não conhecimento do incidente. Alternativamente, parecer pela rejeição da arguição.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 13ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível 0027074-46.2010.8.26.0562, da Comarca de Santos, na sessão realizada em 24 de agosto de 2011, sendo relatora a Desembargadora Luciana Bresciani.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar 350/99 do Município de Santos.

Em conformidade com o v. acórdão de fls. 136/139, a inconstitucionalidade do ato normativo estaria centrada na sua contrariedade ao art. 7º, XVI, c.c. o art. 39, § 3º da CR/88, tendo em vista que a norma glosada determina que o cômputo de horas extras dos servidores municipais seja realizado apenas sobre o “vencimento-base”, e não sobre toda a sua remuneração.

Do voto da relatora colhe-se a seguinte passagem ilustrativa da discussão:

“(...)

O texto constitucional garante que a ‘remuneração’ será ao menos cinquenta por cento acima da normal, enquanto a lei municipal é mais restritiva, incluindo apenas o salário base. Decerto, a autonomia dos Municípios no que se refere à remuneração de seus próprios funcionários não alcança da possibilidade de limitar direitos garantidos pela Constituição Federal. Assim, mostra-se inconstitucional o art. 3º, parágrafo único, da LC 350/99 do Município de Santos.

 (...)”

É o relato do essencial.

Preliminarmente, deve-se concluir que o incidente não merecerá ultrapassar o juízo de admissibilidade.

O incidente ou arguição de inconstitucionalidade, previsto nos artigos 480 a 482 do CPC, existe a fim de que seja respeitada a denominada “cláusula de reserva de plenário”, assentada no art. 97 da Constituição da República, por força da qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Em decorrência dessa disposição constitucional foi editada pelo Col. STF a Súmula Vinculante nº 10, segundo a qual “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

A previsão constitucional na qual se encaixa o procedimento do incidente de inconstitucionalidade, portanto, é clara: só há necessidade da apreciação da questão constitucional pelo Plenário do Tribunal ou pelo Órgão Especial, onde houver, para (a) declarar a inconstitucionalidade de ato normativo, e (b) desde que a inconstitucionalidade ainda não tenha sido reconhecida pelo próprio Plenário ou Órgão Especial, ou mesmo pelo STF.

Em outras palavras, se o STF já afirmou a inconstitucionalidade, ou se o Órgão Especial do próprio Tribunal local, em outra ocasião, em sede de ação direta ou mesmo de incidente de inconstitucionalidade, já afirmou a incompatibilidade do ato normativo com o texto constitucional, torna-se desnecessária a instauração de nova arguição de inconstitucionalidade.

É por tal razão que o parágrafo único do art. 481 do CPC (acrescentado pela Lei nº 9.756, de 1998), dispõe conforme segue:

“(...)

Art. 481.

Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

(...)”

Nesse sentido, preleciona José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao CPC, vol. V, 13. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 44), que:

“(...)

São duas as hipóteses em que se deixa de submeter a arguição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal.

(...)

O próprio STF tem jurisprudência consolidada no sentido do que foi acima exposto.

Confira-se:

“(...)

O art. 481, parágrafo único, introduzido no CPC pela L. 9.756/1998 – que dispensa a submissão ao plenário, ou ao órgão especial, da arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do STF sobre a questão – alinhou-se à construção jurisprudencial já então consolidada no Supremo Tribunal, que se fundara explicitamente na função outorgada à Corte de árbitro definitivo da constitucionalidade das leis. (RE 433.101-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 6-12-2005, Primeira Turma, DJ de 3-2-2006.) No mesmo sentido: AI 413.118-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-3-2010, Segunda Turma, DJE de 7-5-2010; AI 481.584-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 30-6-2009, Primeira Turma, DJE de 21-8-2009

(...)”

Pois bem.

A matéria objeto do presente incidente foi apreciada pelo Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo quando do exame da Arguição de Inconstitucionalidade nº 0091659-13.2011.8.26.0000, Relator Desembargador Reis Kuntz, julgado em 03 de agosto de 2011.

A decisão proferida nesse caso, acolhendo a alegação de inconstitucionalidade, contou com a seguinte ementa:

“(...)

