Parecer em incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 175.068-0/2

Suscitante: 15ª. Câmara de Direito Público

Objeto: artigos 183 a 193 e Tabela do Anexo VIII da Lei nº 1/97, do Município de José Bonifácio

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade dos artigos 183 a 193 e Tabela do Anexo VIII da Lei nº 1/97, do Município de José Bonifácio, que instituem a “Taxa de Manutenção de Acesso a Imóvel Rural”. Serviço público uti universi e indivisível, que não admite a instituição de taxa. Violação do  art. 145, II, e § 2.º, da Constituição Federal e do art. 160, II, da Constituição do Estado. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade desses dispositivos.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 15a. Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível em que figuram como partes (...) e o MUNICÍPIO DE JOSÉ BONIFÁCIO.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, dos artigos 183 a 193 e Tabela do Anexo VIII da Lei nº 1/97, do Município de José Bonifácio, que instituem a “Taxa de Manutenção de Acesso a Imóvel Rural” (cf. fls. 27/32).

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPP).

Este é resumo do que consta dos autos.

Pelos dispositivos legais em análise, a Prefeitura Municipal de José Bonifácio instituiu a “Taxa de Manutenção de Acesso a Imóvel Rural”, que tem como fato gerador “os serviços prestados pelo Município com a finalidade de manter em permanentes condições de uso a passagem da estrada municipal à entrada do imóvel rural, mantendo-a desobstruída de entulhos ou qualquer outro material sólido, livre de vegetação e recuperada de qualquer tipo de erosão, independentemente dos serviços rotineiros de conservação da respectiva estrada” (art. 183).

A taxa incidirá sobre cada uma das entradas ou acessos existentes (art. 185). Considera-se contribuinte o proprietário, o titular do domínio útil ou possuidor a qualquer título de imóvel localizado fora do perímetro urbano, cuja propriedade tenha sua entrada ou acesso à margem de estrada municipal (art. 186). O valor da taxa foi fixado em 6 (seis) vezes o Valor Financeiro de Referência – VFR por entrada ou acesso conservado (art. 191), sobre o qual incide o desconto instituído pela tabela do Anexo VIII da lei municipal questionada (art. 192).

Como se sabe, a competência tributária dos Municípios – consubstanciada na capacidade de instituir tributos – encontra limite nas normas da Constituição Federal referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e ss. CF), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra matriz dos tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria).

Mesmo reconhecendo que a Constituição da República não criou tributos, é certo que, além de discriminar competências, ela traça a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser criados pelos entes federativos. Em outras palavras, a Constituição da República, no art. 145, ao conferir às pessoas políticas competência para que instituam impostos, taxas e contribuições de melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada  um  deles  e  vinculando o legislador ordinário.

Sobre isso, ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA que:

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com  certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo  possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4º ed., p. 257).

E o artigo 145, II, da Constituição Federal, que traça a regra matriz das taxas - regra que é repetida no artigo 160, II, da Constituição do Estado de São Paulo -, dispõe que:

“Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestado ao contribuinte ou postos a sua disposição”

Como se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência desse tributo uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço público específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (cf. GERALDO ATALIBA, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2º ed., pág. 164).

E as taxas de serviço, por definição constitucional, são aquelas cobradas pelo Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.” Já serviço público, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público” (Curso de Direito Administrativo, 7º ed., p. 399).

Entrementes, não é qualquer serviço público que possibilita a tributação por via de taxa, mas apenas o serviço público específico e divisível, em contraste com o serviço público geral e indivisível, este passível de tributação apenas pela via do imposto. É o que ensina o já citado ROQUE ANTONIO CARRAZZA, nos seguintes termos:

“Os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados “uti universi”, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados “uti singuli”. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (Curso de Direito Constitucional Tributário, 12.º ed., p. 448).

De fato, essa categoria jurídica, tanto no Brasil  como  no  exterior, sempre foi “uma técnica fiscal de repartição da despesa com um serviço público especial e mensurável pelo grupo restrito de pessoas que se aproveitam de tal serviço, ou o provocaram ou o têm ao seu dispor” (cf. ALIOMAR  BALEEIRO, Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed., 1985, Forense, p. 328).

Exatamente por isso, EDWIN SELIGMAN enfatiza:

“A característica essencial da taxa é a existência de um benefício especial mensurável, ao mesmo tempo que um interesse público predominante; a ausência de interesse público faz do pagamento um preço e a ausência do benefício especial faz dele um imposto” (em “Essays in Taxation”, 1931, p. 431, “apud” BILAC PINTO, “Estudos de Direito Público”, ed. Forense, 1953, p.162).

Diante disso, inegável que o Município de José Bonifácio extrapolou os limites e parâmetros constitucionais ao instituir a taxa de conservação impugnada, cujo fato gerador é serviço público geral e indivisível, que beneficia um número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas, serviços que não oferecem “benefício especial” aos contribuintes 'eleitos' pela lei.

Ademais, não basta que a lei instituidora de uma taxa afirme que  esta se destina a custear um serviço prestado ao contribuinte ou fruível por  este: também é indispensável que o benefício possa ser quantificado em relação a cada contribuinte. Nesse sentido, já decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que “o benefício especial objetivo, mensurável é condição essencial para que o tributo seja conceituado como taxa” (STF, RE 72.374-ES, RDA, 110-212, rel. Ministro Luiz Gallotti).

Por fim, como restou consignado no V. Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta Câmara de Direito Público, o STF, de fato, tem proclamado a inconstitucionalidade da taxa questionada na presente ação:

TRIBUTÁRIO. TAXA DE CONSERVAÇÃO E SERVIÇOS DE ESTRADAS DE RODAGEM. ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º e 6.º DA LEI N.º 3.133/89, DO MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA/SP. INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 145, II, e § 2.º, DA CARTA MAGNA. Não se tratando de serviço público específico e divisível, referido apenas aos contribuintes lindeiros que utilizam efetiva ou potencialmente as estradas, não pode ser remunerado por meio de taxa, cuja base de cálculo, ademais, identifica-se com a de imposto, incidindo em flagrante inconstitucionalidade, conforme precedentes da Corte. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 3.133, de 27/06/89, do Município de Araçatuba/SP (RExt n. 259.889/SP, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento:  07/03/2002, Tribunal Pleno, DJ de 19-04-2002, p. 62).

Diante do exposto, o parecer é pela declaração da inconstitucionalidade dos artigos 183 a 193 e Tabela do Anexo VIII da Lei nº 1/97, do Município de José Bonifácio, que instituem a “Taxa de Manutenção de Acesso a Imóvel Rural”.

São Paulo, 27 de fevereiro de 2009.

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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