Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade
Autos nº. 0281654-45.2011.8.26.0000
Suscitante: 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo
Objeto: art. 1º, inc. VIII, do Decreto Presidencial nº 6.706/08
Ementa: Incidente de inconstitucionalidade do art. 1º, inc. VIII, do Decreto Presidencial nº 6.706/08, que concede indulto aos submetidos à medida de segurança. Ausência de condenação e de pena. Desvio do art. 84, inc. XII da Constituição Federal. Parecer pela inconstitucionalidade do Decreto impugnado.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos do Agravo em Execução nº 0281654-45.2011.8.26.0000, em que figura como agravante (...).
Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 1º, inc. VIII, do Decreto Presidencial nº 6.706/08.
Este é resumo do que consta dos autos.
Assim se encontra redigida a norma impugnada:
“Art. 1º. É concedido indulto:
(...)
VIII – aos submetidos à medida de segurança que, até 25 de dezembro de 2008, tenham suportado privação da liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, nos casos de substituição prevista no art. 183 da Lei nº 7.210, de 1984, por período igual ao tempo da condenação, mantido o direito de assistência nos ermos do art. 196 da Constituição.”
Não é necessário, com todo respeito, maiores esforços para se notar a inconstitucionalidade que macula o dispositivo questionado. Pelo contrário, é preciso incrível malabarismo para se chegar à conclusão diversa.
Com efeito, é ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Assim, a produção legislativa pelo Executivo é exceção à regra e como tal deve ser interpretada restritivamente (Carlos Maximiliano, Aplicação do direito, 18ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 225).
Dispõe o art. 84, inc. XII, da CF:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
XII – conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”
Desta forma, quando o texto Constitucional dispõe, em
exceção à regra de produção legislativa, competir ao Presidente da República “conceder
indulto e comutar penas”, deve ele ater-se estritamente, à concessão de indulto
de penas e comutação de penas. A isto se encontra restrito. Se ultrapassa este limite e vai além, para
indultar MEDIDA DE SEGURANÇA, pratica insofismável inconstitucionalidade,
por usurpação do poder de legislar, de sorte a malferir a separação dos
poderes, violando o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os
Poderes Legislativo e Executivo, deixando evidenciada a inconstitucionalidade
da disposição legal.
Além do mais, não se poderia deixar à margem a argumentação tecida no V. Acórdão que suscitou idêntico incidente, nos seguintes termos:
“O sentido da palavra e a própria natureza do instituto determinam que o termo ‘indulto’, na citada norma constitucional, seja interpretado como referente às penas, tanto quanto a palavra comutação (que nada mais é do que o indulto parcial). Assim, deve-se entender que cabe ao Presidente da República conceder indulto de penas e comutar penas.
Ora, a culpa, em Direito Penal, é pressuposto da pena: somente quando reconhecida a culpa do agente que praticou conduta típica e antijurídica é possível impor-se a ele a pena, cuja medida é a própria culpabilidade, nos termos do artigo 29 do Código Penal.
A pena – medida aflitiva e retributiva – constitui resposta à própria culpabilidade demonstrada pela conduta.
Caso afastada – por causa legal ou supralegal – essa culpabilidade, afasta-se ipso facto a imposição de pena. Afasta-se, igualmente, a possibilidade de indulto.
Em suma: a culpabilidade é pressuposto da imposição de pena; esta é pressuposto da concessão de indulto.
É a pena, pois, o objeto exclusivo do indulto ou da comutação.
Sentido diverso apresenta a medida de segurança, já que seu fundamento se situa em posição inversa ao da pena: a medida de segurança pressupõe exatamente a ausência de culpabilidade, ou ao menos a redução desta.
Aplica-se medida de segurança, em primeiro lugar, aos inimputáveis contemplados no artigo 26 caput do Código Penal, quando autores de conduta típica e antijurídica.
A doença mental, nesse caso, aponta para a ausência de culpabilidade, impossibilitando a imposição de pena; a conduta praticada, entretanto, demonstra periculosidade; esta, por sua vez, impõe uma resposta estatal, consistente num tratamento em prol do agente e da sociedade; a medida de segurança.
Ausente a culpabilidade, os inimputáveis são absolvidos, embora impropriamente.
Indaga-se: como é possível indultar alguém que foi absolvido?
Quanto aos semi-imputáveis, caso reputados perigosos, eles terão suas penas afastadas, impondo-se medida de segurança.
Verifica-se, pois, que a medida de segurança, assentando-se na periculosidade e não na culpabilidade, não tem natureza aflitiva e retributiva, mas exclusivamente preventiva e terapêutica.
Não há dúvida que pena e medida de segurança compartilham o mesmo gênero, pois ambas constituem respostas ao Direito Penal à conduta típica e antijurídica.
Todavia, com visto, elas constituem espécies inegavelmente distintas, e até certo ponto antagônicas.
Diante disso, a mera invocação da natureza comum não basta para conferir razoabilidade à afirmativa de que o cabível para uma será, ipso facto, cabível para outra.
Sustentar a compatibilidade do indulto com a medida de segurança é, pois, negar a natureza desta última, pressupondo culpabilidade em quem dela foi declarado isento.
A par disso, é colocar a sociedade à mercê de indivíduos com periculosidade pericialmente atestada, como o paciente destes autos¹
É afrontar, portanto, o sentido próprio do artigo 84, inciso XII da Constituição.” (H.C. nº 0054160-92.2011.8.26.0000, 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo – Impte.: Débora Rezende Dantas Motta – Paciente: Jair Ramos)
Pelo exposto, opina-se pela declaração de inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 1º do Decreto Presidencial nº 6.706/2008.
São Paulo, 23 de novembro de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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