Parecer em incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 174.819-0/3-00

Suscitante: 12ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 72, inciso V, da Lei Orgânica do Município de Itararé/SP 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade do art. 72, inciso V, da Lei Orgânica do Município de Itararé/SP, que dispõe sobre o recebimento da denúncia, por infração político-administrativa do Prefeito, pela deliberação da maioria absoluta da Câmara dos Vereadores. Constituições Federal (art. 86) e Estadual (art. 49) que reclamam quórum de 2/3 para o mesmo objetivo. Violação de princípio de observância obrigatória pelos Municípios. Parecer pelo reconhecimento da inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 12a. Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos de apelação com revisão em mandado de segurança impetrado pelo Prefeito Municipal contra ato do Presidente da Câmara Municipal de Itararé.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 72, inciso V, da Lei Orgânica do Município de Itararé/SP.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPP).

Este é resumo do que consta dos autos.

O Prefeito do Município de Itararé impetrou mandado de segurança contra ato do Presidente da Câmara Municipal de Itararé, consistente no recebimento, por deliberação da maioria dos Edis, de “denúncia” por improbidade, com a conseqüente instauração de processo político-administrativo tendente à cassação de seu mandato.

Em 1º grau de jurisdição, a segurança foi concedida, ao argumento de que a exigência de maioria absoluta para o recebimento da denúncia, prevista no art. 72, inc. V, da Lei Orgânica Municipal não se coaduna com o art. 86 da Constituição Federal ou com o art. 49 da Constituição do Estado, que exigem, para a mesma situação, a deliberação de 2/3 dos parlamentares (fls. 165/169).

Contra tais fundamentos se opôs o Presidente da Câmara Municipal, em tempestiva apelação (fls. 171/177), defendendo que a autonomia dos municípios lhes permite regular de forma diferenciada o processo para a apuração da responsabilidade político-administrativa do Prefeito.

A questão que se submete ao C. Órgão Especial é a de saber se padece de inconstitucionalidade o art. 72, inc. V, da Lei Orgânica do Município de Itararé, assim redigido:

Art. 72 – O processo de cassação do mandato do Prefeito pela Câmara por infrações definidas no artigo anterior, obedecerá o seguinte rito:

I – a denúncia escrita, contendo a exposição dos fatos e a indicação das provas, será dirigida ao Presidente da Câmara e poderá ser apresentada por qualquer cidadão, Vereador local, ou partido político com representação na Câmara;

II – se o denunciante for Vereador, não poderá participar, sob pena de nulidade, da deliberação plenária sobre o recebimento da denúncia e sobre o julgamento do denunciado, assim como da Comissão de Inquérito ou Processante, podendo, todavia, praticar todos os atos de acusação, e será substituído pelo seu respectivo Suplente, o qual não poderá integrar a comissão constituída para esse fim;

III – se o denunciante for o Presidente da Câmara, passará a Presidência a seu substituto legal, para todos os atos do processo e somente votará se necessário para completar o quorum do julgamento;

IV – de posse de denúncia, o Presidente da Câmara determinará sua leitura na primeira sessão ordinária, submetendo à deliberação do Plenário sobre o seu recebimento;

V – decidido o recebimento da denúncia pela maioria absoluta dos membros da Câmara, na mesma sessão será constituída a Comissão Processante integrada por 3 (três) Vereadores sorteados entre os desimpedidos, observado o princípio da representação proporcional dos partidos, a ser exercida pelos líderes através de indicação, aos quais elegerão, desde logo, o seu Presidente e o Relator;

VI – entregue o processo ao Presidente da Comissão seguir-se-á o seguinte procedimento:

(...)

A solução do problema já está delineada no Voto do em. Desembargador VENICIO SALLES (fls. 240/242), que, com a devida vênia, reproduzimos:

No caso ‘sub examine’ o art. 72, inciso V, reproduzido no corpo do voto do I. Relator exige quorum qualificado da maioria absoluta dos membros da Câmara Municipal para o recebimento e processamento de denúncia contra o Prefeito Municipal. Diversamente, o art. 86 da Carta Maior, em situação de absoluta simetria, na medida em que envolve apuração de crime comum e de responsabilidade do Chefe do Executivo Federal, exige quorum de maior qualificação, condicionando o recebimento da denúncia aos votos de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara dos Deputados.

Também, a Constituição de São Paulo adota redação idêntica em seu art. 49, admitindo acusação em face do Governador, com base no voto de 2/3 (dois terços) da Assembléia Legislativa.

Evidente que a Lei Municipal, por coerência e simetria exigida no art. 29 da Carta Política Federal, deve se submeter aos princípios estabelecidos na Constituição, prevendo os mesmos critérios e o mesmo quorum para o recebimento de denúncia contra o mais alto mandatário do Executivo local.

A disposição insculpida no inciso V do art. 72 da Lei Orgânica do Município de Itararé rompe com este padrão constitucional, o que determina, s.m.j., o reconhecimento e declaração de sua inconstitucionalidade.

De fato, no âmbito de seu poder de auto-organização, o município tem limites constitucionais bem explícitos, como nos indica o artigo 29, “caput”, da Constituição da República.

É dizer: o Município organiza-se e rege-se por sua Lei Orgânica e demais leis que adotar, mas, para atingir tal desiderato, há que observar os princípios da Constituição da República e os da Constituição do respectivo Estado.

É autônomo o Município, nos termos da Constituição. Autonomia, entretanto, não significa a apropriação de liberdade ilimitada para dispor normativa e organizacionalmente sobre os poderes municipais. Há que se respeitar a fonte única dos poderes: a Constituição da República (Cf. José Nilo de Castro, in Direito Municipal Positivo, Del Rey, 3ª edição, p. 66).

Decorre daí que, no ponto questionado, o legislador municipal deveria ter adotado, como parâmetro, o texto constitucional. Ainda que bem intencionado, não lhe cabia inovar definindo quorum diferente do que estabelecido no art. 86 da CF ou no art. 49 da CE para a admissão de denúncia por infração político-administrativa contra o chefe do Poder Executivo.

Esse tema, aliás, já foi enfrentado por esse C. Órgão Especial, que tem entendido, pela maioria de seus membros, que as regras constitucionais destacadas se aplicam por simetria às municipalidades.

Nesse sentido, confiram-se:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Orgânica do Município que define as infrações político-administrativas e estabelece o processo de sua apuração e julgamento - Alegação de inconstitucionalidade, em face do artigo 48 da Constituição Estadual - Ação julgada improcedente nessa parte - Por força dos artigos 29 da Constituição Federal e 144 da Constituição Estadual, que reconheceram aos Municípios a capacidade de auto-organização, cabe as leis orgânicas municipais disciplinar as infrações político-administrativas e o respectivo processo.

INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Orgânica Municipal que condiciona o recebimento da representação por infração político-administrativa ao voto favorável da maioria dos membros da Câmara - Disposição que contraria a regra do artigo 49 da Constituição Estadual, que fixa em 2/3 o quorum para aquele fim, matéria essa que é de observância obrigatória pelos Municípios, por estar relacionada com os princípios constitucionais da representação democrática e da autoridade legítima.

INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Orgânica Municipal que faculta à Câmara o pedido de informações e certidões ao Executivo, sob pena de, em não sendo prestadas, restar configurado o crime de responsabilidade - Invalidade dessa última locução, por implicar em ofensa ao princípio federativo, já que compete à União definir práticas delituosas (ADIN n° 55.547-0/3, rel. Dante Busana, j. 22.11.00, m.v.).

INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Orgânica Municipal que condiciona o recebimento da denúncia por infração político-administrativa ao voto favorável da maioria dos membros da Câmara - Disposição que contraria a regra do artigo 49 da Constituição do Estado, que fixa em 2/3 o quorum para aquele fim, matéria essa, ademais, que é de observância obrigatória pelos Municípios, por estar relacionada com os princípios constitucionais da representação democrática e da autoridade legítima (ADIN 64.682-0/0, rel. Dante Busana, j. 6.12.00, m.v.)

Registra-se haver julgados em sentido contrário (cf., v.g., ADIN 47.300-0/3). Estes se baseiam no fato de que crimes de responsabilidade (previstos nos parâmetros constitucionais invocados) e infrações político-administrativas (previstas nas leis orgânicas) são institutos distintos e, por isso, sujeitos a tratamentos diferenciados.

Em que pese a força desse argumento, ele não nos convence.

O processo de apuração das infrações político-administrativas visam, tanto quanto o de impeachment, à cassação do mandato do chefe do Poder Executivo. Não importa a natureza do fato que os enseja. O que sobressai é o resultado e a natureza política do instituto, que nos permite reconhecer a similitude das medidas e justificam, data venia, invocar-se a simetria.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração da inconstitucionalidade do art. 72, inciso V, da Lei Orgânica do Município de Itararé/SP.

São Paulo, 13 de abril de 2009.

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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