Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0267438-79.2011.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: Municipalidade de Salto e Juízo “ex officio”

Apelado: (...)

Objeto: Lei Municipal nº 2.435, de 2002, de Salto

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 2.435, de 2002, de Salto, que autoriza o Poder Executivo a ceder à Associação de Engenheiros e Arquitetos de Salto área identificada como “sistema de recreio” de determinado loteamento. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 180, VII, da Constituição Paulista.

2)      Inconstitucionalidade do ato normativo. Situação concreta de utilização de bem público integrante de loteamento que contraria o art. 180, VII, da Constituição do Estado.

3)      Inconstitucionalidade, ademais, na hipótese de rejeição do argumento acima, por contrariedade ao disposto no art. 5º, § 1º, art. 111, e art. 117 (delegação inversa de poderes, impessoalidade, e exigência de licitação), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

4)      Parecer pelo conhecimento e acolhimento do incidente.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 2ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 9217490-88.2006.8.26.0000 (994.06.054293-0) da Comarca de Salto, na sessão realizada em 30 de agosto de 2011, figurando como Relator o Des. Nelson Calandra.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.435, de 2002, de Salto, que autoriza o Poder Executivo a ceder para a Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Salto área determinada, identificada no próprio ato normativo como “sistema de recreio – praça 4” de loteamento denominado “Jardim Armando Bacarella”.

Em conformidade com o v. acórdão (fls. 231/236), a inconstitucionalidade da lei referida decorre de sua contrariedade ao art. 180, VII, da Constituição Paulista, pois, nos termos do voto do relator:

“(...)

Desafetou a área de sua função original e permitiu que a Sociedade permissionária construísse todas as benfeitorias necessárias para implantação de sua sede na área, as quais serão incorporadas ao patrimônio público municipal por doação (artigo 2º).

(...)

Embora o loteamento tenha sido aprovado em data anterior, os espaços definidos em projetos de loteamento como áreas verdes são extremamente importantes por se tratar de direito de natureza difusa, imprescritível, irrenunciável e inalienável, que é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, protegido pela Constituição Estadual, conforme julgado deste colendo tribunal:

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido, e merece acolhimento.

De fato, o art. 180, VII, da Constituição Paulista, em sua redação originária, era expresso ao estabelecer que:

“(...)

VII – as áreas definidas em projeto de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão, em qualquer hipótese, ter sua destinação, fim e objetivos originariamente estabelecidos, alterados.

(...)”

Esse era o teor do texto constitucional quando a Lei Municipal nº 2.435, de 2002, foi editada, evidenciando sua inconstitucionalidade.

É bem verdade que posteriormente houve mitigação da vedação constitucional de alteração da destinação de áreas verdes ou institucionais de loteamentos, mas nem mesmo se considerássemos essas alterações normativas chegaríamos a resultado distinto quanto ao reconhecimento da inconstitucionalidade da lei aqui examinada.

Pela Emenda Constitucional Estadual nº 23, de 2007, passou o art. 180, VII, da Constituição Paulista a ter outra redação, sendo-lhe ainda acrescentados dois parágrafos, com o seguinte teor:

“(...)

VII - as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão ter sua destinação, fim e objetivos originais alterados, exceto quando a alteração da destinação tiver como finalidade a regularização de:

a) loteamentos, cujas áreas verdes ou institucionais estejam total ou parcialmente ocupadas por núcleos habitacionais de interesse social, destinados à população de baixa renda e cuja situação esteja consolidada;

b) equipamentos públicos implantados com uso diverso da destinação, fim e objetivos originariamente previstos quando da aprovação do loteamento.

§ 1º - As exceções contempladas nas alíneas “a” e “b” do inciso VII deste artigo serão admitidas desde que a situação das áreas objeto de regularização esteja consolidada até dezembro de 2004, e mediante a realização de compensação, que se dará com a disponibilização de outras áreas livres ou que contenham equipamentos públicos já implantados nas proximidades das áreas objeto de compensação.

§ 2º - A compensação de que trata o parágrafo anterior poderá ser dispensada, por ato fundamentado da autoridade competente, desde que nas proximidades já existam outras áreas com as mesmas finalidades que atendam as necessidades da população local.

(...)”

Ulteriormente, através da Emenda à Constituição Estadual nº 26, de 2008, foi alterada a redação o inciso VII, e acrescido um § 3º, passando a constar da Carta a seguinte dicção:

“(...)

VII - as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão ter sua destinação, fim e objetivos originariamente alterados, exceto quando a alteração da destinação tiver como finalidade a regularização de:

a)     loteamentos, cujas áreas verdes ou institucionais estejam total ou parcialmente ocupadas por núcleos habitacionais de interesse social destinados à população de baixa renda, e cuja situação esteja consolidada ou seja de difícil reversão;

b)     equipamentos públicos implantados com uso diverso da destinação, fim e objetivos originariamente previstos quando da aprovação do loteamento;

c)      imóveis ocupados por organizações religiosas para suas atividades finalísticas

§ 1º - As exceções contempladas nas alíneas “a” e “b” do inciso VII deste artigo serão admitidas desde que a situação das áreas objeto de regularização esteja consolidada até dezembro de 2004, e mediante a realização de compensação, que se dará com a disponibilização de outras áreas livres ou que contenham equipamentos públicos já implantados nas proximidades das áreas objeto de compensação.

