Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0247796-86.2012.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelantes: São Paulo Turismo S.A e Estado de São Paulo

Apelados: os mesmos

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 1º, Tabela A, itens 6 e 6.2, da Lei Estadual nº 7.645/91. Alegação de inconstitucionalidade por afronta aos arts. 144 e 145, II, da Constituição Federal.

2)      Previsão de Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos em razão de policiamento ostensivo realizado por ocasião de espetáculos culturais com fins lucrativos. Serviço público de natureza geral e universal. Ausência dos requisitos da especialidade e divisibilidade. Violação do art. 145, II, da CF.

3)      Parecer pelo conhecimento e acolhimento do incidente.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 13ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível (Reexame obrigatório) nº 9000104-55.2004.8.26.0014 da Vara das Execuções Fiscais Estaduais, na sessão realizada em 17 de outubro de 2012, figurando como Relatora a Des. Luciana Bresciani.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade dos itens 6 e 6.2 da Tabela A do art. 1º da Lei Estadual nº 7.645/91, que institui Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos em virtude da utilização de serviço público de policiamento efetuado em espetáculos artísticos, culturais, desportivos e outros, realizados em ambiente fechado ou em área isolada, aberta ou não, mas com finalidade lucrativa e policiamento ostensivo preventivo, por turno de serviço e por policial fardado empregado, independentemente da classe a que pertencer, realizado pela Polícia Militar.

Em conformidade com o v. acórdão (fls. 371/379), a inconstitucionalidade do referido dispositivo decorreria de sua contrariedade aos arts. 144 e 145, I, da Constituição Federal, pois, nos termos do voto da relatora:

“(...)

Pertinentes os argumentos deduzidos pelos nobres patronos da São Paulo Turismo S.A., temos que o disposto no art. 1º, Tabela A, itens 6 e 6.2 da Lei Estadual nº. 7.645/91, com redação modificada pela Lei nº 9.250/95 é inconstitucional, na medida em que a exação referente ao serviço operacional de polícia ostensiva, ainda que relativos a evento realizados em ambientes fechados ou áreas isoladas, somente poderia ser instituída mediante imposto. Vale dizer, houve ofensa ao art. 144 e 145, II da Constituição Federal ao se instituir taxa para abarcar a hipótese dos autos.

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

A redação do art. 1º, caput, e dos itens 6 e 6.2  constantes de sua  Tabela A, da Lei Estadual nº 7.645/91 (com a redação dada pela Lei nº 9.250/95), é a seguinte:

“Art. 1º - A Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos é devida em virtude da utilização de serviço público ou em razão do exercício do poder de polícia, na conformidade das tabelas anexas a esta lei.

(...)

Tabela A

(...)

6. Policiamento, quando solicitado, efetuado em espetáculos artísticos, culturais, desportivos e outros, desde que realizados em ambiente fechado ou em área isolada, aberta ou não, mas com finalidade lucrativa;

(...)

6.2 - Policiamento ostensivo preventivo, por turno de serviço e por policial fardado empregado, independentemente da classe a que pertencer, realizado pela Polícia Militar.”    

 

O inciso II do art. 145 da Constituição Federal possibilita à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituírem taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.

Desta matriz constitucional distinguimos duas modalidades de taxas: de serviço e de polícia. As taxas de serviços reclamam utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição. As taxas de polícia, por sua vez, decorrem do exercício do poder de polícia.

A Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos prevista nos itens 6 e 6.2 da Tabela A c.c. o art. 1º da Lei Estadual nº 7.645/91 (com a redação dada pela Lei nº 9.250/95) é modalidade de taxa de serviço, pois tem por fato gerador ou hipótese de incidência a prestação de serviço público de policiamento ostensivo preventivo em espetáculos artísticos, culturais, desportivos e outros, realizados em ambiente fechado ou em área isolada, aberta ou não, mas com finalidade lucrativa.

Ocorre que o referido serviço público de policiamento ostensivo não se reveste das características de especificidade e de divisibilidade exigidas para a exação através da taxa de serviço.

O policiamento ostensivo prestado pela Polícia Militar por ocasião de espetáculos públicos culturais, desportivos ou artísticos, insere-se na sua atribuição constitucional de órgão do sistema de segurança pública (CF, art. 144, caput e § 5º).

O inciso II do art. 2º da Lei Estadual nº 616/74 prevê que compete à Polícia Militar “atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais específicos, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem”. Estabelece ainda no item 11 do parágrafo único do art. 3.º que o policiamento ostensivo será executado em locais e recintos destinados à prática de desportos ou a diversões públicas.

A atuação da Polícia Militar nestes eventos tem o objetivo de preservação da segurança pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Beneficiários deste serviço público de policiamento ostensivo não são exclusivamente os organizadores do evento ou seu público pagante, mas toda a coletividade atingida direta ou indiretamente por aquela manifestação cultural, esportiva ou artística.

Todo evento público que promova aglomeração de pessoas, seja gratuito ou não, requer medidas no âmbito da segurança pública. Tais medidas não se limitam à área interna do local de sua realização, mas dizem respeito, sobretudo e principalmente, à área externa (trajeto, chegada e dispersão), sede maior das preocupações e ocorrências policiais que reclamam o policiamento ostensivo.

Assim, providências na área de segurança pública devem ser tomadas no interesse do público atraído pelo espetáculo, dos moradores dos arredores, dos transeuntes e das pessoas que circulem pelo local.

O serviço de policiamento ostensivo que se presta nestes eventos insere-se na categoria de serviços gerais e universais, prestados uti universi, isto é, indistintamente a todos os cidadãos.

Conforme magistério de Roque Antonio Carrazza os serviços gerais ou universais “alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas, basicamente, pelos impostos.” (Curso de Direito Constitucional Tributário, Malheiros, São Paulo, 28ª. ed., 2012, pag. 603).

Os serviços públicos específicos, por seu turno, segundo o mesmo autor, “também chamados singulares, são prestados ‘uti singuli’. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço.” (Curso de Direito Constitucional Tributário, Malheiros, São Paulo, 28ª. ed., 2012, pag. 603).

Embora o dispositivo normativo impugnado tenha buscado dar uma conformação específica e divisível ao serviço de policiamento ostensivo prestado por ocasião de espetáculos artísticos, culturais, desportivos e congêneres com finalidade lucrativa, não se pode afirmar que há possibilidade de avaliação da utilização efetiva ou potencial individualmente considerada do serviço.

O serviço de policiamento ostensivo nestes espetáculos é prestado a toda a comunidade e não apenas ao sujeito passivo do tributo (na hipótese a pessoa física ou jurídica que solicitar o policiamento – item 5, c., 1), c) da DIRETRIZ PM3-004/02/96).

Tentou-se atribuir caráter específico e divisível a esta modalidade de serviço público, ao traçar em seu fato gerador os seguintes requisitos: 1) solicitação do policiamento ostensivo pelos responsáveis pelo espetáculo; 2) que o espetáculo tenha fim lucrativo; 3) que o espetáculo seja realizado em ambientes de acesso limitado. Tomou-se ainda para a base de cálculo o número de policiais fardados empregado por turno de serviço.

Ocorre que, haja ou não requerimento de policiamento ostensivo para espetáculos públicos, sejam eles gratuitos ou não, a Polícia Militar tem obrigação constitucional de adotar medidas na área da segurança pública, pois a ela é atribuído o dever de atuar na preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Como se vê, trata-se de serviço público compulsório, obrigação do Estado, que satisfaz interesse geral da população e não de pessoas individualmente consideradas.

De outro lado, o serviço de policiamento ostensivo não é prestado exclusivamente no ambiente interno do espetáculo, o que poderia justificar seu caráter específico.

A propósito, vale ressaltar que no âmbito da Polícia Militar foi editada a DIRETRIZ PM3-004/02/96 (cópia segue em separado) com a finalidade de estabelecer normas de procedimento para a execução de vistorias prévias em locais destinados à realização de espetáculos públicos culturais, desportivos ou artísticos e a cobrança da  Taxa de  Fiscalização e Serviços Diversos nos espetáculos públicos com fins lucrativos.

Dentre outros objetivos, a referida diretriz busca estabelecer a forma de lançamento e cobrança da Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos (item 4. h.). Desta forma no item 5, alínea f, disciplinou o  procedimento para o lançamento e cobrança da Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos (TFSD) dispondo que:

“f. Dos procedimentos para o lançamento e cobrança da Taxa de Fiscalização e Serviços Diversos (TFSD):

1) no primeiro dia útil após a realização da vistoria prévia e tendo o espetáculo público  fins  lucrativos,  o  Cmt  da  OPM  responsável  deverá  expedir  o  Quadro Demonstrativo  de  Efetivo  e a Notificação,  de acordo  com  o  Art.    da  Instrução Técnica aprovada pela Portaria anexa, entregando a Notificação ao requerente:

a) no  "Quadro  Demonstrativo de  Efetivo"  devem  ser  computados  todos  os policiais  militares  que devam  ser  empregados  fardados em  razão do espetáculo público, interna e externamente, sem diferenciação por postos ou graduações;” (destaque nosso)

Verifica-se, portanto, que para a aferição do valor da taxa leva-se em conta o número de policiais militares que serão empregados em razão do espetáculo público nas áreas interna e externa.

Assim, não se pode cogitar de que se trate de um serviço específico voltado exclusivamente para o interesse dos organizadores do espetáculo ou de seu público.

O serviço de policiamento ostensivo prestados nestes espetáculos não é divisível, pois não há como distinguir a quantidade de utilidade que cada cidadão, usuário ou beneficiário, obtém do serviço. O policiamento beneficia uma coletividade indeterminável: o público do evento, e outro público difuso constituído dos moradores da vizinhança, dos transeuntes e de toda a população que circula pelo local.

Nem mesmo quem solicita o policiamento, que é considerado o sujeito passivo da obrigação tributária (item 5, c., 1), c) da DIRETRIZ PM3-004/02/96), tem possibilidade de interferir na quantificação do serviço a ser usufruído, pois é o órgão da Polícia Militar quem determina o número de policiais militares necessários para o evento.

Não se pode olvidar de que todo espetáculo público, gratuito ou não, reclama medidas que fogem à rotina ordinária dos órgãos responsáveis pela segurança pública, importando despesas e ônus adicionais ao poder público.

De qualquer forma, se pretende o Estado ver compensado o plus de sua atuação, imposto muitas vezes por eventos que proporcionam lucros consideráveis a particulares, não é por via da taxa de serviço pelo policiamento ostensivo que deve ser incrementado, haja vista que este decorre de exigência legal e é prestado em caráter geral e universal.

Se a vistoria da Polícia Militar foi disciplinada como medida necessária no procedimento de autorização para a realização de espetáculos públicos (Resolução da Secretaria de Segurança Pública nº 122 de 24.09.85) poderia tal atividade ser objeto de taxa de polícia, jamais taxa de serviços em função do número de policiais que deverão ser empregados no evento.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade dos itens 6 e 6.2 da Tabela A do art. 1º da Lei Estadual nº 7.645/91, por violação do art. 145, II, da Constituição Federal.

 

São Paulo, 30 de novembro de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

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