Incidente de Inconstitucionalidade n.º 165.685-0/0-00
Suscitante : 5ª.
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça
Suscitado : Diretor
do Departamento de Despesa de Pessoal da Secretaria da Fazenda do Estado de São
Paulo e outro
Parecer do Ministério Público
Proposto
mandado de segurança por (...) E OUTROS (fiscais de rendas) em face do Diretor
do Departamento de Despesa de Pessoal da Secretaria da Fazenda do Estado de São
Paulo e outros, que, na esfera
administrativa, lhes aplicaram redutor de salários sobre seus vencimentos e
proventos mensais de aposentadoria, nos termos do art. 1º , do Decreto Paulista
n. 48.407, de 06 de janeiro de 2004, e arts. 1º , 8º e 9º , da Emenda Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de
2003, limitando-os aos subsídios mensais do Senhor Governador do Estado de São Paulo. Sustentaram, em
síntese, que o subteto remuneratório,
não era previsto na redação anterior do art. 37, XI, da Constituição Federal,
surgindo apenas com os arts. 1º, 8º e 9º , da Emenda Constitucional n. 41/2003,
quando suas situações jurídicas já estavam consolidadas, razão pela qual não
pode tal direito lhes ser subtraído, sob pena de violação ao princípio
constitucional da irredutibilidade de vencimentos e proventos e do direito
adquirido. Julgado parcialmente procedente o pedido pela r.sentença de fls. 199/202,
subiram os autos por força da apelação voluntária de fls. 206/217, além do
reexame necessário. Recurso respondido e bem processado, manifestou-se nesta
instância o Ministério Público pelo não provimento dos recursos interpostos.Suscitado
o incidente de inconstitucionalidade pela Colenda 5.ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO,
manifesto-me nos termos dos artigos 480 e ss. do Código de Processo Civil. O
Relator do Incidente de Inconstitucionalidade é o I. Desembargador CELSO LIMONGI.
A
questão sob exame consiste na apreciação
da constitucionalidade do art. 9º da EC 41/2003 e do Decreto Bandeirante n. 41/2004.
Inicialmente,
deve ser afirmado que o reconhecimento da inconstitucionalidade de emenda a
Constituição é possível e necessária nos casos de ofensa às normas do artigo 60
da Lei Maior. Aliás, a doutrina é nesse exato sentido.[1]
O Supremo Tribunal Federal também já firmou entendimento sobre o tema, na ADI
nº. 939/DF, relatada pelo Min. SYDNEY SANCHES, julgada em 15 de dezembro de
1993, pelo Tribunal Pleno, publicada no Diário da Justiça de 18 de março de
1994, pág. 5.165, no Ementário Vol. 01737-02, pág, 160, e na RTJ vol. 151-03,
pág. 755, assim ementada:
EMENTA: - Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade
de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório
sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de
Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e
IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b",
"c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda
Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em
violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo
Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição
(art. 102, I, "a", da C.F.).
Portanto, fora de dúvida que o controle de constitucionalidade se exerce
também em relação às emendas constitucionais.
Feitas essas considerações, é fundamental salientar que, efetivamente, é
de todo descabida a redução dos valores de vencimentos, proventos e pensões, a
pretexto de se dar aplicação, em face dos limites de remuneração dos servidores
públicos, ao regime jurídico estabelecido na Constituição Federal a partir da
Emenda Constitucional n° 41/2003, inclusive no tocante ao teto de que trata o
artigo 37, inciso XI, do texto constitucional emendado, mediante alegado
fundamento nos artigos 8° e 9° da Emenda Constitucional n° 41/2003, sob pena de
afronta a superiores princípios constitucionais.
Com efeito, apesar do disposto no artigo 9°, da Emenda Constitucional n°
41/2003, ser no sentido de repristinar a
disposição contida no artigo 17, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
não se pode admitir o pretendido efeito retroativo da norma derivada da emenda,
tanto porque não tem legitimidade constitucional norma editada no exercício do
poder reformador que desrespeite cláusulas pétreas, como as que garantem a
intangibilidade do direito adquirido e do ato jurídico perfeito (C.F., art. 60,
§ 4°, inc. IV), como porque a eficácia da norma constitucional transitória
(art. 17 do ADCT) esgotou-se no alcance das situações jurídicas existentes no
momento de sua edição pelo Constituinte Originário, ou seja, a norma tinha
aplicação sobre as situações jurídicas que existiam na vigência da Constituição
revogada e que sofreram a incidência das disposições da Constituição Federal de
1988, no momento de sua promulgação.
Nesse sentido é a lição, sempre precisa, de Celso Antônio Bandeira de
Mello, para quem “o artigo 17 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias estava reportado a uma situação
distinta daquela que veio a ser implantada, ao depois, pela Emenda 19, de
06.06.1998, e no presente pela sobredita Emenda 41 de dezembro de 2003 — textos
que, obviamente, revogaram as disposições precedentes, de tal sorte que já não
mais existem como termos de referência no universo jurídico. Assim, quando
menos, é certo que não se lhe poderá atribuir um conteúdo e uma eficácia diversos
daqueles que só uma Constituição lhe poderia ter outorgado e que são inacessíveis
a uma simples Emenda” (cf. “Curso de
Direito Administrativo”, 18ª edição, Malheiros, S. Paulo, pág. 254)
Assim, é inadmissível aplicar o disposto no artigo 17 do ADCT, invocando
a remissão veiculada pelo artigo 9° da Emenda Constitucional nº 41/2003, às
situações jurídicas consolidadas, por coisa julgada ou ato jurídico perfeito,
como o são as aposentadorias concedidas e seus proventos, assim como as pensões
por morte, sendo imutáveis as situações consolidadas nas condições das leis
vigentes no momento da aposentação ou do pensionamento, pois, como proclamado
pelo Colendo Supremo Tribunal Federal: “Ressalvada
a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei
vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os requisitos
necessários, inclusive a apresentação do requerimento, quanto a inatividade for
voluntária” (Súmula n° 359).
Não
foi outro o entendimento desse Egrégio Tribunal de Justiça, ao apreciar caso
semelhante (Apelação Cível n° 384.113.5/6-00, Santos, 11ª Câmara de Direito
Público, Relator o Desembargador Francisco Vicente Rossi, julgado em
31/01/2006), cujo acórdão contém a seguinte ementa elucidativa:
"Mandado de
Segurança – Servidores Inativos – Sub-teto – Confronto entre direitos
adquiridos e a nova ordem constitucional – Tema sobremodo apreciável no mandamus – Direito líquido e certo –
Impossível a retroatividade in pejus
da norma constitucional derivada de emenda, repristinando o art. 17 do ADCT da
Constituição de 1988, através da Emenda Constitucional n° 41/2003, art. 9° -
Uma disposição transitória, que serviu para um período de transição entre a
Carta anterior e a nova Constituição posta em vigor em 1988, não pode, após ter
cumprido seu papel, ser revivida ou repristinada por uma norma advinda do Poder
Constituinte Derivado, com ofensa ao direito adquirido, princípio
constitucional posto pelo Poder Constituinte Originário e alçado à condição de
princípio irretirável e lapidificado – A lei a ser aplicada será aquela vigente
no momento da aposentação – Inteligência da Súmula 359 do STF – A situação do
aposentado consolida-se nesse momento e seus vencimentos convertem-se em única
parcela – os proventos – Inviolabilidade do direito à segurança – Caput do art. 5° da Constituição Federal
– A EC n°41/03 respeitou o direito adquirido dos servidores que, até a data da
Emenda, tenham cumprido todos os requisitos para obtenção da aposentadoria, com
base nos critérios da legislação então vigente (art. 3°), mas desrespeitou o
inc. XXXVI, do art. 5°, ao fixar “teto” de remuneração – Os descontos nominais
dos proventos, para reduzi-los ao teto, efetivamente, vulnerou direito líquido
e certo dos servidores aposentados, que já haviam incorporado a seu patrimônio
pessoal todas as vantagens componentes de seus proventos de aposentadoria –
Afastadas as preliminares, remessa oficial e recurso voluntário improvidos.”
E, por sua vez, o ato impugnado de redução dos valores dos vencimentos
ou proventos dos impetrantes, a pretexto de dar cumprimento ao “teto”, ao “subteto”, ou mesmo ao limite de remuneração fixado pelo artigo 37,
inciso XI, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional
n° 41/2003, carece de legitimidade também por afrontar o princípio
constitucional da irredutibilidade de vencimentos.
Exatamente
quanto a esse aspecto, o respeitável Professor Celso Antônio Bandeira de Mello,
de modo contundente, afirma: “Adiante-se
desde já que, ao nosso ver, aos que já eram servidores quando entrou em vigor a
Emenda 41 não se aplicam nem o teto nem o chamado subteto, dada a irredutibilidade
de vencimentos, que não pode ser afetada por Emenda (por se constituir em
garantia individual, portanto protegida por cláusula pétrea)” (ob. cit.,
pág. 256).
No caso, não se
cogita apenas de exclusão das vantagens pessoais do limite remuneratório e, por
conseqüência, dos proventos e pensões, mas sim da indenidade do valor nominal
dos vencimentos, proventos e pensões, à aplicação de quaisquer atos de redução
em virtude da incidência do princípio constitucional da irredutibilidade de
vencimentos (C.F., art. 37, inc. XV), tal como decidido pelo Colendo Supremo
Tribunal Federal no precedente (Mandado de Segurança n° 24.875-1) que se
constitui em diretriz para o deslinde das questões atinentes ao limite de
remuneração ou vencimentos dos servidores públicos, assim como dos proventos de
aposentadoria e pensões, quando os valores dessas verbas já estavam
estabelecidos antes da fixação do limite, como no caso dos autos.
Efetivamente, no precedente citado, ao apreciar exatamente a questão da
aplicação do limite remuneratório em cotejo com o princípio da
irredutibilidade, o Pretório Excelso proclamou que a Constituição Federal
assegurou o direito à irredutibilidade dos vencimentos como uma modalidade
qualificada de direito adquirido e, assim, oponível inclusive às emendas
constitucionais, de sorte a garantir a manutenção dos valores nominais percebidos
antes do estabelecimento do limite máximo de que trata o artigo 37, inciso XI,
da Constituição Federal, como o fixado pela Lei n° 11.143/2005, ainda que
superiores, até que seus montantes sejam absorvidos pelo valor do subsídio
fixado em lei para o Ministro do Supremo Tribunal Federal.
De notar que esse entendimento não representa orientação nova do
Pretório Excelso, constituindo, em verdade, o posicionamento, de há muito,
firmado e consolidado pela Suprema Corte sobre a questão e sempre reafirmado
com firmeza, do que serve de exemplo o julgamento pelo Tribunal Pleno da Medida
Cautelar na ADIn. n° 2075-RJ, relator o Ministro Celso de Mello (j. 07/02/2001,
v.u., DJ 27/06/2003), de cuja ementa se transcreve abaixo o seguinte trecho
elucidativo:
“A GARANTIA
CONSTITUCIONAL DA IRREDUTIBILIDADE DO ESTIPÊNDIO FUNCIONAL QUALIFICA-SE COMO
PRERROGATIVA DE CARÁTER JURÍDICO-SOCIAL INSTITUÍDA EM FAVOR DOS AGENTES
PÚBLICOS. - A garantia constitucional da irredutibilidade do estipêndio
funcional traduz conquista jurídico-social outorgada, pela Constituição da
República, a todos os servidores públicos (CF, art. 37, XV), em ordem a
dispensar-lhes especial proteção de caráter financeiro contra eventuais ações
arbitrárias do Estado. Essa qualificada tutela de ordem jurídica impede que o
Poder Público adote medidas que importem, especialmente quando implementadas no
plano infraconstitucional, em diminuição do valor nominal concernente ao
estipêndio devido aos agentes públicos. A cláusula constitucional da
irredutibilidade de vencimentos e proventos - que proíbe a diminuição daquilo
que já se tem em função do que prevê o ordenamento positivo (RTJ 104/808) -
incide sobre o que o servidor público, a título de estipêndio funcional, já
vinha legitimamente percebendo (RTJ 112/768) no momento em que sobrevém, por
determinação emanada de órgão estatal competente, nova disciplina legislativa
pertinente aos valores pecuniários correspondentes à retribuição legalmente devida.”
Desta feita,
o art.9º da Emenda Constitucional n. 41 de 19 de dezembro de 2003 deve ser
tido, realmente, como inconstitucional.
Com
relação ao Decreto Bandeirante n. 48.047, de 06 de janeiro de 2004, pode-se
dizer que o mesmo, assim como o art. 9º da Emenda Constitucional n. 41/2003,
padece de inconstitucionalidade.
Com efeito, referido decreto que “Dispõe sobre a aplicação do limite máximo
fixado no artigo 8º, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003,
no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional, do Estado de São
Paulo”, possui a seguinte redação:
“Artigo 1º - Para fins
de aplicação do limite máximo fixado no artigo 8º, da Emenda Constitucional nº
41, de 19 de dezembro de 2003, considerar-se-á, no âmbito da Administração
Direta, Autárquica e Fundacional do Estado de São Paulo, o valor do subsídio
mensal do Governador do Estado.
§ 1º - Para os integrantes da carreira de Procurador do Estado, e dos
ocupantes de cargos de provimento em comissão privativos de Procurador do
Estado, o valor a ser considerado para fins de aplicação do limite máximo
fixado no artigo 8º, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003,
é o correspondente a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento da
maior remuneração do Ministro do Supremo Tribunal Federal.
§ 2º - O
disposto no "caput" deste artigo aplica-se às empresas públicas e às
sociedades de economia mista e suas subsidiárias, que recebam recursos do
Estado para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral.
Artigo 2º - Este decreto entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo
seus efeitos a 1º de janeiro de 2004”.
O
Decreto impugnado, ao permitir que o Chefe do Poder Executivo Estadual,
regulamente a aplicação do limite máximo fixado
no art. 8º, da Emenda Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de 2003,
no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Estado de São
Paulo, viola o princípio da reserva legal em matéria de fixação de remuneração
e vantagens para servidores públicos.
.
A propósito da reserva de lei em matéria de remuneração de servidores
públicos já se pronunciou o Pretório Excelso:
Em tema de remuneração dos servidores públicos,
estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de
remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei
específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade
formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da
Câmara dos Deputados. Cautelar deferida (ADIn 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso,
j. em 16-12-04, DJ de 1º-2-05).
Este também
é o entendimento da doutrina, anotando Hely Lopes Meirelles que “(...) os
vencimentos –padrão e vantagens– só por lei específica (reserva legal
específica) podem ser fixados ou alterados (art. 37, X), segundo as
conveniências e possibilidades da Administração” (Direito administrativo brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2007, p.
483). No mesmo sentido são as ponderações de Celso Antônio Bandeira de Mello,
em Curso de direito administrativo,
São Paulo, Malheiros, 2000, p. 239.
Assim, ao permitir que a
regulamentação da aplicação do limite
máximo fixado no art. 8º, da Emenda
Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de 2003, no âmbito da Administração
Direta, Autárquica e Fundacional do Estado de São Paulo decorra não de lei
complementar, mas de ato administrativo do próprio Poder Executivo, o
Legislador Estadual delegou função indelegável –de legislar–, violando o
princípio da reserva legal que vigora nessa matéria.
Por
essas razões, o parecer é pelo conhecimento do incidente de
inconstitucionalidade, para declarar a inconstitucionalidade do art. 9º, da
Emenda Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de 2003 e do Decreto Bandeirante
n. 48.047, de 06 de janeiro de 2004.
São Paulo, 08 de agosto de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no exercício de
função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] MENDES. Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, pág.95 e seguintes. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 977 e seguintes. NERY JÚNIOR, Nélson. NERY. Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. São Paulo: RT, 2006. pág. 537. SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 14ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, pág. 70.