Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0306806-95.2011.8.26.0000

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público

Objeto: inconstitucionalidade da Emenda n. 09, de 24 de março de 2004, à Lei Orgânica do Município de Adamantina.

 

 

Ementa:Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. Emenda n. 09/04 à Lei Orgânica do Município de Adamantina. Gratuidade da tarifa do transporte coletivo urbano. Extensão aos idosos maiores de 65 anos de idade. Violação da Separação de poderes. Procedência.1. A reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais. 2. Improcedência também de violação aos arts. 25 e 176, I, da Constituição Estadual, porque a regra jurídica impugnada não cria diretamente despesa para órgãos ou entidades da Administração Pública. 3.Ademais, não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo porqueas hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em rol taxativo, no artigo 61 da Constituição Federal. 4. A disciplina da política tarifária dos serviços públicos, inclusiveos delegados a particulares, e compreendendo a extensão da isenção (gratuidade) de tarifa para além do art. 230, § 2º, da Constituição Federal, é matéria conferida ao Poder Executivo sob o ângulo da separação de poderes (reserva de iniciativa legislativa e da reserva da Administração). 5. Contrariedade aos arts. 5º, 47, II, XIV, e XIX, 119 e 120, da Constituição Estadual, e aos arts. 2º e 84, II e VI, a, da Constituição Federal.

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela colenda 9ª Câmara de Direito Público no julgamento de apelação interposta contra sentença que julgou parcialmente procedente ação civil pública condenando a ré a efetuar o transporte coletivo dos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos de idade e reservar 10% (dez por cento) dos assentos aos maiores de 60 (sessenta) anos, em venerando acórdão assim ementado:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA OBJETIVANDO O FORNECIMENTO DE TRANSPORTE COLETIVO URBANO, GRATUITO, A MAIORES DE 60 ANOS – FACULDADE CONFERIDA AO MUNICÍPIO PELO ESTATUTO DO IDOSO, SECUNDADO POR DETERMINAÇÃO DA LEI ORGÂNICA MUNICIPAL – Emenda à Lei Orgânica que, em tese, padece do vício de iniciativa, por ser de autoria de Vereadores – Suscitado incidente de inconstitucionalidade para dirimir a questão” (fls. 277/281).

2.                É o relatório.

3.                Em pauta o exame da constitucionalidade da Emenda n. 09, de 24 de março de 2004, à Lei Orgânica do Município de Adamantina, in verbis:

“Art. 1º. O art. 273 da Lei Orgânica do Município de Adamantina passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 273 – Aos aposentados por invalidez, aos deficientes físicos e aos maiores de 60 (sessenta) anos, é garantida a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e rurais, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.

§ 1º - Para ter acesso à gratuidade, basta que o idoso apresente qualquer documento pessoal que faça prova de sua idade.

§ 2º - Nos veículos de transporte coletivo de que trata este artigo, serão reservados 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados com a placa de reservado, preferencialmente para idosos’.

Art. 2º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário” (fl. 63).

4.                Segundo o venerando acórdão, a edição dessa norma, não obstante a abertura proporcionada pelo art. 39, § 3º, da Lei n. 10.741/03, caracteriza “ingerência nas prerrogativas constitucionais do Chefe do Poder Executivo para propositura de leis que regulem a organização de serviços públicos, infringindo com isso os artigos 61, § 1º, inciso II, letra ‘b’, da Constituição Federal, e artigos 5º e 47 incisos II, XI e XVIII da Constituição do Estado, todos aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista”, assim como contrariedade aos arts. 25 e 176, I, da Constituição Estadual, pela criação de despesa pública “ainda que de forma indireta, pela eventual necessidade de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato – sem a indicação dos recursos disponíveis para atender aos novos encargos” (fl. 280).

5.                O art. 61, § 1º, II, b, da Constituição Federal, é ininvocável como paradigma porque é norma específica destinada exclusivamente à organização administrativa e aos serviços públicos dos Territórios. Neste sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal que “a reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais” (STF, ADI 2.447-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 04-03-2009, v.u., DJe04-12-2009).

6.                Tampouco é de se ter como hábil a arguição de contrariedade aos arts. 25 e 176, I, da Constituição Estadual. A regra jurídica impugnada não cria diretamente despesa para órgãos ou entidades da Administração Pública e, ademais, o Supremo Tribunal Federal tem estimado quenão procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerusclausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

7.                Com efeito, em se tratando de processo legislativo é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis às demais órbitas federativas e, também, que sendo a iniciativa comum a regra a reserva de iniciativa legislativa é exceção, merecendo interpretação restritiva.

8.                Impõe-se, portanto, examinar se a matéria legislada é ou não inserida na reserva de iniciativa legislativa ou, ainda, na denominada reserva da Administração.

9.                O tema atinente aos serviços públicos, notadamente os delegados mediante concessão ou permissão, é do domínio da lei, como expressa o parágrafo único do art. 175 da Constituição Federal.

10.              No âmbito normativo estadual, a Constituição Paulista, de sua parte, enuncia que “os serviços concedidos ou permitidos ficarão sempre sujeitos à regulamentação e fiscalização do Poder Público” (art. 119, primeira parte) e que “os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer” (art. 120).

11.              Portanto, é assunto que se insere tanto na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo quanto na reserva da Administração, concebida esta como matéria submetida ao poder normativo da Administração, espaço conferido à disciplina por ato normativo do Poder Executivo sobre as matérias não reservadas à lei em sentido formal ou inerente à gestão administrativa. 

12.              O poder normativo da Administração consiste, segundo Odete Medauar, na faculdade da Administração Pública “de emitir normas para disciplinar matérias não privativas da lei” (Direito Administrativo Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, 11ª ed., p. 115), estabelecendo a denominada reserva da Administração que, conforme proclama a jurisprudência, tem o seguinte perfil:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

13.              A reserva da Administração é prevista no art. 47, II, XIV, e XIX, da Constituição Estadual, que reproduz os preceitos do art. 84, II e VI, a, da Constituição Federal, sendo decorrência do princípio da separação de poderes (art. 2º, Constituição Federal; art. 5º, Constituição Estadual).

14.              No caso, é ao Poder Executivo conferida competência para disciplina organizativa e funcional dos serviços públicos, inclusive daqueles delegados à iniciativa privada, havendo ainda reserva de iniciativa legislativa resultante dessa sua atribuição de administração ordinária dos negócios públicos quando a matéria, nos termos do art. 175, parágrafo único, da Constituição de 1988, refletir sobre o contrato e a política tarifária, como é o caso referente à isenção (ou gratuidade) de certa categoria de pessoas da tarifa para além do disposto no art. 230, § 2º, da Constituição Federal, na medida em que interfere no equilíbrio econômico-financeiro.

15.              Neste sentido, colhe-se deste egrégio Órgão Especial:

“DIREITO CONSTITUCIONAL - AÇÃO DIRETA DEINCONSTITUCIONALIDADE - LEI MUNICIPAL - CRIAÇÃO DEISENÇÃO DE TARIFA NO TRANSPORTE COLETIVO LOCAL – VÍCIODE INICIATIVA - AUMENTO DE DESPESA SEM PREVISÃO DERECURSOS - EXISTÊNCIA – INCONSTITUCIONALIDADEVERIFICADA - É inconstitucional a Lei Municipal de Lins 5.349, de2 de julho de 2010, que instituiu hipótese de isenção de tarifa notransporte coletivo local, por vício de iniciativa. Ademais, talproceder configura violação da independência e harmonia dospoderes, bem como criação de despesa sem previsão de recursos- Violação dos arts. 2º e 61, § 1, II, "b", da Constituição Federal,aplicáveis aos Municípios por força do princípio da simetria e ‘ex vi’ dos arts. 5º, 25 e 47, XVIII, e 144 da Constituição Estadual -Ação procedente” (TJSP, ADI 0366707-28.2010.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de Aquino, v.u., 26-10-2011).

“Ação direta deinconstitucionalidade - Lei n°7.158/24.02.2010, do Município dePresidente Prudente, de iniciativaparlamentar e promulgada pelo Presidenteda Câmara Municipal após ser derribado oveto do alcaide, que ‘Acrescenta mais uminciso no artigo 1º e dá nova redação ao§ 1º do mesmo artigo da Lei Municipal n°6.213 que regulamenta o passe gratuito aos portadores de deficiência’ - reserva-se exclusivamente ao Chefe doPoder Executivo Municipal a iniciativade leis que, como a ora impugnada,disponham sobre o serviço de transportecoletivo, porquanto é dele, e privativa,a atribuição de disciplinar os serviçospúblicos municipais. inconstitucionalidade que também brotado ato normativo vergastado por nãoprever a fonte dos recursos que pagarãoo transporte gratuito aos passageiros deque trata - violação dos artigos 5º, 25,37, 47, II, 144, 174, I, II e III e 176,I, da Constituição Estadual – açãoprocedente” (TJSP, ADI 0142417-30.2010.8.26.0000, Rel. Des. Palma Bisson, v.u., 26-10-2011).

“Arguição de inconstitucionalidade. Lei municipalque estende benefício, de gratuidade no transportepúblico a maiores de sessenta anos. Vício deiniciativa. Arts. 5º e 47, XVIII, da ConstituiçãoEstadual. Iniciativa do Prefeito Municipal.Sanção que não convalida o vício. Ausência deprevisão dos recursos necessários a fazer frente ànova despesa. Violação aos arts. 25 e 176, I, daConstituição Bandeirante. Ação julgadaProcedente” (TJSP, ADI 0525886-95.2010.8.26.0000, Rel. Des. CauduroPadin, v.u., 24-08-2011).

16.              É conveniente se apropriar das considerações constantes de voto do eminente Desembargador Walter de Almeida Guilherme:

1. A questão atinente à exclusividade do Governador doEstado relativamente ao envio para o Legislativo de projeto de lei e, pelasimetria, ao Prefeito Municipal (art. 144 da CE), está disciplinada na CartaEstadual no artigo 24, § 2º, 1 a 6 e artigo 47, XVIII. Este último declaraque é de iniciativa exclusiva do chefe do Executivo projeto de lei queverse sobre o regime de concessão ou permissão dos serviços públicos.

O que a Constituição está ordenando é que a matéria concernente ao regimede concessão ou permissão dos serviços públicos, no sentido maisabrangente, é regulada por lei de iniciativa reservada ao Governador.

Note-se que a Constituição Federal, ao cuidar de lei deiniciativa exclusiva do Presidente da República, no artigo 61, § 1º, nãorefere aquela que discipline o regime de concessão ou permissão dos serviços públicos. Nem tampouco o faz no mencionado artigo 175 eparágrafo único. Observe-se também que o constituinte não especificou aorigem da lei. O silêncio foi proposital, a fim de remeter-se a matéria àcompetência dos entes federativos autónomos, respeitado o disposto noartigo 22, XXVII, da Constituição Federal, que declara ser privativa da

União a competência para legislar sobre normas gerais de licitação econtratação. Assim, Estados e Municípios podem legislar sobreconcessão e permissão de serviços públicos, inclusive no que concernente àiniciativa da respectiva lei, se concorrente ou exclusiva.

Pois bem, no Estado de São Paulo, e em seusMunicípios, já se viu, a iniciativa é exclusiva do chefe do PoderExecutivo.

Legislar sobre concessão ou permissão de serviçospúblicos é regulamentá-la de modo abrangente, em caráter geral,compreendendo todas e quaisquer concessões e permissões de serviçospúblicos. A respeito da lei reguladora, o artigo 175 da Constituição daRepública, depois de, no caput, estatuir que incumbe ao Poder Público, naforma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,sempre através de licitação, a prestação dos serviços públicos, no parágrafoúnico, dispõe sobre o seu conteúdo, que será: ‘I - o regime das empresasconcessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráterespecial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condiçõesde caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II -os direitos dos usuários; III - política tarifária; a obrigação de manter serviço adequado.’.

