INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE
Processo
nº 169.950-0/9-00
Suscitante:
13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça
Objeto: Lei Municipal nº 1.328/05, do Município de Cotia.
Ementa: Lei nº 1.328,
de 28 de abril de 2005, do Município de Cotia, que dispõe sobre o transporte
público intermunicipal. Impossibilidade. Competência do Estado-membro.
Violação do art. 30, inc. I, da CF e do art. 144, da CE. Ofensa ao princípio
federativo. Projeto de iniciativa de Vereador. Vício que não se convalida pela
promulgação pelo Chefe do Poder Executivo. Parecer pela admissão e
acolhimento do incidente de inconstitucionalidade. |
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo Senhor
Desembargador Relator
1) Relatório
Viação Danúbio Azul Ltda, concessionária do serviço de transporte coletivo intermunicipal, impetrou, perante o Juízo da 1ª. Vara da Comarca de Cotia, mandado de segurança contra o Prefeito Municipal de Cotia, insurgindo-se contra o ato de promulgação da Lei Municipal nº 1.328, de 28 de abril de 2005, que “torna obrigatória a redução de 50% do valor da tarifa para fornecimento de passes escolares nas linhas municipais e intermunicipais”.
Aduziu o impetrante que a lei dispõe sobre o regime tarifário do serviço de transporte e que é, portanto, norma de efeito concreto.
Afirmou violação de direito líquido e certo pertinente ao regime tarifário, apontando vício de inconstitucionalidade por ofensa à reserva de iniciativa (o projeto de lei é de autoria de Vereador) e violação do princípio federativo (compete ao Estado-membro legislar sobre o transporte intermunicipal).
O Prefeito Municipal defendeu a constitucionalidade da norma, afirmando que ela dispõe sobre assunto de interesse local. Assentou que a inobservância da regra de reserva de iniciativa foi superada pela promulgação da lei pelo Chefe do Poder Executivo. Insistiu, por fim, que a norma atende ao interesse público e está de acordo com a regra do artigo 208, inciso VII, da Constituição Federal (fls. 77/88).
A segurança foi denegada pela r. Sentença de fls. 99/100.
A concessionária interpôs recurso de apelação, insistindo nos argumentos já transcritos (fls. 102/107).
A Municipalidade apresentou contra-razões a fls. 112/115.
Pelo v. Acórdão de fls. 139/144, a Décima Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça determinou a remessa dos autos a este Colendo Colegiado para atendimento da cláusula do artigo 97 da Constituição da República.
Eis, em breve síntese, o relatório.
2) Da admissibilidade
do incidente de inconstitucionalidade.
A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pelo Prefeito Municipal de Cotia.
Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).
No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade da Lei Municipal nº 1.328/05 – não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial, embora se imponha observar que o será, diante do que consta nos autos do processo nº 165.621.0/9-00, nos quais já ofertamos parecer. A pesquisa informatizada informa que referidos autos se encontram conclusos ao em. Des. Debatin Cardoso.
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De outro lado, não há notícia de que a validade dessa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.
Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.
3) Fundamentação.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou, em mais de uma oportunidade, que é da competência do Estado-membro legislar sobre transporte intermunicipal.
Nesse sentido, confiram-se os seguintes julgados:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 224 DA
CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO AMAPÁ. GARANTIA DE "MEIA PASSAGEM" AO
ESTUDANTE. TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS MUNICIPAIS
[ARTIGO 30, V, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS
RODOVIÁRIOS E AQUAVIÁRIOS INTERMUNICIPAIS. SERVIÇO PÚBLICO E LIVRE INICIATIVA.
VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, CAPUT E INCISOS I E XXII, E
170, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 2º DO ARTIGO 229
DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. TRANSPORTE COLETIVO
INTERMUNICIPAL. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. ARTIGO 30, V DA CONSTITUIÇÃO DO
BRASIL. TRANSPORTE GRATUITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. POLICIAIS CIVIS. DIREITO
ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA. 1. Os
Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a prestação de
serviços de transporte intermunicipal. 2. Servidores públicos não têm
direito adquirido a regime jurídico. Precedentes.
O E. Tribunal de Justiça também perfilha desse entendimento. Essa assertiva se extrai do v. Acórdão da ADIN nº 84.466.0/0 – São Paulo, pelo qual se consignou que “embora possua o município autonomia para legislar sobre assuntos locais, ex vi do artigo 30, I, da CF/88”, o legislador local “extrapola a competência própria, usurpando aquela atinente ao Estado, ao disciplinar o transporte intermunicipal” (grifei).
Sob tal enfoque, o artigo 2º da lei em estudo não prospera, porque viola a repartição de competências instituída pela Constituição Federal.
A distribuição das competências legislativas, administrativas e tributárias é o que assegura a autonomia das entidades federativas, daí porque é considerada “um dos pontos caracterizadores e asseguradores do convívio do Estado Federal”[1].
A Carta Bandeirante declara, em seu artigo 144, que “os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.
Tem-se entendido, então, que a invasão pelo legislador municipal da competência legislativa reservada a outro ente da Federação contraria o artigo 30, inciso I, da Constituição da República e, em conseqüência, representa afronta ao princípio federativo, o que autoriza, no âmbito do Estado-membro, o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma[2] [3].
De outra parte, sob o enfoque da prestação de serviços públicos, ainda que fosse da competência do Município legislar a respeito, a iniciativa em tal matéria estaria reservada ao Chefe do Poder Executivo, por simetria ao que dispõe o art. 47, inc. XVII da Constituição do Estado, que trata da atribuição do Governador do Estado para enviar projeto de lei que disponha – ainda que parcialmente – sobre a concessão ou permissão de serviços públicos (em consonância com o que dispõe o art. 61, § 1º, II, “b” da CF).
A iniciativa reservada, segundo a doutrina, “assegura o privilégio do projeto a seu titular, possibilita-lhe a retirada a qualquer momento antes da votação e limita qualitativa e qualitativamente o poder de emenda, para que não se desfigure nem se amplie o projeto original”[4].
O vício de iniciativa conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, que não se convalida com a sanção ou a promulgação de quem deveria ter apresentado o projeto. É da jurisprudência que “o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça” (ADIn 13.798-0, rel. Dês. Garrigós Vinhares, j. 11.12.1991, v.u.).
4) Conclusão.
Diante do exposto, somos pela admissão e acolhimento
do presente incidente, declarando-se a inconstitucionalidade
da Lei Municipal nº 1.328/05, do Município de Cotia.
São Paulo, 10 de outubro de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
jesp
[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 293.
[2] Cf. ADin nº 74.304-0/4 - SÃO PAULO, Rel. Dante Busana, 3.4.2002.
[3]
Em decisão mais recente (21.8.2007), quando do julgamento da ADIn nº
130.227.0/0-00, o Tribunal de Justiça afirmou expressamente a possibilidade de
declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio
da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. Colhe-se
no voto Desembargador Walter de Almeida Guilherme, a seguinte lição: “(...) um
dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o
princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios
Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p.676.