INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº 165.621-0/9

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: Lei Municipal nº 1.328/05, do Município de Cotia.

 

Ementa:

Lei municipal que dispõe sobre o transporte público intermunicipal. Impossibilidade. Competência do Estado-membro. Violação do art. 30, inc. I, da CF e do art. 144, da CE. Ofensa ao princípio federativo. Projeto de iniciativa de Vereador. Vício que não se convalida pela promulgação pelo Chefe do Poder Executivo.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

1) Relatório

Viação Vidazul Ltda, concessionária do serviço de transporte coletivo intermunicipal, impetrou, perante o Juízo da 2ª. Vara da Comarca de Cotia, mandado de segurança contra o Prefeito Municipal de Cotia, insurgindo-se contra o ato de promulgação da Lei Municipal nº 1.328, de 28 de abril de 2005, que “torna obrigatória a redução de 50% do valor da tarifa para fornecimento de passes escolares nas linhas municipais e intermunicipais”.

Aduziu o impetrante que a lei dispõe sobre o regime tarifário do serviço de transporte e que é, portanto, norma de efeito concreto.

Afirmou violação de direito líquido e certo pertinente ao regime tarifário, apontando vício de inconstitucionalidade por ofensa à reserva de iniciativa (o projeto de lei é de autoria de Vereador) e violação do princípio federativo (compete ao Estado-membro legislar sobre o transporte intermunicipal).

A segurança foi concedida pela r. Sentença de fls. 80/83, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 2º da norma pelo segundo fundamento.

O Prefeito Municipal interpôs recurso de apelação. Defendeu a constitucionalidade da norma, afirmando que ela dispõe sobre assunto de interesse local. Assentou que a inobservância da regra de reserva de iniciativa foi superada pela promulgação da lei pelo Chefe do Poder Executivo. Insistiu, por fim, que a norma atende ao interesse público e está de acordo com a regra do artigo 208, inciso VII, da Constituição Federal (fls. 90/97).

A impetrante apresentou contra-razões a fls. 106/110.

Pelo v. Acórdão de fls. 126/130, a Décima Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça determinou a remessa dos autos a este Colendo Colegiado para atendimento da cláusula do artigo 97 da Constituição da República.

Eis, em breve síntese, o relatório.

2) Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.

A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pelo Prefeito Municipal de Cotia.

Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).

No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade da Lei Municipal nº 1.328/05 – não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial.

De outro lado, e, de acordo com pesquisa informatizada, não há notícia de que a validade dessa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.       

Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.

 

3) Fundamentação.

O Supremo Tribunal Federal já afirmou, em mais de uma oportunidade, que é da competência do Estado-membro legislar sobre transporte intermunicipal.

Nesse sentido, confiram-se os seguintes julgados:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 224 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO AMAPÁ. GARANTIA DE "MEIA PASSAGEM" AO ESTUDANTE. TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS MUNICIPAIS [ARTIGO 30, V, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS INTERMUNICIPAIS. SERVIÇO PÚBLICO E LIVRE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, CAPUT E INCISOS I E XXII, E 170, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil estabelece, no que tange à repartição de competência entre os entes federados, que os assuntos de interesse local competem aos Municípios. Competência residual dos Estados-membros --- matérias que não lhes foram vedadas pela Constituição, nem estiverem contidas entre as competências da União ou dos Municípios. 2. A competência para organizar serviços públicos de interesse local é municipal, entre os quais o de transporte coletivo [artigo 30, inciso V, da CB/88]. 3. O preceito da Constituição amapaense que garante o direito a "meia passagem" aos estudantes, nos transportes coletivos municipais, avança sobre a competência legislativa local. 4. A competência para legislar a propósito da prestação de serviços públicos de transporte intermunicipal é dos Estados-membros. Não há inconstitucionalidade no que toca ao benefício, concedido pela Constituição estadual, de "meia passagem" aos estudantes nos transportes coletivos intermunicipais. 5. Os transportes coletivos de passageiros consubstanciam serviço público, área na qual o princípio da livre iniciativa (artigo 170, caput, da Constituição do Brasil) não se expressa como faculdade de criar e explorar atividade econômica a título privado. A prestação desses serviços pelo setor privado dá-se em regime de concessão ou permissão, observado o disposto no artigo 175 e seu parágrafo único da Constituição do Brasil. A lei estadual deve dispor sobre as condições dessa prestação, quando de serviços públicos da competência do Estado-membro se tratar. 6. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da conjunção aditiva "e" e do vocábulo "municipais", insertos no artigo 224 da Constituição do Estado do Amapá (ADI 845 / AP – AMAPÁ - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Relator(a):  Min. EROS GRAU - Julgamento: 22/11/2007 - Órgão Julgador:  Tribunal Pleno - Publicação DJe-041  DIVULG 06-03-2008  PUBLIC 07-03-2008 - EMENT VOL-02310-01  PP-00031).

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 2º DO ARTIGO 229 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. TRANSPORTE COLETIVO INTERMUNICIPAL. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. ARTIGO 30, V DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. TRANSPORTE GRATUITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. POLICIAIS CIVIS. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA. 1. Os Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a prestação de serviços de transporte intermunicipal. 2. Servidores públicos não têm direito adquirido a regime jurídico. Precedentes. 3. A prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito. 4. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente (ADI 2349 / ES - ESPÍRITO SANTO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Relator(a):  Min. EROS GRAU - Julgamento: 31/08/2005 - Órgão Julgador:  Tribunal Pleno - Publicação DJ 14-10-2005 PP-00007- EMENT VOL-02209-01 PP-00125 - LEXSTF v. 27, n. 323, 2005, p. 46-53).

O E. Tribunal de Justiça também perfilha desse entendimento. Essa assertiva se extrai do v. Acórdão da ADIN nº 84.466.0/0 – São Paulo, pelo qual se consignou que “embora possua o município autonomia para legislar sobre assuntos locais, ex vi do artigo 30, I, da CF/88”, o legislador local “extrapola a competência própria, usurpando aquela atinente ao Estado, ao disciplinar o transporte intermunicipal” (grifei).

Sob tal enfoque, o artigo 2º da lei em estudo não prospera, porque viola a repartição de competências instituída pela Constituição Federal.

A distribuição das competências legislativas, administrativas e tributárias é o que assegura a autonomia das entidades federativas, daí porque é considerada “um dos pontos caracterizadores e asseguradores do convívio do Estado Federal”[1].

A Carta Bandeirante declara, em seu artigo 144, que “os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Tem-se entendido, então, que a invasão pelo legislador municipal da competência legislativa reservada a outro ente da Federação contraria o artigo 30, inciso I, da Constituição da República e, em conseqüência, representa afronta ao princípio federativo, o que autoriza, no âmbito do Estado-membro, o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma[2] [3].

De outra parte, sob o enfoque da prestação de serviços públicos, ainda que fosse da competência do Município legislar a respeito, a iniciativa em tal matéria estaria reservada ao Chefe do Poder Executivo, por simetria ao que dispõe o art. 47, inc. XVII da Constituição do Estado, que trata da atribuição do Governador do Estado para enviar projeto de lei que disponha – ainda que parcialmente – sobre a concessão ou permissão de serviços públicos (em consonância com o que dispõe o art. 61, § 1º, II, “b” da CF).

A iniciativa reservada, segundo a doutrina, “assegura o privilégio do projeto a seu titular, possibilita-lhe a retirada a qualquer momento antes da votação e limita qualitativa e qualitativamente o poder de emenda, para que não se desfigure nem se amplie o projeto original”[4].

O vício de iniciativa conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, que não se convalida com a sanção ou a promulgação de quem deveria ter apresentado o projeto. É da jurisprudência que “o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça” (ADIn 13.798-0, rel. Dês. Garrigós Vinhares, j. 11.12.1991, v.u.).

 

4) Conclusão.

Diante do exposto, somos pela admissão e acolhimento do presente incidente, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.328/05, do Município de Cotia.

 

São Paulo, 2 de setembro de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 

/jesp



[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 293.

[2] Cf. ADin nº 74.304-0/4 - SÃO PAULO, Rel. Dante Busana, 3.4.2002.

[3] Em decisão mais recente (21.8.2007), quando do julgamento da ADIn nº 130.227.0/0-00, o Tribunal de Justiça afirmou expressamente a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. Colhe-se no voto Desembargador Walter de Almeida Guilherme, a seguinte lição: “(...) um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’. Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal. Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)”.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p.676.