Nesse sentido, a questão central da controvérsia assim seoferece: poderia lei de iniciativa parlamentar estabelecer que sãobeneficiadas com isenção do pagamento de tarifa no transporte coletivourbano e referentemente a outras atividades do Poder Público de Mococatodas as pessoas que nela são mencionadas?

Já vimos que a Constituição Federal determina que a leisobre concessão ou permissão de serviços públicos disporá, entre outrasmatérias, sobre política tarifária.

No âmbito da expressão política tarifária cabeevidentemente a estipulação da remuneração pela execução do serviço,incumbindo ao Poder Público fixar a tarifa a ser paga pelos usuários. Trata-sede preço público e, portanto, fica a sua fixação sob a competência doconcedente. Adite-se que a fixação das tarifas é o verdadeiro molde doprincípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos deconcessão. Exatamente por isso, como escreve Hely Lopes Meirelles, emDireito Administrativo Brasileiro, Malheiros, SP, 1993, pág. 346, énecessária a sua revisão periódica para compatibilizá-la com os custos dosserviços, as necessidades de expansão, a aquisição de equipamentos e opróprio lucro do concessionário.

A esse respeito, por exemplo, como notado por José dosSantos Carvalho Filho, em Manual de Direito Administrativo, EditoraLúmen Júris, 2007, pág. 331, a Lei Federal n° 9.074/1995, ‘Para evitar quemaus administradores instituam, de maneira descriteriosa, benefíciostarifários, dispôs que sua estipulação fica condicionada à previsão, em lei,da origem dos recursos ou da concomitante revisão da estrutura tarifáriado concessionário ou permissionário, tudo com o objetivo de manter oequilíbrio econômico-financeiro do contrato. A lei foi mais adiante: taisbenefícios só podem ser atribuídos a uma coletividade de usuários, sendovedado expressamente o beneficio singular, fato que configuraria eminiludível conduta ilegal, caracterizadora do desvio de finalidade’.Não estou a dizer, com isso, que o benefício instituídopelas leis ora impugnadas em favor das pessoas nelas referidas não écriteriosa ou cria um favor individual. O que impende observar, todavia,é que, impondo a Constituição Federal que lei exista a regrar o regime deconcessão ou permissão de serviços públicos e que cabe a ela dispor sobrepolítica tarifária, isto é, regular a fixação de tarifas, tratando, portanto,também de isenções e vantagens, essa lei, no Estado de São Paulo, porforça do inciso XVIII do artigo 47 de sua Constituição, é de iniciativaexclusiva do Governador e, em razão da simetria obrigatória com essemodelo e aquele da Constituição Federal ao cuidar do processo legislativo,no Município, a iniciativa é exclusiva do Prefeito” (TJSP, ADI 9030457-47.2009.8.26.0000, m.v., 16-03-2011).

17.              Guardadas as devidas proporções, esse entendimento está alinhado com a concepção do Supremo Tribunal Federal, verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 3.449/04 DO DISTRITO FEDERAL. PROIBIÇÃO DE COBRANÇA DE ASSINATURA BÁSICA NOS SERVIÇOS DE ÁGUA, LUZ, GÁS, TV A CABO E TELEFONIA. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR E PRESTAR OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES E ENERGIA ELÉTRICA (CF, ART. 21, XI E XII, ‘b’, E 22, IV). FIXAÇÃO DA POLÍTICA TARIFÁRIA COMO PRERROGATIVA INERENTE À TITULARIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO (CF, ART. 175, PARÁGRAFO ÚNICO, III). AFASTAMENTO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DO ESTADO-MEMBRO PARA LEGISLAR SOBRE CONSUMO (CF, ART. 24, V E VII). USUÁRIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS CUJO REGIME GUARDA DISTINÇÃO COM A FIGURA DO CONSUMIDOR (CF, ART. 175, PARÁGRAFO ÚNICO, II). PRECEDENTES. SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E GÁS. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO (CF, ART. 2º). PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. O sistema federativo instituído pela Constituição Federal de 1988 torna inequívoco que cabe à União a competência legislativa e administrativa para a disciplina e a prestação dos serviços públicos de telecomunicações e energia elétrica (CF, arts. 21, XI e XII, ‘b’, e 22, IV). 2. A Lei nº 3.449/04 do Distrito Federal, ao proibir a cobrança da tarifa de assinatura básica “pelas concessionárias prestadoras de serviços de água, luz, gás, TV a cabo e telefonia no Distrito Federal” (art. 1º, caput), incorreu em inconstitucionalidade formal, porquanto necessariamente inserida a fixação da ‘política tarifária’ no âmbito de poderes inerentes à titularidade de determinado serviço público, como prevê o art. 175, parágrafo único, III, da Constituição, elemento indispensável para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e, por consequência, da manutenção do próprio sistema de prestação da atividade. 3. Inexiste, in casu, suposto respaldo para o diploma impugnado na competência concorrente dos Estados-membros para dispor sobre direito do consumidor (CF, art. 24, V e VII), cuja interpretação não pode conduzir à frustração da teleologia da referida regra expressa contida no art. 175, parágrafo único, III, da CF, descabendo, ademais, a aproximação entre as figuras do consumidor e do usuário de serviços públicos, já que o regime jurídico deste último, além de informado pela lógica da solidariedade social (CF, art. 3º, I), encontra sede específica na cláusula ‘direitos dos usuários’ prevista no art. 175, parágrafo único, II, da Constituição. 4. Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do Chefe do Poder Executivo Distrital na condução da Administração Pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 3.343-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, 01-09-2011, m.v., DJe 22-11-2011).

18.              Com efeito, prevalece na Suprema Corte a orientação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo em se tratando de serviço público, como estampam as seguintes decisões:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VÍCIO DE INICIATIVA. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO. PEDIDO DEFERIDO. Lei nº 781, de 2003, do Estado do Amapá que, em seus arts. 4º, 5º e 6º, estabelece obrigações para o Poder Executivo instituir e organizar sistema de avaliação de satisfação dos usuários de serviços públicos. Inconstitucionalidade formal, em virtude de a lei ter-se originado de iniciativa da Assembléia Legislativa. Processo legislativo que deveria ter sido inaugurado por iniciativa do Governador do Estado (CF, art. 61, § 1º, II, e). Ação direta julgada procedente” (STF, ADI 3.180-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 17-05-2007, v.u., DJe 15-06-2007).

“MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 293 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. Disposição da Constituição que concede prazo de até vinte e cinco anos para o pagamento, pelos municípios, da indenização devida pela encampação dos serviços de saneamento básico (água e esgoto) prestados, mediante contrato, e pelos investimentos realizados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - SABESP, sociedade de economia mista estadual. 2. Plausibilidade jurídica (fumus boni iuris) da tese sustentada pelo Estado requerente porque a norma impugnada fere o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º), a que está submetido o constituinte estadual (CF, art. 25), restando excluída a participação do Poder Executivo no processo legislativo da lei ordinária. Fere, também, a exigida participação do Poder Executivo no processo legislativo, mediante sanção ou veto, como previsto no art. 66 da Constituição Federal. 3. Periculum in mora caracterizado pela iminente aplicação da norma a Municípios que já editaram lei para assumirem a prestação dos serviços públicos referidos. 4. Medida cautelar deferida com efeito ex-nunc - por estarem presentes a relevância dos fundamentos jurídicos do pedido e a conveniência da sua concessão - até o julgamento final da ação” (STF, ADI-MC 1.746-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 18-02-1997, v.u., DJ 19-09-2003, p. 14).

19.              Face ao exposto, opino pela procedência do incidente de inconstitucionalidade por vislumbrar contrariedade aos arts. 5º, 47, II, XIV, e XIX, 119 e 120, da Constituição Estadual, e aos arts. 2º e 84, II e VI, a, da Constituição Federal.

 

         São Paulo, 16 de janeiro de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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