Arguição de inconstitucionalidade. Art. 3º, parágrafo único, da Lei Complementar nº 350/99, do Município de Santos que determina sejam calculadas as horas extras sobre o salário base do servidor. Inconstitucionalidade material. Ocorrência. Acolhimento do presente incidente com remessa dos autos ao órgão fracionário para apreciação da apelação interposta.

(...)”

Dessa forma, como o Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo já examinou, anteriormente, a questão suscitada no presente incidente de inconstitucionalidade, não merecerá conhecimento a nova arguição, por ser desnecessária, nos termos do que foi acima exposto.

Entretanto, considerando a eventualidade de que o incidente venha a ser conhecido, no mérito não merecerá acolhimento, devendo ser rejeitada a alegação de inconstitucionalidade.

Pedimos vênia, mesmo tendo ciência da posição adotada anteriormente pelo Col. Órgão Especial, para rejeitar a alegação de inconstitucionalidade do art. 3º, parágrafo único, da LC 350/99 do Município de Santos.

E tal posicionamento é aqui reiterado, considerando que na ocasião anterior em que a matéria foi apreciada (Arguição de Inconstitucionalidade nº 0091659-13.2011.8.26.0000, Relator Desembargador Reis Kuntz, julgado em 03 de agosto de 2011), esta Procuradoria-Geral de Justiça pugnou pelo não acolhimento da alegação de inconstitucionalidade.

Ocorre que nem todos os nossos argumentos foram apreciados pelo Col. Órgão Especial, razão pela qual opusemos embargos de declaração contra aquela decisão.

Pedimos vênia, portanto, para reafirmar nossa posição, pois ainda acreditamos que oferece a solução pertinente para a questão constitucional em análise.

A norma glosada pela Col. 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça é o parágrafo único do art. 3º da Lei Complementar Municipal 350/99, de Santos, que em conformidade com a contestação apresentada pela Municipalidade (fls. 95) assim dispõe:

“(...)

Art. 3º...

Parágrafo único. A gratificação de que trata o ‘caput’ deste artigo incidirá sobre o vencimento do servidor.

(...)”

A alegação de que o art. 7º, inciso XVI, combinado com o art. 39, § 3º da CR, seria o fator determinante de que no pagamento de horas de serviços extraordinários a base de cálculo da vantagem seja o total da remuneração (e não apenas o padrão dos vencimentos) ampara-se em interpretação meramente literal do dispositivo constitucional.

É cediço que a “remuneração” envolve a totalidade dos valores pagos aos servidores públicos estatutários, enquanto a referência a “vencimento” diz respeito ao padrão fixado em lei para a retribuição pecuniária de determinada categoria. É certo ainda, finalmente, que “vencimentos” (no plural) indicam o padrão somado a outras vantagens do servidor. Nesse sentido Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34. Ed., São Paulo, Malheiros, p. 488 e ss.; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19. Ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 514/515.

A expressão utilizada no art. 7º, XVI da CR, insere-se no contexto dos direitos assegurados ao trabalhador regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, sendo ali utilizada em sentido impróprio. Parece-nos, por essa razão, equivocada sua interpretação como se tivesse o significado da acepção técnica de “remuneração”, tal como se utilizada em referência ao regime estatutário dos servidores públicos da administração direta.

Por isso, não obstante o direito à remuneração por serviços extraordinários, previsto no art. 7º, XVI da CR, seja aplicável aos servidores públicos por força do art. 39, § 3º da Constituição, é evidente que essa aplicação deve ocorrer dentro dos parâmetros específicos que regem o serviço público, assentados na própria Lei Maior.

Em outras palavras, é indispensável que a aplicação dos preceitos contidos no art. 7º da CR aos servidores públicos, com fundamento no art. 39, § 3º da CR, seja sempre realizada de forma compatível com as peculiaridades inerentes ao regime jurídico de direito público e estatutário que rege o funcionalismo, que também conta com assento constitucional.

Não há como deixar de lado, nesse particular, parâmetros da atuação da Administração Pública que estão assentados no art. 37 da CR.

É inevitável, com a devida vênia quanto ao entendimento adotado na Col. 13ª Câmara de Direito Público e pelo próprio Órgão Especial, recordar a denominada vedação ao “efeito cascata” ou “repicão”, decorrente do art. 37, XIV da CR, por força do qual “os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores”.

