Incidente de Inconstitucionalidade

Autos n. 171.592.0/4-00

Suscitante: Décima Terceira Câmara de Direito Público

Lei impugnada: Lei n. 726, de 15 de fevereiro de 2002, do Município de Sarutaiá

 

 

 

Ementa: 1) Lei n. 726, de 15 de fevereiro de 2002, do Município de Sarutaiá, que cria cargos em comissão. 2) Criação arbitrária de cargos em comissão. 3) Incompatibilidade com os arts. 111, 115, incisos I e II, e 144 da Carta Paulista. 4) Inconstitucionalidade constatada. 5) Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Colendo Órgão Especial

 

                           

                   Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado quando do julgamento da Apelação Cível n. 458.556-5/0-00, em que é apelante (...) e apelado o Ministério Público de São Paulo.

                   Ocorre que, iniciado o julgamento da apelação, foi questionada a validade jurídico-constitucional da Lei n. 726, de 15 de fevereiro de 2002, do Município de Sarutaiá, que criou cargos em comissão.

                   Por força de ser considerada prejudicial a questão da eventual inconstituciolnalidade, bem como por força do princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior, suscitou-se o incidente de inconstitucionalidade previsto nos arts. 480/482 do CPC.

                   É o breve relatório.

                   Com a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial, tem-se que é inconstitucional a lei impugnada.

                   Ocorre que o legislador municipal, ao criar cargos em comissão de forma arbitrária, acabou por ofender os arts. 111, 115, incisos I e II, e 144 da Carta Paulista, os quais assim dispõem:

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

                   A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, na conformidade dos seus arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” (Cf. ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, Atlas, São Paulo, 7.ª ed., p. 261).

                  Essa autonomia consagrada ao Município não tem caráter absoluto e soberano, porquanto “é limitada pelos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo” (Cf. DE PLACIDO E SILVA, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251). Bem por isso, a autonomia é definida por JOSE AFONSO DA SILVA como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a própria Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

                   A autonomia municipal assenta-se em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. JOSE AFONSO DA SILVA, ob. cit., p. 546).

                   Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits.).                     

                   Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotados, os Municípios dispõem de competência para organizar os seus próprios serviços, de acordo com as conveniências locais. Na organização desses serviços públicos, “a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 1996, 8.ª ed., p. 420).

                   Entretanto, a liberdade conferida aos Municípios – e que decorre da sua condição de ente federativo dotado de autonomia - para organizar os seus próprios serviços não é ilimitada, subordinando-se às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.).

                   E a Câmara Municipal de Sarutaiá, ao editar a Lei n. 726, de 15 de fevereiro de 2002 e criar os cargos de provimento em comissão de Orientador Educacional, Professor de Informática e Professor Coordenador, acabou ferir os limites constitucionais, considerando-se que as funções correspondentes são de natureza burocrática e profissional.

                  Na lição de RUY CIRNE LIMA (“Princípios de Direito Administrativo”, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro atributos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

                   Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam o provimento em comissão, as funções profissionais ou burocráticas devem ser exercidas em caráter permanente, por servidores públicos efetivos, os quais, pela vigente Constituição, só podem ser arregimentados por meio de concurso público (CE., art. 115, inciso II).

                   Com efeito, os cargos em comissão destinam-se às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação determinada pela EC n.º 19/1998) e têm por finalidade propiciar ao governante o controle de execução das suas diretrizes políticas; exigindo, assim, dos servidores nomeados para cargos dessa natureza absoluta fidelidade às orientações traçadas pela autoridade nomeante, decorrendo, daí, a precariedade do vínculo jurídico estabelecido, o qual poderá ser rompido a qualquer tempo, não tendo os seus ocupantes nenhum direito a neles permanecer (STF – Pleno, MS 23103/DF, Rel. Min. NELSON JOBIM, j. em 30.05.2001, DJU de 06.02.2004, p. 32; STF – Pleno, MS 20.933/DF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, j. em 09.08.1989, DJU de 08.09.1989, p. 14232; ).

                   Nesse mesmo sentido, esse Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça já decidiu que: “O provimento de cargos em comissão, cujo desempenho liga-se intimamente à filosofia administrativa e ao estilo da atuação prefeitoral, torna irrecusável a liberdade de nomeação, a qual deve recair sobre pessoa de estrita confiança do titular do Executivo.” (ADIn n.º 20.767-0 - São Paulo, rel. Des. NEY ALMADA, j. em 23.11.94)

                   Decorre, daí, que a exceção contida na parte final do inciso II, do art. 115, da Constituição Paulista (“ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”), que, no ponto, reproduz a dicção do art. 37, inciso II, da Constituição Federal, tem alcance limitado à situações excepcionais - em que se faça necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade e o agente nomeado -, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

                   Evidentemente, a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional que consagra a igual acessibilidade aos cargos públicos.

                   Em monografia sobre o tema, MARCIO CAMMAROSANO ensina que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (“Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, RT, 1.ª ed., p. 45).

                   Assim, para que não venha a constituir burla ao princípio constitucional enunciado expressamente pelo art. 37, incisos I e II, da Constituição da República, a lei criadora de um cargo em comissão deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois que, no dizer de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

                   Afinado a esse mesmo entendimento, HELY LOPES MEIRELLES (Cf. “Direito Administrativo Brasileiro”, editora Malheiros, São Paulo, 18.ª ed., p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso” (STF – Pleno, Representação n.º 1.282-4-SP).

                   Nessas condições, onde a necessidade do estabelecimento de vínculo de confiança e lealdade para o exercício dos cargos de Orientador Educacional, Professor de Informática e Professor Coordenador, previstos na lei sob exame? É irrecusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição Paulista, tem alcance circunscrito às situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo.

                   Ora, os cargos previstos na lei em exame não correspondem a cargos ou funções de administração superior, que exijam o estabelecimento de relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, tratando-se, na verdade, de cargos comuns, de natureza burocrática ou profissional, que devem ser assumidos, em caráter definitivo, por servidores aprovados em concurso público.

                  Bem a propósito, ao examinar iniciativa semelhante, o Plenário desse Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu por bem declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão, cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções.

                   Em tais circunstancias, o parecer é pela inconstitucionalidade da Lei n. 726, de 15 de fevereiro de 2002, do Município de Sarutaiá.

São Paulo, 12 de novembro de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça