Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0484902-69.2010 (994.06.169017-7)

Suscitante: 5ª. Câmara de Direito Público

Objeto: Portaria ARTESP nº 9, de 12/5/2005

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 5ª. Câmara de Direito Público do TJSP, da Portaria ARTESP nº 9/2005, que determina que os motoristas de linhas intermunicipais de transporte coletivo façam paradas a cada trecho de 170 Km. Cogitada usurpação da competência da União para legislar sobre Direito do Trabalho (art. 22, I, CF). Considerações sobre o poder normativo das agências reguladoras nos casos em que a determinação se dirige aos concessionários e permissionários de serviço público. Ato normativo que atende a interesse coletivo (segurança dos passageiros) e escapa ao âmbito do Direito do Trabalho. Parecer pela rejeição da arguição, declarando-se a constitucionalidade da Portaria questionada.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 5ª Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível nº 994.06.169017-7, em que figuram como partes o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado de São Paulo (apelante) e o Diretor Geral da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado de São Paulo – ARTESP (apelado).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, da Portaria ARTESP nº 9, de 12/05/2005, em face do que dispõe o art. 22, inc. I, da Constituição Federal.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado de São Paulo impetrou mandado de segurança coletivo visando a sustação dos efeitos da Portaria ARTESP nº 9, de 12/05/2005, que determina a parada obrigatória, para descanso de no mínimo 20 minutos aos motoristas das linhas intermunicipais de transporte coletivo de passageiros, a cada trecho de 170 Km percorridos.

Denegado o pedido em 1º grau de jurisdição, coube à 5ª. Câmara de Direito Público conhecer de apelação interposta pelo Sindicato e, suspendendo o julgamento, suscitar o presente incidente de inconstitucionalidade, ao divisar que a Portaria em análise decorre da usurpação da competência constitucional da União para legislar sobre Direito do Trabalho.

A questão constitucional foi delimitada pelo Órgão Fracionário nos seguintes termos:

De fato, o sistema constitucional reserva à União competência privativa para legislar sobre Direito do Trabalho. Esta a regra do artigo 22, inciso I, da Carta de 1988. Destarte, a Portaria ARTESP nº 9/2005, considerando o conforto dos passageiros e a necessidade de um descanso mínimo na jornada de trabalho para os condutores que operam linhas rodoviárias intermunicipais (sic preâmbulo – fls. 46, grifo do original), usurpou aquela reserva constitucional, além de ousar derrogação do disposto no art. 71 e parágrafos, da Consolidação das Leis do Trabalho, e artigo 62 do Decreto Federal nº 2.521/1998. Regem-se relações de trabalho – em particular intervalos de descanso intrajornada e suas consequências à saúde do motorista – no campo do transporte público.

Não impressiona a nota preambular da Portaria nº 9/2005, na parte em que menciona a necessidade de conforto dos passageiros, tema tratado no artigo 62 do Decreto Federal nº 2.521/1998. O fulcro da norma administrativa estadual colide mesmo é com a matéria trabalhista.   

Pois bem.

Reside a controvérsia em saber se a ARTESP usurpou a competência da União ao editar o ato normativo questionado. E a resposta é, a meu ver, negativa.

Peço vênia, inicialmente, para lembrar que, a partir da denominada “Reforma Administrativa” (ou “reforma do Estado”), foram instituídas agências reguladoras, com a natureza jurídica de “autarquias de regime especial”, para disciplinar e controlar atividades que podem ser agrupadas em cinco categorias: (1) a dos serviços públicos propriamente ditos; (2) a do fomento e fiscalização da atividade privada; (3) a das atividades exercitáveis para promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo; (4) a das atividades que o Estado protagoniza (serviços públicos) e também faculta aos particulares; e (5) relacionadas ao uso de bem público (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 170-171).

Esse fenômeno, que a doutrina chama de agencificação (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Limites da função reguladora das agências diante do princípio da legalidade, in: Maria Sylvia Zanella Di Pietro (org.), Direito regulatório: temas polêmicos, 2ª. ed., Belo Horizonte, Fórum, 2004, p. 35-41), suscita interessante discussão acerca do limite do poder regulatório dessas autarquias sem invasão da função legislativa.

Há algum consenso na doutrina de que, de ordinário, “tais entidades hão de cifrar aspectos estritamente técnicos, que estes, sim, podem, na forma da lei, provir de providências subalternas” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 170-171). Se as agências extrapolam essa moldura, produzem atos normativos ilegítimos, por ofensa ao princípio da legalidade.

Difere a situação, entretanto, quando a regulação se dirige aos concessionários ou permissionários do serviço público, desde que, evidentemente, a lei confira à autarquia a competência para expedir normas da alçada do poder concedente.

É que, nesse caso, as agências atuam no campo da supremacia especial, ditando regras “na extensão e intensidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 172-173).

Para essa direção também aponta o magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem, “em relação às concessionárias de serviços públicos, as agências assumem as atribuições próprias do poder concedente: fixam as regras de prestação do serviço, fazem licitação, celebram o contrato, controlam, aplicam sanções, rescindem o contrato, alteram unilateralmente as regras de prestação do serviço, sempre tendo presente que, se as alterações afetarem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, têm o dever de restabelecê-lo” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Limites da função reguladora das agências diante do princípio da legalidade, in: Maria Sylvia Zanella Di Pietro (org.), Direito regulatório: temas polêmicos, 2ª. ed., Belo Horizonte, Fórum, 2004, p. 35-49, g.n.).

A lição está resumida da seguinte forma:

“(...) nos contratos de concessão, seja de serviço público, seja de exploração do bem público, celebrados com as agências reguladoras (...), é a agência que desempenha a função regulamentar inerente a esse tipo de contrato (...). Ela pode alterar, por decisão unilateral, as normas de execução do contrato, com a obrigação de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro eventualmente afetado por essa alteração. Mas aqui também o que existe é o ato normativo de efeito concreto” (ob. cit., p. 49).

Essa parece ser a situação em que se enquadra a Portaria questionada, desde que se note que o ato emana de agência competente para “regulamentar e fiscalizar todas as modalidades de serviços públicos de transporte autorizados, permitidos ou concedidos, no âmbito da Secretaria de Estado de Transportes, a entidades de direito privado” (art. 1º da Lei Complementar n. 914/02, do Estado de São Paulo), para incidir, especificamente, no transporte intermunicipal de passageiros, cuja regulação toca, indubitavelmente, aos Estados-membros. Confiram-se:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 2º DO ARTIGO 229 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. TRANSPORTE COLETIVO INTERMUNICIPAL. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. ARTIGO 30, V DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. TRANSPORTE GRATUITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. POLICIAIS CIVIS. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA. 1. Os Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a prestação de serviços de transporte intermunicipal. 2. Servidores públicos não têm direito adquirido a regime jurídico. Precedentes. 3. A prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito. 4. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente (ADI 2349, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2005, DJ 14-10-2005 PP-00007 EMENT VOL-02209-01 PP-00125 LEXSTF v. 27, n. 323, 2005, p. 46-53, grifei).

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRANSPORTE INTERMUNICIPAL. COMPETÊNCIA REGULAMENTAÇÃO. ESTADO. CF/88, ART. 30, I. 1. Ocorrência de descompasso de decreto municipal frente à legislação estadual ao impedir o embarque ou desembarque de passageiros das linhas intermunicipais fora de terminais. Inteligência do art. 30, I, da Constituição Federal. 2. Compete aos Estados-membros explorar e regulamentar a prestação de serviços de transporte intermunicipal. ADI 2.349/ES. 3. Agravo regimental improvido (RE 549549 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 25/11/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-13 PP-02923 RTJ VOL-00209-03 PP-01384 RT v. 98, n. 882, 2009, p. 124-126, grifei).

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 224 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO AMAPÁ. GARANTIA DE "MEIA PASSAGEM" AO ESTUDANTE. TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS MUNICIPAIS [ARTIGO 30, V, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS INTERMUNICIPAIS. SERVIÇO PÚBLICO E LIVRE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, CAPUT E INCISOS I E XXII, E 170, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil estabelece, no que tange à repartição de competência entre os entes federados, que os assuntos de interesse local competem aos Municípios. Competência residual dos Estados-membros - matérias que não lhes foram vedadas pela Constituição, nem estiverem contidas entre as competências da União ou dos Municípios. 2. A competência para organizar serviços públicos de interesse local é municipal, entre os quais o de transporte coletivo [artigo 30, inciso V, da CB/88]. 3. O preceito da Constituição amapaense que garante o direito a "meia passagem" aos estudantes, nos transportes coletivos municipais, avança sobre a competência legislativa local. 4. A competência para legislar a propósito da prestação de serviços públicos de transporte intermunicipal é dos Estados-membros. Não há inconstitucionalidade no que toca ao benefício, concedido pela Constituição estadual, de "meia passagem" aos estudantes nos transportes coletivos intermunicipais. 5. Os transportes coletivos de passageiros consubstanciam serviço público, área na qual o princípio da livre iniciativa (artigo 170, caput, da Constituição do Brasil) não se expressa como faculdade de criar e explorar atividade econômica a título privado. A prestação desses serviços pelo setor privado dá-se em regime de concessão ou permissão, observado o disposto no artigo 175 e seu parágrafo único da Constituição do Brasil. A lei estadual deve dispor sobre as condições dessa prestação, quando de serviços públicos da competência do Estado-membro se tratar. 6. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da conjunção aditiva "e" e do vocábulo "municipais", insertos no artigo 224 da Constituição do Estado do Amapá (ADI 845, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 22/11/2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-01 PP-00031 RTJ VOL-00205-01 PP-00029 LEXSTF v. 30, n. 352, 2008, p. 43-56, grifos nossos).

Estabelecido que a agência detém, por força de delegação legislativa, competência para disciplinar o transporte intermunicipal, figura-se verossímil que, inspirada em exemplos da Comunidade Europeia e da América do Norte (fls. 79), tenha estabelecido a regra objurgada, visando, certamente, à redução da fadiga do motorista e, em consequência, o aumento do nível de segurança nas estradas intermunicipais.

Outra não é a vocação dessas entidades:

“Em suma, note-se que o que se busca com o processo denominado “reforma do Estado” e também com a criação de entes reguladores é a eficiência na realização dos fins almejados pelo Estado, tais como justiça e bem-estar sociais.

(...)

Assim, as agências reguladoras surgem num momento histórico em que se faz imprescindível a existência de entidades que tenham como missão controlar e regular determinadas atividades, para que sejam atingidos os objetivos almejados pelo Estado e se alcance a eficiência procurada. Possuem, portanto, função instrumental no que tange aos escopos fixados com a “reforma do Estado”, consistindo na citada “terceira via” de atuação estatal.

Importa destacar que a ação disciplinadora dos entes reguladores tornar-se-ia inócua e restariam frustradas as razões de sua instituição, se tais órgãos se restringissem à prática de atos repressivos, por exemplo, sem poder elaborar normas de caráter geral, veiculatórias de sua política econômica. Tampouco seriam úteis na hipótese de configurarem mera “reprodução”, com denominação diversa, das tradicionais autarquias. Verifica-se, portanto, que as agências reguladoras precisam dispor de meios de atuação, de poderes compatíveis com as funções que lhe foram outorgadas” (Leila Cuéllar, As agências reguladoras e seu poder normativo, São Paulo, Dialética, 2001, p. 129).

Nesse sentir, a determinação para que os motoristas das permissionárias façam paradas a cada 170 km não influi absolutamente na relação entre o empregado e o empregador e, por isso, nada tem a ver com o Direito do Trabalho, que se compreende como sendo o conjunto de princípios, normas e instituições aplicáveis à relação de trabalho subordinado, sempre com vista à melhoria da condição social do trabalhador.

Não há, em conclusão, usurpação da competência legislativa da União.

A conduta da agência, ademais, atende à razoabilidade e ao interesse coletivo, não se divisando a cogitada inconstitucionalidade. Em nome da proteção do consumidor, são admitidas, como se sabe, restrições às quais o permissionário deve se submeter. Mutatis mutandis, já se decidiu:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. COMERCIALIZAÇÃO DE DERIVADOS DE PETRÓLEO. ATIVIDADE FISCALIZATÓRIA E REGULADORA DO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. RESTRIÇÕES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. O Supremo Tribunal Federal assentou que o princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor. Precedentes (AI 636883 AgR, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011, DJe-040 DIVULG 28-02-2011 PUBLIC 01-03-2011 EMENT VOL-02473-01 PP-00219).

Diante do exposto, o parecer é pela rejeição da arguição, declarando-se a constitucionalidade da Portaria ARTESP nº 9/2005.

 

São Paulo, 2 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

jesp