Incidente de Inconstitucionalidade n.º 156.268.0/6-00
Suscitante: 3ª.
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça
Suscitado: Municipalidade
de Bauru
Parecer do Ministério Público
Ementa. Declaração de inconstitucionalidade de emenda à Constituição. Possibilidade.
Caso concreto da EC 39 que não padece de qualquer vício. Lei municipal
instituidora de contribuição de iluminação. Eleição do proprietário de imóvel e
consumidor de energia elétrica como contribuintes. Impossibilidade. Princípio da igualdade ofendido. Incidente de
inconstitucionalidade parcialmente acolhido.
Proposto
mandado de segurança coletivo pelo Sindicato dos Condomínios de Prédios e
Edifícios Comerciais, Industriais, residenciais e Mistos Intermunicipal do
Estado de São Paulo em face do Prefeito Municipal de Bauru, tendo em vista a
inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.075/2003, que instituiu naquele
Município a contribuição de Iluminação Pública. Sustentaram que a própria EC 39
é inconstitucional, face o que dispõe o Código Tributário Nacional, além de ser
igualmente inconstitucional a lei instituidora do tributo. Julgado procedente o
pedido pela r.sentença de fls. 100/105, subiram os autos por força da apelação
voluntária de fls. 110/120, além do reexame necessário. Recurso respondido e
bem processado, manifestou-se nesta instância o Ministério Público pela pena do
Doutor (...), posicionando-se pela decretação de carência de ação do apelado. Suscitado
o incidente de inconstitucionalidade pela Colenda 3.ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO
(fls. 146/158 – Relator o I. Desembargador), manifesto-me nos termos dos artigos
480 e ss. do Código de Processo Civil. O Relator do Incidente de
Inconstitucionalidade é o I. Desembargador (...).
Duas
são as questões sob exame: a) saber se a EC 39 é constitucional ou não e, b) se
a Lei Municipal nº 5.075, de 23/12/2003 é viciada ou não. A resposta é positiva
apenas em relação a segunda questão.
Inicialmente,
deve ser afirmado que o reconhecimento da inconstitucionalidade de emenda a
Constituição é possível e necessária nos casos de ofensa às normas do artigo 60
da Lei Maior. Aliás, a doutrina é nesse exato sentido.[1]
O Supremo Tribunal Federal também já firmou entendimento sobre o tema, na ADI
nº. 939/DF, relatada pelo Min. SYDNEY SANCHES, julgada em 15 de dezembro de
1993, pelo Tribunal Pleno, publicada no Diário da Justiça de 18 de março de
1994, pág. 5.165, no Ementário Vol. 01737-02, pág, 160, e na RTJ vol. 151-03,
pág. 755, assim ementada:
EMENTA: - Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade
de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório
sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de
Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e
IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b",
"c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda
Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em
violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo
Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição
(art. 102, I, "a", da C.F.).
Portanto, fora de dúvida que o controle de constitucionalidade se exerce
também em relação às emendas constitucionais.
Todavia,
no caso sub exame não vislumbramos
inconstitucionalidade alguma na Emenda Constitucional nº 39, de 19 de dezembro
de 2002. Com efeito, tal emenda acresceu ao texto o artigo 149-A, permitindo
aos Municípios instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o
custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e
II.
Com
certeza a norma ofende a boa técnica tributária, consagrada em doutrina e
jurisprudência, relativamente ao conceito de imposto, taxa e contribuição. Com
clareza entendemos que o serviço de iluminação pública deveria ser custeado
pela receita auferida com impostos, nunca contribuição.
Também
é fato que o art. 148 da Constituição prevê a possibilidade da União instituir
empréstimos compulsórios, assim como instituir contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou
econômicas, nos termos do art. 149 da Lei Maior.
Além
disso, o parágrafo único do art. 149, com a redação e renumeração dadas pela
Emenda Constitucional nº. 41, de 19 de dezembro de 2003, determina à União,
Estados/DF e Municípios que instituam e cobrem contribuição previdenciária de
seus servidores. Note-se que a redação original apenas autorizava tal cobrança.