Dessa forma, não pode ser aplicado aos servidores estatutários o mesmo raciocínio que se aplica aos trabalhadores celetistas, na medida em que, para estes últimos não existe a vedação contida no art. 37, XIV da CR. E em função dessa disposição normativa, vantagens subsequentes dos servidores públicos, gratificações de qualquer natureza, remuneração extraordinária, ou mesmo os adicionais, são sempre calculados com base em critério legal que toma como ponto de partida o padrão dos respectivos vencimentos.

Nesse sentido, confiram-se os julgados a seguir indicados do Col. STF, aplicáveis ao caso mutatis mutandis: AI 392.954-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 4-11-2003, Plenário, DJ de 5-3-2004; RE 231.361-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 18-11-2003, Segunda Turma, DJ de 12-12-2003.

Ademais, não bastasse isso, o reconhecimento da inconstitucionalidade trará como resultado a impossibilidade de pagamento de horas extraordinárias aos servidores municipais, dado o surgimento de verdadeira lacuna legislativa.

Como o Poder Judiciário, em sede de controle de constitucionalidade de normas, não pode atuar como legislador positivo, restará inviabilizado o próprio pagamento das horas extras até que seja editado ato normativo infraconstitucional no âmbito do Município estipulando o modo de calcular tal benefício.

Em outras palavras, o reconhecimento da inconstitucionalidade criará um prejuízo ainda maior aos servidores municipais, tendo em vista a impossibilidade de suprimento da omissão por outro modo que não a via legislativa.

Anote-se, por oportuno, que no julgamento em 13.04.2011 do Incidente de Inconstitucionalidade 0018627-72.2011.8.26.000, suscitado pela 18ª Câmara de Direito Público, o Col. Órgão Especial, em decisão em que figurou como relator o desembargador Renato Nalini, por votação unânime rejeitou a arguição de inconstitucionalidade, reconhecendo a impossibilidade de atuar o Poder Judiciário como legislador positivo.

No referido precedente ficou consignada no voto do relator, acolhendo a posição desta Procuradoria-Geral de Justiça, a seguinte passagem, aplicável à hipótese em exame mutatis mutandis:

“(...)

Para culminar, o acórdão do STF relatado pelo erudito Ministro Celso de Mello parece perfeitamente adequado à espécie:

‘Os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção. Entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional esta que lhe recusou a própria Lei Fundamental do Estado. É de acentuar, neste ponto, que, em tema de controle de constitucionalidade de atos estatais, o Poder Judiciário, os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção.’

(...)”

Essa é a razão pela qual o Col. STF há muito editou a Súmula 339, com o seguinte teor:

“(...)

Súmula 339: Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia.

(...)”

Os precedentes do Col. STF, no sentido da impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade e subsequente suprimento da lacuna normativa, em verdadeira atuação da Corte exercendo o papel de legislador positivo, são inúmeros.

Apenas a título de exemplificação, confira-se: RE 432460 ED-AgR-ED/DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010; AI 360461 AgR/MG, rel. Min. Celso de Mello, j. 06/12/2005; ADI 2554 AgR/DF, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 16/05/2002; ADI 1755/DF, rel. Min. Nelson Jobim, j. 15/10/1998.  

Note-se, ainda, que fazê-lo (ou seja, suprir a omissão normativa decorrente do reconhecimento da inconstitucionalidade) significaria, em última análise, contrariar o art. 102, I, a, da CR, que dá ao próprio Col. STF a competência apenas para “anular” a lei inconstitucional, mas não para suprir a omissão normativa.

Em outras palavras, não se mostra possível que Col. Órgão Especial declare a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 3º, da Lei Complementar nº 350/99, de Santos, afastando a regra que determina o cálculo das horas extras dos servidores estatutários do Município sobre o padrão dos vencimentos, e em seu lugar imponha o cálculo sobre toda a remuneração, pois assim agindo estará o Col. Colegiado atuando como legislador positivo.

O exame desse ponto é importante, na medida em que posteriormente à conclusão do julgamento do recurso pelo órgão fracionário do Tribunal (13ª Câmara de Direito Público), será viável analisar a pertinência ou não de interposição de recurso extraordinário, dado o virtual conflito com o disposto no art. 102, I, a, da CR.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da não admissão do incidente.

Contudo, caso seja a arguição admitida, deverá ser ela rejeitada, reconhecendo-se a constitucionalidade da norma questionada.

São Paulo, 28 de setembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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