§ 2º - A compensação de que trata o parágrafo anterior poderá ser dispensada, por ato fundamentado da autoridade municipal competente, desde que nas proximidades da área pública cuja destinação será alterada existam outras áreas públicas que atendam as necessidades da população.

§ 3º - A exceção contemplada na alínea ‘c’ do inciso VII deste artigo será permitida desde que a situação das áreas públicas objeto de alteração da destinação esteja consolidada até dezembro de 2004, e mediante a devida compensação ao Poder Executivo Municipal, conforme diretrizes estabelecidas em lei municipal específica.

(...)”

Assim, embora não exista o fenômeno da “constitucionalidade superveniente” - pois uma lei que nasce inconstitucional não é lei, e não se torna legítima por força de ulterior modificação da Constituição - nem mesmo diante das posterior alterações da Constituição do Estado seria possível, por apego à argumentação, chegar a uma conclusão diversa daquela a que chegou o v. acórdão que suscitou o presente incidente.

Em outras palavras: as hipóteses de alteração da destinação de áreas verdes ou institucionais de loteamento são excepcionais, e como tais, devem ser interpretadas restritivamente, sendo certo que o caso em exame não se enquadra em tais exceções.

Mas não é só.

Há outros fundamentos que apontam para a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado.

A Lei Municipal nº 2.435, de 2002, de Salto, autoriza o Chefe do Executivo Municipal a ceder o imóvel nela descrito, mediante permissão de uso, para determinada entidade particular.

Note-se, por apego ao debate, que se fosse possível tal cessão – o que não ocorre, diante da vedação contida no art. 180, VII, da Constituição Paulista – a inconstitucionalidade também estaria presente pela violação ao art. 5º, § 1º, ao art. 111 e ao art. 117, todos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Note-se que o art. 5º, § 1º, veda a delegação de poderes entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, incluindo nessa proibição a chamada “delegação inversa de poderes”. Esta se verifica, por exemplo, quando a delegação é provocada pelo Executivo, que teve a iniciativa de apresentar o projeto de lei que se transformou em ato normativo que trata de matéria de exclusiva competência da própria Administração Pública.

É isso o que ocorre no caso em exame.

Escolher o destinatário da permissão de uso, caso esta seja previamente autorizada por ato legislativo, é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo. Ao indicá-lo, a lei assume feição de ato administrativo concreto, embora se trate formalmente de ato normativo. Daí a quebra da regra da separação de poderes, através da delegação inversa, considerada a iniciativa legislativa do próprio Chefe do Executivo.

Em outras palavras, o Chefe do Executivo delegou ao Poder Legislativo a prática de um ato que era de sua competência privativa, ou seja, escolher o destinatário da permissão de uso.

Há também violação do princípio da impessoalidade, contido no art. 111 da Constituição Paulista, visto que caberia à Administração, se fosse possível a permissão de uso, a escolha do seu destinatário.

Último e não menos importante, seria necessária a realização de licitação (art. 117 da Constituição Paulista), ou ao menos justificativa consistente relativamente à sua dispensa ou inexigibilidade, o que sinaliza para o desrespeito à exigência constitucional pertinente.

Esse entendimento já foi prestigiado pelo Col. Órgão Especial quando do julgamento da ADI 170.820.9/0-00, Rel. Aloísio de Toledo César, j. 6.5.2009, com a seguinte ementa:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal n. 2.051/97, de Salto, que autoriza a concessão de uso de prédio municipal para instituição de ensino privado com fins lucrativos – Inconstitucionalidade reconhecida. Ao reger matéria tipicamente administrativa, a Câmara Municipal de Salto excluiu de forma peremptória a discricionariedade da Administração, sendo inconstitucional, por ofensa ao princípio da separação de poderes, inserto no art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, e que, por força do art. 144 daquele mesmo texto constitucional, os Municípios estão obrigados a observar – Inaceitável a criação de caso de dispensa de licitação não prevista na Lei 8666/93, infringindo os princípios da impessoalidade e da licitação, esculpidos nos arts. 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente.

(...)”

Do mesmo modo, quando do julgamento da ADI 168.129-0/5-00, Rel. Des. José Reynaldo, j. 4.3.2009, assim ementado:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal autorizando a cessão gratuita de bem público municipal, com isenção de tarifa de bem público municipal, com isenção de tarifa de água e esgoto, a empresa com fins lucrativos, para ser utilizado para prática desportiva. Duvidoso o interesse público na cessão e insuperável a necessidade de prévio procedimento licitatório. Quebra dos princípios da moralidade, razoabilidade e impessoalidade. Ofensa aos artigos 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo, aplicável aos Municípios por força do artigo 144 do mesmo diploma. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação procedente.

(...)”

Portanto, ainda que fosse possível a cessão do uso do imóvel ao particular – o que se afirma por mero apego ao debate – o ato normativo seria verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.435, de 2002, de Salto.

São Paulo, 07 de novembro de 2011.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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