Mas
a questão que se coloca é se a estrutura tributária prevista na Constituição
pode ou não ser alterada pela via de emendas, ou seja, aquelas disposições dos
artigos 145 até o 149, complementadas pelos artigos 153 até 156, são ou não
cláusulas pétreas? A resposta é negativa.
Com
efeito, o constituinte originário estabeleceu no § 4º do art. 60 da
Constituição, as matérias que não poderiam ser objeto de emendas, ainda que
estas meramente tendessem a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto,
secreto, universal e periódico, a separação de Poderes e os direitos e garantias individuais. Sabido que em relação aos
direitos e garantias individuais, a proteção não se limita ao contido no art.
5º da Lei Maior, pois abrange também os direitos individuais fixados no art.
150 da Constituição, dado que apenas por técnica legislativa é que se decidiu
por separar as garantias em matéria tributária das demais, cujo elenco está nos
vários incisos do art. 5º. Aliás, no julgamento da ADI nº. 939 acima mencionada
isso ficou claramente afirmado, tendo o Pretório Excelso reconhecido as
disposições do art. 150 como cláusulas pétreas.
Não
obstante, a EC 39 não padece desse vício, embora reconheçamos a falta de boa técnica
do constituinte reformador. Pese embora isso, impedir o constituinte reformador
de criar novas figuras tributárias, seria engessar demasiadamente a
Constituição, impedindo até mesmo a reforma constitucional tributária tão
aguardada quanto exigida. A imprensa noticia os nortes da reforma tributária e
se sabe, ao menos por essa fonte, que haverá supressão de impostos e
instituição de outros.
Resta
dizer que não desconhecemos o relevante precedente consubstanciado no Incidente
de Inconstitucionalidade nº 70014030910, relatado pelo Dês. WELLINGTON PACHECO
BARROS, do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, publicado em 29 de
maio de 2007, favorável a tese defendida pelo Douta 3ª Câmara de Direito
Público, mas que não nos demove do entendimento expressado.
A
conclusão é que a Emenda Constituição nº. 39, de 19 de dezembro de 2002 não é
inconstitucional.
Outra
é a conclusão em relação à Lei Municipal nº 5.075, de 23 de dezembro de 2003
(fls. 33/34), cujos artigos 3º e 4º assim dispõe:
“Art. 3º - O sujeito passivo da CIP
é o proprietário ou possuidor de imóveis com testada para a via pública ou não,
seja em perímetro urbano ou rural, beneficiados pela rede de energia elétrica.
Art. 4º - O valor da contribuição
será aferido em função do custo global do serviço, dividido pelo número de
imóveis beneficiados, conforme artigo 3º desta lei, podendo ser variável de
acordo com o consumo de energia elétrica, de acordo com o regulamento.
§ 1º. Estabelece como limite
individual o máximo da contribuição o valor de 5% (cinco por cento) do consumo
individual de energia elétrica, não podendo exceder o valor máximo de R$ 10,00
(dez reais).”
Sua
invalidade jurídico-constitucional decorre do fato de que, ao instituir a
COSIP, o legislador municipal adotou alíquotas progressivas, ainda que de forma
indireta ou disfarçada, o que é incompatível com o sistema constitucional tributário
em vigor. É que
O
§ 1º do art. 4º da Lei 5.075/03, de Bauru, prevê que o valor da contribuição
será o do custo global dividido pelo número de consumidores de energia elétrica,
cujos imóveis tenham testada para a via pública, porém limitando o valor
individual a 5% do consumo de energia elétrica. Assim, s.m.j., se fixou
progressividade incompatível com o sistema constitucional tributário para as
contribuições. De fato, o legislador municipal adotou, não há como negar, o
critério da progressividade de alíquotas na cobrança da COSIP, repetimos, ainda
que de forma indireta. Entretanto, está assentado o entendimento de que a
progressividade de alíquotas em tributos só é possível nas hipóteses
expressamente autorizadas pelo constituinte.
Deve
ser ressaltado que paira isento de controvérsia que os Municípios integram a
Federação e têm garantida sua autonomia, atendidos os princípios estabelecidos
na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (art. 29, CF). E essa
autonomia é revelada pela competência para legislar sobre assuntos de interesse
local; suplementar a legislação federal e estadual no que couber; instituir e
arrecadar tributos de sua competência, dentre outras (art. 30, CF).
Todavia,
a competência tributária dos Municípios, consubstanciada na capacidade de
instituir tributos, encontra limite nas normas da Constituição Federal
referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e seguintes, CF) e
Estadual, que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra
matriz dos tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria).
De
fato, mesmo reconhecendo que a Constituição Federal não criou tributos, é certo
que, além de discriminar competências, ela traça a “norma padrão de incidência”
de cada um dos tributos que podem ser criados pelos entes federativos. Em
outras palavras, a Constituição Federal, no art. 145, ao conferir competência
às pessoas políticas para que instituam impostos, taxas e contribuição de
melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada um
deles e vinculando o legislador ordinário.
Assim
sendo, a legislação em exame malfere o texto fundamental estadual, pois
estabeleceu a progressividade de alíquotas em função da quantidade de consumo
medida em kw/h. E a respeito da instituição de alíquotas progressivas já
decidiu o Supremo Tribunal Federal: “tratando-se
de matéria sujeita a estrita previsão constitucional – CF, art. 153, § 2º, I;
art. 153, § 4º; art. 156, §1º, art. 182, § 4º, II; art. 195, §9º (contribuição
social devida pelo empregador)- inexiste liberdade decisória para o Congresso
Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas
progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição”[2]
Esse
critério – quantidade de consumo medida em kw/h – não constitui signo de
riqueza, não permitindo avaliar a real capacidade econômica do contribuinte.
Imprescindível a consideração de outros dados como os rendimentos e as
atividades econômicas do contribuinte, conforme expresso na regra
constitucional, aspectos descurados nas leis em comento.
Ajunte-se
que em se tratando de contribuição destinada ao custeio do serviço de iluminação
pública, a sua base de cálculo deveria guardar alguma relação com essa
atividade estatal. Contudo, a lei impugnada prevê no § 1º do seu art. 4º que a
base de cálculo da contribuição (5%) é o valor do consumo mensal de energia
elétrica do contribuinte. Base de cálculo totalmente divorciada da atuação
estatal, sem contar que adota fator que serve de base à cobrança de ICMS.
Diante
disso, conclui-se o acerto acórdão recorrido em declarar a
inconstitucionalidade da Lei nº 5.075, de 23 de dezembro de 2003 do Município
de Bauru, pois não resistiam ao confronto com os artigos 111, 144, 160, § 1º e
163, II, da Constituição do Estado de São Paulo, impondo-se, em conseqüência,
sua expulsão definitiva do sistema jurídico, bem como art. 150 da Constituição
Federal.
Nesse
sentido já se assentou o entendimento a respeito do tema no E. STF:
“Tratando-se de matéria sujeita a estrita previsão
constitucional — CF, art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º; art.
182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição social devida pelo empregador) — inexiste espaço de liberdade decisória
para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir
alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição.
(...)” (ADC 8-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-10-99, DJ de
4-4-03; g.n.).
“ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS. A PROGRESSIVIDADE
Acrescente-se
que esse E. Tribunal de Justiça já reconheceu, em precedentes, a
inconstitucionalidade de leis municipais que instituem a COSIP, utilizando a
progressividade em sua base de cálculo. A título de exemplificação, confira-se:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Demanda objetivando
a desconstituição da Lei nº 1.371, de 3 de dezembro de 2003, do Município de
Echaporã, que “dispõe sobre a instituição, no Município de Echaporã da
Contribuição para Custeio da Iluminação Pública – CIP, prevista no artigo 149-A
da Constituição Federal” – Contribuição para custeio da iluminação pública –
Lei que institui alíquotas progressivas – “Art. 5º ‘caput’ – As alíquotas de contribuição são
diferenciadas conforme a classe de consumidores e a quantidade de consumo
medida em KW/h, conforme a tabela anexo I” – O legislador municipal aplicou o
princípio da capacidade contributiva à espécie tributária ‘contribuição’, sem
embargo de coadunar-se, apenas, com os ‘impostos’, conforme a letra da
Constituição do Estado (art. 160, § 1º), que reproduz a Carta Magna (art. 145,
§ 1º) – Ainda que assim não fosse, a fruição, pelos contribuintes, da iluminação
pública, bem como a repartição, entre eles, dos respectivos custos, não possui
qualquer relação direta com os tipos de atividades que desenvolvem, que
importam, isso sim, maior ou menor gasto ‘individual’ de energia elétrica, de
modo que os fatores eleitos pela lei não podem, juridicamente, servir de
discriminantes de alíquotas. Nessa
conformidade, a progressividade de alíquotas, presente na espécie dos autos,
desatende ao ‘princípio da igualdade tributária’ (C. Est., art. 163, II)
Precedentes TJSP – ADIn 104.888-0/0-00, Rel. Des. SOUSA LIMA e TJSP – ADIn
108.351-0/9-00, Rel. Des. BARBOSA PEREIRA. – Impossibilidade de parcial
procedência da ação, para permitir que a lei subsista, cobrando-se, apenas,
pelo menor valor previsto, pois isso implicaria em estar o Tribunal a legislar
(TJSP – ADIn 104.888-0/0-00) 0 – Inconstitucionalidade da Lei n. 1.371, de dezembro
de 2003, do Município de Echaporã, por afronta ao artigo 163, inciso II, da Constituição
do Estado de São Paulo – Ação procedente.” (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 132.065-0/4-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator:
Mohamed Amaro – 02.08.06 – V.U.; g.n.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE- Lei Complementar
nº 03/2002 e Lei Complementar nº 01/2003, do Município de Panorama –
Instituição de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública –
Inconstitucionalidade – Caracterização – Afronta aos arts. 111, 144, 160,
parágrafo 1º, e 163, inciso II, todos da Constituição Estadual – Progressividade de alíquotas – Inexistência
de previsão constitucional – Faixas de consumo de energia elétrica –
Critério que não permite avaliar a real capacidade contributiva – Inobservância
dos princípios da razoabilidade e da isonomia – Subsistência parcial das leis –
Impossibilidade – Tribunal que não pode legislar – Leis declaradas inconstitucionais
– Ação procedente, mantidos até a data do julgamento os efeitos da liminar” (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 130.412-0/4-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator:
Sousa Lima – 22.11.06 – V.U.; g.n.).
No
mesmo sentido: ADI 125.535-0/3-00, rel. Des. Jarbas Mazzoni, j.08.11.06, v.u.;
ADI 123.974-0/1-00, rel. Des. Denser de Sá, j.24.01.07, v.u.; ADI 129.272.0/1,
rel. Des. Sousa Lima, j.21.03.07, v.u.).
Demais
disso, observamos que apenas os proprietários ou possuidores de imóveis com
testada para a via pública é que são os sujeitos passivos da contribuição,
sendo certo que inviável seccionar tal categoria como sendo os únicos beneficiários
da iluminação pública.
Por
essas razões, o parecer é pelo conhecimento do incidente de
inconstitucionalidade, para declarar a inconstitucionalidade da Lei n.º 5.075,
de 23 de dezembro de 2003, do Município de Bauru.
São Paulo, 10 de abril de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
Procurador de Justiça,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1] MENDES. Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, pág.95 e seguintes. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 977 e seguintes. NERY JÚNIOR, Nélson. NERY. Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. São Paulo: RT, 2006. pág. 537. SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 14ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, pág. 70.
[2] ADI 2010-2 DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 30/09/99.