Incidente de Inconstitucionalidade

Autos n. 173.633.0/7-00

Suscitante: Décima Oitava Câmara de Direito Público

Lei impugnada: Lei Complementar n.º 157, de 30 de dezembro de 2002, do Município de São José do Rio Preto

 

 

Ementa: 1) Lei Complementar n.º 157, de 30 de dezembro de 2002, do Município de São José do Rio Preto, institui no município a Contribuição para Custeio da Iluminação Pública prevista no artigo 149-A da Constituição Federal. 2) Incompatibilidade com os arts. 111, 144, 160, § 1.º e 163, inciso II, todos da Carta Paulista. 3) Violação decorrente da instituição da progressividade e regressividade de alíquotas em função da classe de consumidores (residencial, industrial e comercial) e da quantidade de consumo medida em Kw/h (Faixas inicial e final); 4) “A progressividade estabelecida de forma desvinculada da objetiva e adequada avaliação da capacidade contributiva do sujeito passivo conduz, ao contrário do pretendido pela norma constitucional, à injustiça e à quebra do princípio da isonomia tributária (Des. Shintate)”. 5) Inconstitucionalidade constatada. 6) Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Colendo Órgão Especial

 

                           

                   Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado quando do julgamento da Apelação Cível n. 809.337-5/4-00, em que são apelantes e apelados a Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto e (...).

                   Ocorre que, iniciado o julgamento da apelação, foi questionada a validade jurídico-constitucional da Lei Complementar n. 157, de 30 de dezembro de 2002, do Município de São José do Rio Preto, que instituiu no município a Contribuição para Custeio da Iluminação Pública prevista no artigo 149-A da Constituição Federal.

                   Por força de ser considerada prejudicial a questão da eventual inconstituciolnalidade, bem como por força do princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior, suscitou-se o incidente de inconstitucionalidade previsto nos arts. 480/482 do CPC.

                   É o breve relatório.

                   Com a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial, tem-se que é inconstitucional a lei impugnada.

                   O ato normativo impugnado tem a seguinte redação:

Lei Complementar nº 157/02                     

         “Art. 1.º - Fica instituída no Município de São José do Rio Preto a Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública – CIP, prevista no artigo 149-A da Constituição Federal.

         Parágrafo Único – O serviço previsto no ‘caput’ deste artigo compreende o consumo de energia elétrica destinada à iluminação de vias, logradouros e demais bens públicos, e à instalação, manutenção, melhoramento e expansão da rede de iluminação pública.

         Art. 2.º - É fato gerador da CIP o consumo de energia elétrica por pessoa natural ou jurídica, mediante ligação regular de energia elétrica no território do Município.

         Art. 3.º - Sujeito passivo da CIP é o consumidor de energia elétrica residente ou estabelecido no território do município e que esteja cadastrado junto à concessionária distribuidora de energia elétrica titular da concessão no território do Município.

         Art. 4º - Fica garantida a iluminação pública, através do braço de luz, nas vias onde já instalada a rede de energia elétrica, nos loteamentos ainda não regularizados junto aos órgãos competentes.

         Art. 5.º - A base de cálculo da CIP é o valor mensal do consumo total de energia elétrica constante na fatura emitida pela empresa concessionária distribuidora.

 

         Art. 6.º - As alíquotas de contribuição são diferenciadas conforme a classe de consumidores e a quantidade de consumo medida em Kw/h, conforme a tabela anexa, que é parte integrante desta Lei.

         Parágrafo único – A determinação da classe/categoria de consumidor observará as normas da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – ou órgão regulador que vier a substituí-la.

         Art. 7.º - Estão isentos da contribuição o poder público, entidades assistenciais sociais e entidades assistenciais religiosas sem fins lucrativos.

         Art. 8.º - A CIP será lançada para pagamento juntamente com a fatura mensal de energia elétrica.

         § 1.º - O município conveniará ou contratará com a Concessionária de Energia Elétrica a forma de cobrança e repasse dos recursos relativos à contribuição.

         § 2.º - O convênio ou contrato a que se refere o ‘caput’ deste artigo deverá, obrigatoriamente, prever repasse imediato do valor arrecadado pela concessionária ao Município, retendo valores necessários ao pagamento da energia fornecida para a iluminação pública e os valores fixados para remuneração dos custos de arrecadação e de débitos que, eventualmente, o Município tenha ou venha a ter com a concessionária, relativos aos serviços supra citados.

         § 3.º - O montante devido e não pago da CIP a que se refere o ‘caput’ deste artigo será inscrito em dívida ativa, 60 (sessenta) dias após a verificação da inadimplência.

         § 4.º - Servirá como título hábil para a inscrição:

         I - a comunicação do não-pagamento efetuada pela concessionária que contenha os elementos previstos no artigo 202 e incisos do Código Tributário Nacional;

         II – a duplicata da fatura de energia elétrica não paga;

         III – outro documento que contenha os elementos previstos no artigo 202 e incisos do Código Tributário Nacional.

         § 5.º - Aos valores da CIP não pagos no vencimento serão acrescidos de juros de mora, multa e correção monetária, nos termos  da legislação tributária municipal.

         Art. 9.º - Fica criado o Fundo Municipal de Iluminação Pública, de natureza contábil e administrado pela Secretaria Municipal de Finanças.

 

         Parágrafo Único – Para o Fundo deverão ser destinados todos os recursos arrecadados com a CIP para custear os serviços de iluminação pública previstos nesta Lei Complementar.

         Art. 10 – Sem prejuízo da obrigatoriedade do pagamento da CIP, os gastos com consumo de energia elétrica, instalação, manutenção e melhoramentos de área comuns em condomínios horizontais fechados, inclusive ruas, praças e áreas de lazer, não serão custeados pelo Fundo Municipal de Iluminação Pública.

         Art. 11 - O Poder Executivo regulamentará a aplicação desta lei complementar no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da data da sua publicação.

         Art. 12 - Fica o Poder Executivo autorizado a firmar com a CPFL – Companhia Paulista de Força e Luz o convênio ou contrato a que se refere o art. 7º.

         Art. 13 – Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”

                        

                   Consta que a referida lei foi revogada, conforme se vê do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 127.702-0/0-00, ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça de São Paulo.

                   Todavia, a revogação da lei não impede a sindicância de sua constitucionalidade, de forma incidental, pois podem ser discutidos os efeitos concretos da lei.

                   Por isso, é importante frisar que a legislação municipal acima reproduzida é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, mais precisamente com os seus arts. 111, 144, 160, § 1.º e 163, inciso II, que dispõem o seguinte:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(Art. 160) - .........

§ 1.º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Art. 163 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

I - ......

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”

 

                   Na ordem constitucional em vigor, os Municípios integram a federação e têm assegurada sua autonomia, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (CF., art. 29, caput). Basicamente, essa autonomia se revela pelas competências outorgadas a tais entes federativos para legislarem sobre assuntos de interesse local; suplementarem a legislação federal e a estadual no que couber; “instituírem e arrecadarem os tributos que lhes são próprios” (CF., art. 30, inciso III), além de outras.

                   É bem de ver, porém, que a competência tributária dos entes públicos municipais - consubstanciada na capacidade de instituir tributos - encontra limites nas normas da Constituição Federal ( ) atinentes ao Sistema Tributário Nacional (CF., art. 145 e segs.), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais as regras matrizes dos tributos.

                   De fato, mesmo admitindo-se que a Constituição em vigor não criou tributos, é certo que, além de discriminar competências, ela traçou a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser instituídos pelas entidades estatais. Assim sendo, ao conferir às pessoas políticas competência para a instituição de “impostos, taxas e contribuições”, a Constituição da República no seu art. 145 classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada um deles e vinculando ao legislador ordinário.

                   Sobre o tema, ROQUE ANTONIO CARRAZZA formulou as seguintes considerações:

                   “A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital)  enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (Cf. “Curso de Direito Constitucional Tributário”, RT, 4.ª ed., p. 257).

                   Nesse mesmo sentido é a orientação que emerge da mais elevada Corte Judiciária de nosso país, ‘verbis’: “O fundamento do poder de tributar (...) reside no dever jurídico de essencial e estrita fidelidade dos entes tributantes ao que imperativamente dispõe a Constituição da República. (v. Despacho proferido pelo Ministro-Presidente CELSO DE MELLO, Informativo n. 125), sendo, portanto, inconstitucional qualquer tributo criado fora desses limites”.   

                   Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que – ante o permissivo do art. 149-A da Constituição Federal - a Câmara Municipal de São José do Rio Preto editou a Lei Complementar n.º 157, de 30/12/2002, instituindo a cobrança de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, cujo fato gerador é “o consumo de energia elétrica por pessoa natural ou jurídica, mediante ligação regular de energia elétrica no território do município” (art. 2.º).

                   A propósito, cumpre recordar que anteriormente à edição da EC n.º 39/02, que possibilitou a cobrança dessa espécie tributária, inúmeros Municípios criaram e implantaram a taxa de iluminação pública, declarada inconstitucional pelo Excelso Pretório (RREE 231.764-RJ e 233.332-RJ, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. em 10/03/1999), por referir-se a serviço inespecífico e indivisível.

                   Inobstante a promulgação da EC n.º 39/02, quando autorizou a cobrança de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, a Lei Complementar n.º 157/02 contrariou frontalmente a Constituição, fugindo do modelo por ela traçado, ao instituir a progressividade e a regressividade de alíquotas em função da classe de consumidores (residencial, industrial e comercial) e da quantidade de consumo medida em Kw/h (Faixas inicial e final).

                   Com efeito, a lei em questão dispôs no seu art. 6.º que “as alíquotas de contribuição são diferenciadas conforme (a) a classe de consumidores (residencial, industrial e comercial) e (b) a quantidade de consumo medida em Kw/h”.

                   Verifica-se, assim, que as alíquotas previstas na presente lei são definidas pela faixa de consumo em que se situar o contribuinte dentro da sua respectiva classe: RESIDENCIAL - de 1,92% (um inteiro, noventa e dois centésimos por cento) a 11,92% (onze inteiros, noventa e dois centésimos por cento); INDUSTRIAL - de 4,99% (quatro inteiros, noventa e nove centésimos por cento) a 31,93% (trinta e um inteiros, noventa e três centésimos por cento); COMERCIAL - de 2,90% (dois inteiros e noventa centésimos por cento) a 19,32% (dezenove inteiros, trinta e dois centésimos por cento).

                   Entretanto, por sua natureza peculiar, a contribuição para o custeio da iluminação pública não condiz com o regime de “alíquotas progressivas ou regressivas”, tal como previsto na legislação municipal ora discutida, mormente pela ausência de autorização constitucional expressa. Isso significa dizer que essa modalidade de tributo não pode variar na razão da presumível capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária. 

                   Mesmo se fosse juridicamente possível a adoção de alíquotas diferenciadas, o que se admite tão-somente para argumentar, o critério adotado por lei se revela demasiadamente absurdo e não se presta à efetiva realização da justiça tributária, incompatibilizando-se com o postulado básico da capacidade contributiva, máxime porque desde logo é possível constatar que institui ônus maior aos contribuintes que consomem menos energia elétrica e alíquota menor para os que consomem o máximo em energia elétrica.

                   Na realidade, o critério legalmente eleito - a quantidade de consumo medida em Kw/h - não se presta a avaliar a real capacidade econômica do contribuinte. Para que seja alcançada a isonomia tributária, por meio de avaliação da capacidade econômica do contribuinte, é indispensável a consideração de outros dados, como os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, conforme expresso na regra constitucional.

                   Apenas para ilustrar essa situação, tome-se por exemplo o imóvel ocupado por moradores de baixa renda, cujo consumo de energia elétrica é pequeno (na faixa de 71 a 100 Kw/h), e que, proporcionalmente, serão obrigados a recolher contribuição maior do que a dos moradores de imóvel de alto padrão, com elevado consumo, por conta do critério legalmente estabelecido, que, além de desarrazoado, atenta contra o postulado da isonomia.

                   Daí a lúcida advertência feita pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador PAULO SHINTATE, ao examinar propositura semelhante: “...essa progressividade (...) estabelecida de forma desvinculada da objetiva e adequada avaliação da capacidade contributiva do sujeito passivo conduz, ao contrário do pretendido pela norma constitucional, à injustiça e à quebra do princípio da isonomia tributária.” (ADIn n.º 059.340.0/8, j. em 26/04/2000).

                   Demais disso, tem prevalecido no STF o entendimento de que o legislador ordinário não pode se valer da progressividade na definição de alíquotas pertinentes à contribuição previdenciária, visto que -- tratando-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional -- “...inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição” (ADInMC n.º 2010/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Embora no precedente em foco tenha sido tratado especificamente da instituição de alíquotas progressivas à cobrança de contribuição previdenciária, os seus fundamentos são aplicáveis a este caso.

                  Em conclusão, o ato normativo em epígrafe é materialmente inconstitucional porque: (a) a Constituição não autoriza a adoção de alíquotas progressivas ou regressivas na cobrança da contribuição de iluminação pública; (b) o critério legalmente eleito – que leva em consideração apenas a quantidade de consumo medida em Kw/h - não permite determinar a capacidade contributiva, afigurando-se, portanto, ofensivo à razoabilidade e à isonomia.

                   Em tais circunstancias, o parecer é pela inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 157, de 30 de dezembro de 2002, do Município de São José do Rio Preto.

São Paulo, 16 de janeiro de 2009.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça