Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Incidente de Inconstitucionalidade n. 169.403-0/3-00 – Guarujá

 

 

Parecer

 

1.    Incidente de inconstitucionalidade.

2. Não atende aos postulados da impessoalidade, igualdade, moralidade, eficiência e razoabilidade a mitigação do princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos mediante prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, nem a transitoriedade inerente às contratações temporárias de pessoal, a regra do parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 consistente na dispensa de concurso público ou processo seletivo similar, na admissão para a função pública de agente comunitário de saúde ou de combate a endemias, provocada pelo exercício anterior de atividade similar desde que a investidura inicial tenha observado anterior processo seletivo público, até mesmo em esfera de poder diversa.

3. Divórcio entre regra de emenda constitucional e princípios constitucionais que se resolve pela prevalência destes.

4. Ademais, tanto essa regra quanto o § 5º acrescido ao art. 198 da Constituição Federal pela Emenda n. 51/06 violam o princípio federativo, subtraindo a capacidade normativa de Estados e Municípios para dispor sobre matéria administrativa referente ao regime jurídico de seus servidores.

 

 

Egrégio Tribunal,

Colendo Órgão Especial,

Douto Relator:

 

 

 

1.           Em mandado de segurança impetrado por servidores públicos temporários em face do Prefeito Municipal do Guarujá para assegurar a permanência de suas contratações para o exercício das funções de agente de apoio à saúde ou de agente nebulizador sem submissão a novo processo seletivo (fls. 02/20), a respeitável sentença censurada por apelação (fls. 170/184) denegou a ordem sob o fundamento de que o art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 fere a autonomia municipal para estabelecimento das condições de preenchimento de cargos públicos e o princípio da isonomia (fls. 166/167).

 

2.           A colenda 3ª Câmara de Direito Público deste egrégio Tribunal de Justiça suscitou ex officio incidente de inconstitucionalidade do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 por ofensa aos arts. 5º, I, e 37, caput e incisos II e III, da Constituição Federal (fls. 293/303), sendo esta a ementa do venerando acórdão:

“Administrativo. Agentes comunitários de saúde e combate a endemias. Contratação. Município.

1. É inconstitucional o comando do par. Único do art. 2º da EC nº 51/2006 que garante seja mantido contratado agente comunitário ou de combate a endemias, apesar do exaurimento do prazo previsto na lei municipal, desde que tenha prestado processo seletivo anterior, por infringir os princípios dos artigos 5º, I, 37, ‘caput’, incisos II e III da CF.

2. Incidente de inconstitucionalidade suscitado” (fl. 294).

 

3.           É o relatório.

 

4.           A Emenda Constitucional n. 51, de 14 de fevereiro de 2006, tem o seguinte teor:

“Art. 1º. O art. 198 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 4º, 5º e 6º:

‘Art. 198. ........................................................

........................................................................

§ 4º. Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.

§ 5º. Lei federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias.

§ 6º. Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício.’ (NR)

Art. 2º. Após a promulgação da presente Emenda Constitucional, os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias somente poderão ser contratados diretamente pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios na forma do § 4º do art. 198 da Constituição Federal, observado o limite de gasto estabelecido na Lei Complementar de que trata o art. 169 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Os profissionais que, na data de promulgação desta Emenda e a qualquer título, desempenharem as atividades de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias, na forma da lei, ficam dispensados de se submeter ao processo seletivo público a que se refere o § 4º do art. 198 da Constituição Federal, desde que tenham sido contratados a partir de anterior processo de Seleção Pública efetuado por órgãos ou entes da administração direta ou indireta de Estado, Distrito Federal ou Município ou por outras instituições com a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação.

Art. 3º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data da sua publicação”.

 

5.           Não paira dúvida sobre a possibilidade de controle de constitucionalidade de emenda constitucional. Neste sentido, ad esempia, o Supremo Tribunal Federal esclareceu:

“Ação direta de inconstitucionalidade: seu cabimento - afirmado no STF desde 1926 - para questionar a compatibilidade de emenda constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição ao poder constituinte derivado: precedente” (STF, ADI-MC 2.024-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 27-10-1999, v.u., DJ 01-12-2000).

 

6.           A declaração incidental de inconstitucionalidade é enfocada sobre os prismas dos princípios federativo e da igualdade.

 

7.           Tenho que, em verdade, não somente o parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 padece de inconstitucionalidade; também está tisnado pelo vício o § 5º acrescido pela mesma emenda ao art. 198 da Constituição Federal.

 

8.           Com efeito, é do sistema constitucional vigente que em matéria administrativa e, em especial, em assunto relacionado diretamente ao regime jurídico do servidor público lato sensu, a competência normativa é do domínio de cada ente federado. Não obstante a Constituição cunhe várias normas gerais de observância obrigatória em torno do tema (v.g., arts. 37, 39, 169), ela, todavia, preserva e respeita a autonomia estadual e municipal para o traçado das regras peculiares. Pensamento oposto significa a mais completa nulificação do princípio federativo que orienta a organização política brasileiro desde a proclamação da República e que se manifesta como princípio sensível e, ao mesmo tempo, cláusula pétrea (arts. 34, VII, c, 60, § 4º, I, Constituição Federal) – esta, por sinal, rechaçando emenda constitucional tendente à sua abolição.

 

9.           Uma das premissas básicas do princípio federativo reside justamente na autonomia que os entes federados têm, segundo as normas da Constituição, para tratar de sua administração como expressão da capacidade normativa própria.

 

10.         Inconcusso que a Emenda Constitucional n. 51 ao acrescentar o § 5º ao art. 198 definindo competência normativa federal para dispor sobre o regime jurídico dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias feriu e reduziu a autonomia dos Estados-membros e dos Municípios, assim como o parágrafo único do art. 2º da citada emenda ao dispensar seleção pública, igualitária e objetiva para, em última análise, legitimar a investidura em função pública.

 

11.         Em essência, a admissão de pessoal para o exercício dessas funções públicas revela uma espécie – conceituada pela matéria específica relacionada a ações e serviços de saúde – de contratação por tempo determinado para atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, tal como definida no art. 37, IX, da Constituição Federal, e cuja tessitura indica que a lei referida nesse preceito é a lei de cada ente federado (STF, ADI 2.229, Rel. Min. Carlos Velloso, 09-06-2004, DJ 25-06-2004).

 

12.         É certo que algumas carreiras do funcionalismo público têm regramento uniforme previsto na própria Constituição, como, por exemplo, os Magistrados e os membros do Ministério Público, dado o seu caráter nacional. Mas, isto são exceções às quais não se aproxima, sequer potencialmente, a de funções públicas como as referidas no art. 198, § 4º, da Constituição Federal, não se podendo inferir do sistema único de saúde o contrário tendo em vista que conceitualmente as ações e serviços de saúde constituem obrigação estatal (prestação positiva) das três esferas de governo baseados na descentralização.           

 

13.         Neste sentido, o seguinte ensinamento:

“A competência para organizar o serviço público é da entidade estatal a que pertence o respectivo serviço. Sobre esta matéria as competências são estanques e incomunicáveis. As normas estatutárias federais não se aplicam aos servidores estaduais ou municipais, nem as do Estado-membro se estendem aos servidores do Município.

Cada entidade estatal é autônoma para organizar seus serviços e compor seu pessoal. Atendidos os princípios constitucionais e os preceitos das leis nacionais de caráter complementar, a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios instituirão seus regimes jurídicos, segundo suas conveniências administrativas e as forças de seus erários (CF, arts. 39 e 169)” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2003, 28ª ed., p. 403).

 

14.         E ainda que não bastassem esses argumentos, solidifica-se com maior intensidade a ofensa ao princípio da igualdade. O parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 foi alvo da glosa acertada de José Afonso da Silva ao salientar que:

“Tudo isso foi feito com um único propósito: facilitar a admissão desses agentes, sem o concurso rígido previsto no art. 37, II, da Constituição, mediante um simples processo seletivo, ainda que público – e talvez tudo tenha sido feito apenas para dispensar agentes já existentes de se submeterem até mesmo a esse processo seletivo. A impressão que se tem é que a legitimação de admissões irregulares é que motivou essa emenda constitucional. E esse é um processo perverso de ‘emendas’ à Constituição ...” (Comentário contextual à Constituição, Malheiros: São Paulo, 2006, 2ª ed., p. 771).

15.         Não se constata moralidade – princípio expresso no art. 37 caput da Constituição Federal – nem razoabilidade na opção normativa enfocada. Deveras, o que se tem acenado é o atendimento de móveis outros – uma estranha reserva de mercado, uma prorrogação indefinida de contratos temporários - para além do interesse público primário, dirigindo-se a novel e transitória norma de patamar constitucional para o fornecimento de tratamento desigualitário sem justificativa razoável para tanto.

 

16.         Esse cenário se agrava se não for vislumbrado o vínculo funcional como contratação temporária, mas, como o preenchimento de função pública (lato sensu) de natureza permanente das ações de saúde. Pois, a possibilidade de prorrogação do vínculo ou de celebração de novo vínculo funcional com dispensa do processo seletivo público precedente implica na investidura de pessoal ao serviço público à míngua de concurso público, expediente que concentra os primados de eficiência, igualdade e moralidade, e é conseqüência direta do princípio republicano.

 

17.         Tenho, por isso mesmo, que a Constituição, por meio de emenda, só pode oferecer novas exceções a tais princípios desde que embalada a nova perspectiva normativa pelo princípio da razoabilidade que, no caso, não se afigura.     

 

18.         Assim sendo, não atende aos postulados da impessoalidade, igualdade, moralidade, eficiência e razoabilidade a mitigação do princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos mediante prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, consistente na dispensa de concurso público ou processo seletivo similar, na admissão, provocada pelo exercício anterior de atividade similar desde que a investidura inicial tenha observado anterior processo seletivo público, até mesmo em esfera de poder diversa.

 

19.         Deve se ter em conta que os princípios constitucionais têm uma escala de peso ou importância que não pode ser obnubilada. A igualdade, assim como os outros princípios constitucionais invocados máxime a moralidade, são princípios constitucionais gerais que decorrem diretamente do princípio republicano (princípio fundamental ou estruturante), de modo que as exceções àqueles devem ser construídas pelo legislador – inclusive o constituinte derivado – em harmonia às prescrições básicas plenamente justificadas pela razoabilidade que deve ostentar qualquer ato normativo.

 

20.         Princípio é mandamento nuclear de um sistema, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, definindo a lógica e a racionalidade do sistema normativo que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 476-477; Juan Carlos Cassagne. Los principios generales del Derecho en el Derecho Administrativo, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1992, p. 44; Jesus Gonzalez Perez. El principio general de la buena fe en el Derecho Administrativo, Madrid: Civitas S.A., 1989,  pp. 56-60).

 

21.         A norma jurídica é gênero que abarca as espécies dos princípios jurídicos e das regras jurídicas. Todavia, os princípios jurídicos são indicativos para formulação das regras, contendo a prévia definição dos valores que serão por elas protegidos.

 

22.         Regras e princípios são duas espécies de normas, mas estes apresentam diferenciais em relação àquelas: maior grau de abstração (em sua formulação), menor grau de determinabilidade (e, conseqüentemente, o concurso da necessidade de intermediação normativa para aplicação a situações concretas), ampliação do conteúdo de informação pela referência a valores, admissão à existência implícita no sistema normativo, superação de potencial conflito por juízo de ponderação, caráter de fundamentalidade de regras (função normogenética) e proximidade a valores de referência (J.J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 1034). Com grau maior de generalidade, o princípio jurídico contribui eficientemente para a produção da regra, mantendo uma relação de superioridade hierárquica. O maior grau de abstração se caracteriza em razão de os princípios jurídicos não se reportarem, ainda que hipoteticamente, a nenhuma espécie de situação fática, que dê suporte à incidência de norma jurídica, inversamente ao que ocorre com as normas individuais (sentença) ou gerais (regra legal) na escala de abstração. Regras descrevem estado ou fato, princípios referem-se diretamente a valores, enquanto aquelas se fundamentam nestes, que não fundamentam diretamente nenhuma ação, necessitando da intervenção daquelas. Daí, terem os princípios grau mais elevado de generalidade (classe de indivíduos a que a norma se aplica) e abstração (espécie de fato a que a norma se aplica), na medida em que contêm a descrição de um valor, em relação às regras, que consistem na descrição de situações jurídicas ou fatos tipificados (Willis Santiago Guerra Filho. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Editora Celso Bastos, 1999, pp. 44-45, 52-55). Diferentemente da solução do conflito entre regras, o confronto entre princípios parte do pressuposto da existência de dimensão de peso ou importância, sendo superado pela adequação ponderada em cada situação, atribuindo peso mais elevado a um na medida em que a compatibilização de ambos é inviável (Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, pp. 110, 193). E o divórcio entre princípio e regra implica sempre a prevalência daquele em virtude da superioridade hierárquico-normativa.

23.         Se os princípios jurídicos não são regras por deficiência de pressuposto de fato, constituem elemento ou categoria do próprio ordenamento jurídico como normas de tipo peculiar, como diretivas ou conformadoras da produção das normas jurídicas, tendo força necessária para um juízo (positivo ou negativo) de validade de normas jurídicas, atos e decisões administrativas (Margarita Beladiez Rojo. Los Principios jurídicos, Madrid: Tecnos, 1994, pp. 75-89).

 

25.         Esta exposição tem como propósito evidenciar que há evidente contraste entre os princípios da isonomia, da moralidade, da eficiência, amparados explicitamente na Constituição de 1988 e a regra instalada no parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06; conflito esse que se resolve, ancorado nas premissas acima delineadas, pela prevalência daqueles em relação a esta.

 

26.         Mas, não bastasse, há outros argumentos. Na visão de J.J. Gomes Canotilho, princípios estruturantes, subprincípios (princípios constitucionais gerais e princípios constitucionais especiais, de forma escalonada e progressiva) e regras formam a Constituição, mantendo diferentes graus de concretização (Ruy Samuel Espíndola. Conceito de Princípios Constitucionais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 228).

 

26.         É essa diferença, refletida pelas medidas da abstração, da generalidade e da determinação, que determina a distinção entre os princípios fundamentais estruturantes (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio federativo), os constitucionais gerais (isonomia, dignidade da pessoa humana), e os constitucionais especiais (isonomia entre os sexos) e as regras, em escala decrescente: o princípio constitucional especial representa a densificação ou concretização (ainda que em nível extremamente abstrato) do princípio fundamental geral; o princípio fundamental geral como subprincípio concretiza o princípio fundamental estruturante (opções políticas fundamentais, base do ordenamento jurídico) – conforme ponderam Willis Santiago Guerra Filho (Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Editora Celso Bastos, 1999, pp. 44-55) e Ruy Samuel Espíndola (Conceito de Princípios Constitucionais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 228).

 

27.         Entretanto, o cotejo da regra criada com os princípios - constitucionais gerais da igualdade e da moralidade ou o especial da igualdade entre os administrados do qual decorre a regra da investidura em cargos ou empregos públicos mediante aprovação prévia em concurso público – revela o notável descompasso daquela com estes.

 

28.         Ademais, peca a regra criada pela falta de razoabilidade. No direito brasileiro, parte da doutrina identifica o princípio da razoabilidade com o devido processo legal e a isonomia e parte com a proporcionalidade, havendo quem aponte a razoabilidade como parâmetro da constitucionalidade de atos normativos e a proporcionalidade para os atos administrativos.

 

29.         Em face dos atos normativos o princípio da razoabilidade granjeou sucesso exigindo a isonomia, a racionali­dade e o substantive due process of law, mas também em face dos atos administrativos. Além do art. 111 da Constituição Estadual, a Lei n. 9.784/99 (art. 2º, parágrafo único, VI) e 2º, d, da Lei n. 4.717/65 (art. 2º, d), amparam explicitamente referido princípio.

 

30.         A Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos aspectos substantivo e processual nos incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. Em sua evolução histórica, o princípio do due process of law percorreu três etapas ou fases: a primeira é o seu surgimento na Magna Carta Libertatum (1215, Inglaterra) como a garantia processual penal da law of the land (posteriormente substituída pelo due process of law no Estatuto de Eduardo III, 1534), consistente no julgamento formado entre seus pares e segundo as leis da terra, desenhando os princípios do juiz natural e da legalidade penal; na segunda, ele passa a ser garantia processual geral, ou seja, constitui requisito de validade da atividade jurisdicional o processo regularmente ordenado; e na terceira, mediante interpretação das Emendas V e XIV da Constituição dos Estados Unidos da América pela Suprema Corte, ele assume postura substantiva a latere do caráter processual, como limitação do mérito das ações estatais.

 

31.         O substantive due process of law constitui limite ao Poder Legislativo, exigente da elaboração normativa com justiça, reasonableness (razoabilidade) e racionality (racionalidade), devendo ostentar real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir, enquanto o procedural due process of law garante às pessoas um procedimento judicial justo, com direito de defesa.

 

32.         Ninguém omite a importância do princípio da razoabilidade ao pregar proporcionalidade entre os meios utilizados e os fins a alcançar a coerência lógica e racional do ato com seu escopo. Embora se confundam e se distingam amiúde, proporcionalidade e razoabilidade, no fundo, entrosam-se com a dimensão da igualdade na lei (proibição de normas discriminatórias desarrazoadas) e perante a lei (vedação da execução da norma com tratamento discriminatório desarrazoado).

 

33.         À vista dessa situação, o contraste é resolvido pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundar decisões em sentidos opostos, através da aplicação das máximas integrantes do princípio da proporcionalidade: adequação (Geeignetheit: aptidão a produção do resultado desejado), necessidade (Erforderlichkeit: insubstituição por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcionalidade em sentido estrito (Zumutbarkeit ou tolerância: relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

 

34.         Não se percebe na norma criada necessidade, adequação ou proporcionalidade porque a opção tomada em seu bojo bem poderia ser substituída pela conservação da regra do concurso público como condicionante da investidura. A discriminação instituída em favor daqueles que já exerciam a atividade similar é justificativa desarrazoada e insuficiente para legitimação da dispensa de seleção pública.

 

35.         Em suma, não atende aos postulados da impessoalidade, igualdade, moralidade, eficiência e razoabilidade a mitigação do princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos mediante prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, nem a transitoriedade inerente às contratações temporárias de pessoal, a regra do parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional n. 51/06 consistente na dispensa de concurso público ou processo seletivo similar, na admissão para a função pública de agente comunitário de saúde ou de combate a endemias, provocada pelo exercício anterior de atividade similar desde que a investidura inicial tenha observado anterior processo seletivo público, até mesmo em esfera de poder diversa.

 

36.         Ademais, tanto essa regra quanto o § 5º acrescido ao art. 198 da Constituição Federal pela Emenda n. 51/06 violam o princípio federativo, subtraindo a capacidade normativa de Estados e Municípios para dispor sobre matéria administrativa referente ao regime jurídico de seus servidores.

 

37.         Opino favoravelmente à declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 2º da Emenda n. 51/06.

 

             São Paulo, 25 de setembro de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça