INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº 166.791-0/0-00

Suscitante: 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: Resolução Unesp nº 37/1996.

 

Ementa: Ato normativo de Universidade Estadual (UNESP) dispondo sobre o regime de trabalho de docentes contestado em face da Constituição do Estado. Matéria reservada à lei de iniciativa do Governador do Estado. Inconstitucionalidade.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 7ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça, em sede de apelação cível com revisão, em que são partes (...) (apelante) e UNIVERSIDADE “JÚLIO MESQUITA FILHO” – UNESP (apelada).

(...) moveu ação ordinária contra a UNESP visando à anulação de ato punitivo imposto pela Universidade-ré, por suposta infração às disposições da Resolução UNESP nº 37/96, relativas ao denominado Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa.

Em 1º grau de jurisdição, julgou-se improcedente o pedido.

O autor recorreu pleiteando a reforma da Decisão monocrática, trazendo a notícia de que Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral de Justiça declarou inconstitucional a Resolução UNESP nº 46/95, que antecedeu à norma que fundamentou sua punição e que tratava do mesmo tema.

Examinando essa apelação, a 7ª. Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça suscitou o incidente de inconstitucionalidade da Resolução UNESP nº 37/1996, divisando a violação das regras contidas no inciso III do artigo 19 e nº 1 e 4 do § 2º do artigo 24, todos da Constituição Estadual, “visto que compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa de leis que disponham não só sobre ‘a criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração’, mas, também, a respeito de servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos”.

A UNESP opôs Embargos de Declaração do v. Acórdão, cogitando de que este era omisso acerca de autonomia universitária prevista no artigo 207 da Constituição da República. Nessa oportunidade, noticiou que a Resolução UNESP 37/1996 foi revogada a substituída pela Resolução UNESP 85/1999, cuja cópia foi trazida.

Os embargos foram rejeitados.

A Universidade invocou, então, o artigo 482, § 1º do CPC e se pronunciou em defesa do ato questionado.

Sustentou que o artigo 207 da Constituição Federal garante a autonomia universitária, de histórica tradição, para delinear seus planos de carreira e regime de trabalho de seus docentes. Insiste que a Resolução questionada não trata do regime jurídico do servidor, mas de seu regime de trabalho, cuja instituição é autorizada pela Constituição Paulista. Afirma que a Resolução em análise foi editada de acordo com os artigos 53 e 54 da Lei nº 9.394/96. A UNESP também considera que o Regime de Dedicação Integral à Docência e Pesquisa é semelhante no âmbito das três universidades estaduais e que a eventual declaração de inconstitucionalidade estimularia docentes a não cumprir suas obrigações perante as instituições a que estão vinculados. Afirma, por fim, que o ato questionado não viola o disposto no artigo 37, inc. XVI, a, da CF, eis que a UNESP admite expressamente que seus docentes tenham dois empregos, caso em que deveriam optar pelo Regime de Turno Completo (RTC) ou Regime de Turno Parcial (RTP).

Eis, em breve síntese, o relatório.

1) Do ato normativo examinado.

A quaestio iuris resume-se na verificação da constitucionalidade da Resolução UNESP nº 37, de 7 de agosto de 1996, que “dispõe sobre os regimes de trabalho dos docentes da UNESP” (encartada aos autos a fls. 459/462) em face do inciso III do artigo 19 e nºs. 1 e 4 do § 2º do artigo 24, todos da Constituição Estadual.

2) Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.

A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta por (...).

Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).

No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade da Resolução UNESP nº 37/96 – não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial.

De outro lado, e, de acordo com pesquisa informatizada, não há notícia de que a validade dessa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal ou analisada nesse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.     

Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.

 

3) Fundamentação.

A Resolução questionada regula o regime de trabalho dos docentes da UNESP. Estabelece três modalidades (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa, Regime de Turno Completo e Regime de Tempo Parcial) e, para cada uma delas, as vantagens e ônus da espécie.

Assim é que, pelo artigo 3º, impõe-se ao docente em Regime de Dedicação Integral a obrigação de manter vínculo empregatício exclusivo com a UNESP e à prestação de 40 (quarenta) horas semanais de serviços à instituição. Pelos §§ 1º e 2º do mesmo dispositivo, estabelecem-se evidentes restrições ao exercício pelo docente de outras atividades, inclusive a de perceber, por estas, vencimentos superiores àqueles pagos pela Universidade.

Os dispositivos seguintes consolidam as regras particulares dos demais regimes. Prevêem-se sanções disciplinares para o descumprimento da norma (art. 13, § 1º.) e a possibilidade de transferência do docente, “por opção ou decisão dos órgãos universitários”, de um regime para o outro.

A norma, como se verifica, constitui-se em verdadeiro estatuto do docente vinculado à UNESP. Não há como olvidar, portanto, que a Resolução em análise dispõe inequivocamente sobre o regime jurídico dos servidores da autarquia. Não se acolhem os argumentos lançados pela UNESP para negar essa realidade: essencialmente, não há, como argumenta a Universidade-ré, distinção entre o regime de trabalho delineado pela Resolução (que é jurídico e, se descumprido, enseja punição) e regime jurídico do servidor.

No caso vertente, entende-se que o Reitor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” usurpou as atribuições privativas do Executivo e do Legislativo. Do primeiro, a iniciativa reservada de lei que trate de servidores públicos estaduais, inclusive seu regime jurídico (art. 24, § 2º, n.º. 4, da Carta Paulista[1]). Do segundo, a tarefa de legislar (art. 19 da Constituição do Estado[2]). Nesse passo, releva notar que a elaboração de leis é atribuição afeta ao Poder Legislativo, como pressuposto básico da tripartição dos poderes, sendo de todo pertinente relembrar aqui que “o poder atribuído aos órgãos estatais o é por uma delegação do soberano e poder recebido por delegação não pode ser, a seu turno, delegado. Delegata potestas delegari non potest” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Processo legislativo. Ed. Saraiva, p. 113). Se a tarefa de legislar não pode sequer ser delegada, exceto se o poder originário dispuser em sentido contrário (art. 68, §§ 1º e 3º, da CF), não se pode permitir que seja exercida indevidamente.

Não bastasse a usurpação de atribuições típicas de Poderes do Estado, há que se levar em conta, ainda, que a instituição de regime jurídico diferenciado a servidores públicos, sem a prévia existência de lei, caracteriza inegável ofensa do princípio da legalidade, previsto no artigo 111 da Constituição Estadual, pelo qual se entende que “o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei. Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: RT, 16ª. ed., p. 159, g.n.).

Nesse diapasão, não é demais lembrar que o artigo 124 da Constituição Paulista prevê, expressamente, a instituição de regime jurídico único e planos de carreira aos servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público.

Sob o enfoque do artigo 39 da Constituição da República, aqui lembrado como paradigma, Diógenes Gasparini ensina que “o regime dos servidores públicos civis de qualquer esfera de governo há de ser único (...). Sendo assim, não pode haver diversidade de regimes entre os servidores da Administração direta, autarquia e fundacional pública, como, outrora, pensarmos ser possível. O regime jurídico é um só, o mesmo, igual para todos os servidores públicos civis, ou seja, para os que se vinculam à Administração direta, às autarquias e às fundações públicas”.

E continua: “a competência legislativa para a instituição do regime jurídico único é de cada uma das entidades federadas, conforme deixa claro o disposto no artigo 39 da Constituição da República. A União, cada um dos Estados-Membros, o Distrito Federal e cada um dos Municípios, à vista dessa permissão constitucional, podem e devem instituir o regime jurídico para os seus respectivos servidores civis. Não há, assim, um regime jurídico nacional a submeter a todos esses servidores, nem um estadual a impor-se aos dos Municípios. A instituição do regime jurídico único só é possível por lei (g.n.).” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo. Saraiva, 1995, p. 138-9).

Fica patente, portanto, que não cabe ao Reitor da UNESP a edição de norma que, de qualquer modo, estabeleça o regime (jurídico) de trabalho dos docentes, com vantagens, ônus e restrições não previstas em lei.

Isso não significa negar a autonomia da Universidade, que emana do artigo 254 da Constituição do Estado[3], mas esclarecer que dita autonomia não possui a extensão de que cogita a ré.

A autonomia universitária, que abrange aspectos didático-científico, administrativo e de gestão financeira e patrimonial, não subtrai a instituição do cumprimento da lei, nem lhe retira a natureza de autarquia estadual, isto é, entidade integrante da administração indireta, às quais se aplicam as normas genéricas do regime jurídico dos servidores.

Como pessoa jurídica, a autarquia é titular de direitos e obrigações próprias, distintos daqueles pertencentes ao Estado, que a instituiu. Não obstante, “sendo pública, submete-se a regime jurídico de direito público, quanto à criação, extinção, poderes, prerrogativas, privilégios, sujeições” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 315).

Na dicção do Supremo Tribunal Federal:

“o princípio da autonomia das universidades (CF, art. 207) não é irrestrito, mesmo porque não cuida de soberania ou independência, de forma que as universidades devem ser submetidas a diversas outras normas gerais previstas na Constituição, como as que regem o orçamento (art. 165, § 5º, I), a despesa com pessoal (art. 169), a submissão dos seus servidores ao regime jurídico único (art. 39), bem como às que tratam do controle e da fiscalização”[4].

A autonomia é, portanto, o atributo que confere à Universidade a capacidade de auto-administração. Essa faculdade, contudo, não equivale ao poder de criar o próprio direito, sendo esse aspecto o que as distingue da pessoa jurídica pública política (União, Estados e Municípios)[5].

 

4) Conclusão.

Diante do exposto, somos pela admissão e acolhimento do presente incidente, declarando-se a inconstitucionalidade da Resolução UNESP n.º 37/96.

 

São Paulo, 6 de agosto de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

/jesp



[1] Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (grifei).

[2] Artigo 19 - Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre (...).

[3] Artigo 254 - A autonomia da universidade será exercida, respeitando, nos termos do seu estatuto, a necessária democratização do ensino e a responsabilidade pública da instituição, observados os seguintes princípios:

I - utilização dos recursos de forma a ampliar o atendimento à demanda social, tanto mediante cursos regulares, quanto atividades de extensão;

II - representação e participação de todos os segmentos da comunidade interna nos órgãos decisórios e na escolha de dirigentes, na forma de seus estatutos.

§ 1º - A lei criará formas de participação da sociedade, por meio de instâncias públicas externas à universidade, na avaliação do desempenho da gestão dos recursos. (NR)

§ 2º - É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (NR)

§ 3º - O disposto no parágrafo anterior aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (NR)

[4] STF, ADI-MC 1599/UF - UNIÃO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA. Julgamento:  26/02/1998. Órgão Julgador: Tribunal Pleno (extrato da Ementa).

[5] Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 315.