Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Incidente de Inconstitucionalidade nº 0288119-70.2011.8.26.0000

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público

Apelante: Municipalidade de Mogi das Cruzes

Apelada: (...)

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 3º, III da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, que indica a “permuta” como um dos fatos geradores do Imposto de Transmissão Sobre Bens Imóveis (ITBI).

2)      Não admissão do incidente. Caso em que, da análise do texto da lei, da leitura da inicial, da leitura da Certidão da Dívida Ativa que embasou a execução fiscal, da sentença, e ainda do próprio acórdão que suscitou o incidente, torna-se possível verificar que não há inconstitucionalidade no dispositivo legal, mas sim má aplicação da lei pela Administração Municipal.

3)      Lei que em momento algum dispensa a efetiva transmissão da propriedade, através do registro do ato negocial no Cartório de Imóveis respectivo, para a incidência do tributo. Descabimento do incidente de inconstitucionalidade quando o julgamento do recurso depende apenas da análise da legalidade da conduta administrativa.

4)   Parecer pela não admissão do incidente de inconstitucionalidade

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

 

 

Trata-se de incidente suscitado pela 9º Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0097568-12.2006.8.26.0000, figurando como relator o des. Sérgio Gomes, em 27 de julho de 2011, para fins de exame da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, por afronta ao art. 156, II da CF/88.

Do voto do relator, nesse particular, constou que:

“(...)

Esclarece-se, desde logo, que não se cogita a cobrança de ITBI sobre as transações devidamente registradas na matrícula do imóvel, tendo em vista que, como é cediço, a sua lavratura não é feita sem a comprovação de que todos os tributos incidentes sobre a operação sejam quitados, como prevê o artigo 289 da Lei de Registros Públicos.

Do mesmo modo, a certidão de dívida ativa (fls. 20/21) é clara no sentido de que o fato gerador do tributo foi a celebração de contrato de permuta de bem imóvel, o que, evidentemente, não se admite.

O posicionamento sobre o tema é tão claro que se mostra irrelevante o fato de o contrato de permuta ter sido objeto de distrato, tendo em vista que, como a transferência do domínio somente se dá pelo registro, e que não há qualquer anotação neste sentido junto à matrícula do bem, o tributo não pode ser cobrado.

(...)

Esta conduta arrecadatória do Município apelante decorre da lei local nº 3.398/1989 sobre a qual, este Tribunal também já teve a oportunidade de se manifestar:

(...)

Por fim, imperioso destaque que o quanto decidido configura reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.3998/1989 (sic) no que se refere ao fato gerador do ITBI, por afronta ao artigo 156, II, da Constituição Federal, razão pela qual, em respeito ao enunciado da súmula vinculante nº 10, deve-se respeitar a reserva de plenário.

(...)”

É o relato do essencial.

Preliminarmente, pedimos vênia para consignar que embora do voto do relator, Des. Sérgio Gomes, tenha constado que o recurso de apelação não foi conhecido, tudo leva a crer que tal afirmação ocorreu por equívoco, visto que a Col. 9ª Câmara de Direito Público remeteu o feito ao Col. Órgão Especial para fins de instauração do incidente de inconstitucionalidade, e tal remessa só poderia ocorrer diante da admissão do recurso.

Vale lembrar que o incidente de inconstitucionalidade configura verdadeira cisão de competência funcional para o julgamento do recurso, por força da qual ao Tribunal Pleno cabe exclusivamente o exame da questão constitucional, e ao órgão colegiado fracionário da Corte cabe concluir o julgamento do recurso. Para que seja possível o incidente, é imprescindível que o recurso tenha sido admitido.

Esse é o ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao CPC, vol. V, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 42):

“(...)

Ocorre uma cisão funcional da competência: ao plenário, ou ao ‘órgão especial’, caberá pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e ao órgão fracionário, depois, decidir a espécie, à luz do que houver assentado quanto à prejudicial. Suspende-se, portanto, o julgamento do recurso ou da causa pelo órgão fracionário, sem prejuízo daquilo que já se tenha decidido independentemente da arguição.

(...)”

Assim, uma vez concluído o exame da arguição de inconstitucionalidade, os autos deverão retornar à Col. 9ª Câmara de Direito Público, para conclusão do julgamento da apelação.

Passemos então ao exame da admissibilidade do incidente.

O v. acórdão proferido na apelação civil nº 0097568-12.2006.8.26.0000 sinalizou para a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, embora não tenha indicado qual dispositivo desse ato normativo é inconstitucional.

Da leitura da r. sentença proferida em primeira instância (fls. 65/68) é viável concluir, entretanto, que a referência à inconstitucionalidade também formulada na decisão de primeiro grau, diz respeito ao art. 3º da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes (fls. 68), tanto que, nos termos da referida decisão:

“(...)

Em sendo assim, como na hipótese vertente, a Embargada ampliou excessivamente tal hipótese de incidência, consoante se infere do artigo 3º da Lei nº 3.398/89, feriu o comando constitucional.

(...)”

Embora não haja nos autos cópia da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, em consulta nesta data ao sítio eletrônico da Câmara Municipal de Mogi das Cruzes (<www.cmmc.sp.gov.br>), foi possível verificar que o dispositivo inquinado de inconstitucional tem a seguinte redação:

Lei nº 3.398, de 22 de fevereiro de 1989

Institui o Imposto Sobre Transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis e de direitos reais sobre eles e dá outras providências.

(...)

Art. 3º. O imposto incidirá especificamente sobre:

I – a compra e venda;

II – a dação em pagamento;

III – a permuta;

IV – o mandato de causa própria, ou com poderes equivalentes, para a transmissão de bem imóvel e respectivo substabelecimento, ressalvado o caso de o mandatário receber a escritura definitiva do imóvel;

V – a arrematação, a adjudicação e a remição;

VI – as divisões de patrimônio comum ou partilha, quando for atribuído a um dos cônjuges, separado ou divorciados, valor dos bens imóveis da respectiva meação;

VII – as divisões para extinção de condomínio de bem imóvel, quando for recebida por quaisquer condomínio quota parte material cujo valor seja maior de que o de sua quota parte ideal;

VIII – o usufruto, a enfiteuse e a subenfiteuse;

IX – as rendas expressamente constituídas sobre bem imóvel;

X – a cessão de direito do arrematamento ao adjudicatório, depois de assinado o auto de arrematação ou adjudicação;

XI – a cessão de direitos decorrentes de compromissos de compra e venda e de promessa de cessão;

XII – a cessão de direitos reais de concessão de uso;

XIII – a cessão de direitos a usucapião;

XIV – a cessão de direitos de usufruto;

XV – a cessão de direitos a sucessão;

XVI – a cessão de benfeitorias e construções em terreno compromissado a venda ou alheio;

XVII – a cessão física quando houver pagamento de indenização;

XVIII – a cessão de direitos possessórios;

XIX – a promessa de transmissão de propriedade, através de compromisso devidamente quitado;

XX – a constituição de rendas sobre bens imóveis;

XXI – todos os demais atos onerosos, translativos de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e constitutivos de direitos reais sobre bens imóveis e demais cessões de direitos a eles relativos.

(...)”

Como é possível verificar da leitura da petição inicial da ação de embargos do devedor (fls. 3), bem como da sentença (fls. 68) e da certidão da dívida ativa nº 100.390/2004 (fls. 21), o ato material que teria justificado o lançamento tributário e a extração da certidão para ajuizamento da execução foi a “permuta de imóveis”.

Daí ser possível concluir que, na hipótese analisada, a incidência do ITBI decorreu do preceito disposto no art. 3º, III, da Lei Municipal nº 3.398/89, ou seja, da “permuta”.

Assim, é exclusivamente quanto ao art. 3º, III da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, que poderia, em tese, ser examinado o presente incidente, pois somente esse preceito poderia hipoteticamente ter relevância para o desfecho do presente feito.

Em outras palavras, os demais incisos do art. 3º da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, não são objeto de exame nesta arguição de inconstitucionalidade, pois são irrelevantes para o desfecho da ação.

É oportuno averbar essa observação, visto que a arguição de inconstitucionalidade nada mais é que incidente que se verifica no controle difuso de constitucionalidade, com a finalidade, exclusivamente, de respeito à chamada “cláusula de reserva de plenário”, prevista no art. 97 da CF/88.

Em outras palavras, não se trata propriamente do processo objetivo, como a ação direta de inconstitucionalidade, sendo limitada a cognição do Órgão Especial à questão de direito constitucional cuja apreciação é indispensável para o julgamento do recurso no qual o incidente foi suscitado.

É nesse sentido que Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante, 9. Ed., São Paulo, RT, 2006, p. 668, nt. 1 ao art. 480 do CPC) anotam que a declaração de inconstitucionalidade:

“(...)

É levantada no curso de um processo e constitui questão prejudicial do julgamento da causa no tribunal.

(...)”

E a questão prejudicial só se configura, relativamente ao exame da questão principal do feito, ou seja, o seu mérito, como anota Cândido Rangel Dinamarco (Institutuições de Direito Processual Civil, t. II, 4. Ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 155), nos casos em que a prejudicial versa:

“(...)

sobre a existência, inexistência ou modo-de-ser de uma relação jurídica fundamental, da qual dependa o reconhecimento da existência, inexistência ou modo-de-ser do direito controvertido na outra.

(...)”

Em outras palavras, se o incidente de inconstitucionalidade serve para a análise da questão prejudicial constitucional, sua instauração depende da efetiva existência da relação de prejudicialidade: só se justifica a admissão do incidente se o exame da questão de direito constitucional é efetivamente indispensável para o julgamento da causa ou do recurso.

Essa é a razão pela qual só poderia no caso em exame, em tese, ser apreciada a inconstitucionalidade do art. 3º, III da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, visto que os demais incisos do artigo 3º são irrelevantes para o desfecho da apelação interposta nos embargos à execução fiscal.

Mas não é só.

Mesmo com relação ao art. 3º, III, da Lei Municipal antes referida, que prevê como hipótese de incidência tributária no Município de Mogi das Cruzes a “permuta” de imóveis, não deverá ser conhecido o incidente.

A razão é objetiva.

Não há dúvida de que o único fundamento, em conformidade com a matriz constitucional-tributária, para a incidência do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis, é a “transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis”, como estabelece o art. 156, II da CF/88.

Também não há dúvida de que a transmissão da propriedade imobiliária só ocorre, efetivamente, com o registro do ato de aquisição no Cartório de Imóveis.

Note-se, porém, que o art. 3º, III da Lei Municipal nº 3.398/89, de Mogi das Cruzes, prevê como hipótese de incidência, efetivamente, um ato negocial que implicará, uma vez levado a termo o registro no Cartório de Imóveis, a transmissão da propriedade sobre o bem.

Não há qualquer indício de inconstitucionalidade nesse dispositivo legal.

Tudo está a indicar que há no caso concreto não inconstitucionalidade, mas sim ilegalidade na prática de ato administrativo por parte da Administração Municipal tributária, visto que à luz do simples contrato de permuta de bens imóveis, independentemente e anteriormente ao registro no Cartório de Imóveis, já foi realizado o lançamento do ITBI.

Em outras palavras, o vício não está na norma legal, pois ela não contraria a Constituição, mas sim na sua indevida aplicação por parte da Municipalidade.

A questão não é, portanto, de inconstitucionalidade, mas sim de ilegalidade.

Nessa perspectiva, mostra-se possível que órgãos judiciários – inclusive os colegiados fracionários do Egrégio Tribunal de Justiça – reconheçam a ilegalidade da conduta da Administração Pública, sem que para tanto seja necessária manifestação do Colendo Órgão Especial, visto que não se trata, com o devido respeito a entendimento diverso, de reconhecimento de inconstitucionalidade do ato normativo.

Em outras palavras, se não está configurada a questão prejudicial constitucional o recurso pode ser julgado diretamente pela Col. 9ª Câmara de Direito Público, sendo descabida prévia apreciação pelo Col. Órgão Especial.

Nesse sentido, em outra ocasião o Col. Órgão Especial acolheu a posição aqui sustentada. No julgamento da arguição de inconstitucionalidade nº 994.09.229498-3, rel. des. Palma Bisson, examinado na sessão realizada em 10.02.2010, não foi conhecida a alegação de inconstitucionalidade, tendo em vista que a falta de publicação do ato normativo conduziu apenas à sua ineficácia, sendo a aplicação da lei verdadeira ilegalidade, e não inconstitucionalidade.

Eis a ementa do referido julgado:

“(...)

         Incidente de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1712/10.12.2003, do Município de Arujá, que ‘Dispõe sobre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, e dá outras providências’ – a ineficácia, invalidade ou inexistência da lei por falta de sua publicação encerra questão não de inconstitucionalidade, mas sim de ilegalidade, às inteiras descoberta pela cláusula de reserva de plenário, o que permite ao órgão fracionário do Tribunal diretamente enfrentá-la – incidente não conhecido.

(...)”

Diante do exposto, nosso parecer é pela não admissão do incidente.

São Paulo, 06 de março de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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