Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº.  178.580-0/0-00

Suscitante: Décima Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça   

Objeto:  Art. 22, §1º, inciso II e §2º , da Lei Municipal n. 1660-A, de 16 de dezembro de 2005, do Município de São Vicente 

 

Parecer do Ministério Público

 

Ementa:  Art. 22, §1º, inciso II e §º 2º , da Lei Municipal n. 1660-A, de 16 de dezembro de 2005, do Município de São Vicente, que dispõe sofre o transporte coletivo de passageiros na modalidade lotação e dá outras providências. Violação do art. 230, §2º, da Constituição Federal e do art. 39, do Estatuto do Idoso (LF n. 10.741/03). Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

1) Relatório

O Ministério Público de São Paulo ajuizou Ação Civil Pública com pedido de antecipação de Tutela, em face da Prefeitura Municipal de São Vicente, objetivando a condenação da requerida em: a) obrigação de não fazer, consistente em se abster de aplicar os comandos previstos no art. 22, §1º, inciso II e §2º, da Lei Municipal n. 1660-A, quanto o número máximo de idosos que poderão ser transportados gratuitamente em cada lotação e quanto à exigência de documento expedido pela SETRAM para a comprovação da condição de idoso; b) obrigação de fazer, consistente em garantir, através da contínua e eficaz fiscalização das lotações autorizadas a prestar o serviço público de transporte coletivo nesta Comarca de São Vicente, o acesso irrestrito de idosos, sem que estes tenham de apresentar documentação especial para exercício da gratuidade nesta espécie de transporte; c) fixação de multa no importe de R$ 1.000,00 (um mil reais) por idoso que não puder exercer o direito de ser transportado gratuitamente e sem exigência da documentação especial nas lotações autorizadas a prestar serviço de transporte público na Comarca de São Vicente.   

A ação foi julgada parcialmente procedente pela r. Sentença de fls. 53/63, condenando a requerida: a) a abster-se de aplicar o conteúdo da norma (art. 22,p.1º, inciso II e p. 2º , da Lei Municipal n. 1660-A), com relação aos idosos de 65 anos em diante; b) à fiscalização dos veículos de lotação para a manutenção da regra constitucional de acesso aos idosos de 65 anos de idade em diante independentemente das restrições de já citada norma; à fixação para o caso de descumprimento de multa diária no importe de R$ 1.000,00, por idosos que não puder exercer seu direito ao transporte gratuito nos termos acima citados.

 A Prefeitura Municipal de São Vicente interpôs recurso de apelação, pleiteando a improcedência da ação, com o restabelecimento da vigência do art. 22,§1º, inciso II e §2º, da Lei Municipal n. 1660-A do Município de São Vicente, fls. 68/72.

 

O Ministério Público apresentou contra-razões de apelação, pugnando pelo não provimento do recurso fls. 75/77.

Parecer da E. Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos pelo não provimento do recurso interposto pela apelante, fls. 83/86.

Pelo v. Acórdão de fls. 95/99, a Décima Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça determinou a remessa dos autos a este Colendo Colegiado para atendimento da cláusula do artigo 97 da                                                                                      Constituição da República e da recente Súmula Vinculante n. 10, do Supremo Tribunal Federal.

Eis, em breve síntese, o relatório.

2) Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.

A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pela Prefeitura Municipal de São Vicente.

Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).

No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade dos dispositivos legais impugnados, do Município de São Vicente – não foram examinadas pelo Plenário ou Órgão Especial.

De outro lado, e, de acordo com pesquisa informatizada, não há notícia    de     que a   validade dessas normas foram julgadas pelo                                                                                                  Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.        

Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.

3) Fundamentação.

A Lei Municipal n. 1660-A  dispõe sobre o transporte coletivo de passageiros, na modalidade lotação.

O inciso II do parágrafo 1º , da referida lei, garante a gratuidade no transporte coletivo de passageiros na modalidade lotação ao no máximo 2 (dois) idosos com mais de 60 (sessenta) anos de idade e seus acompanhantes, desde comprovadamente indispensáveis à sua locomoção.

 

 

O parágrafo 2º deste mesmo artigo, por seu turno, estabelece que a SETRAM providenciará o cadastramento dos beneficiários da gratuidade a que se refere o parágrafo anterior e expedirá documento específico para apresentação quando da utilização do serviço.

Como  adiante se demonstrará, tais dispositivos legais se afiguram, de fato, inconstitucionais.

Com fundamento na ordem constitucional, esta Procuradoria-Geral tem manifestado o entendimento de que os idosos, com sessenta anos de idade ou mais, têm direito à gratuidade do transporte coletivo, pois tal medida, muitas vezes adotada na esfera municipal, vai de encontro à política pública adotada pelo art. 230, § 2º, da Constituição Federal.

Esse dispositivo assegura aos maiores de sessenta e cinco anos a gratuidade do transporte coletivo urbano.

E o art. 39, do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) estabelece:

“Aos maiores de 65 anos (sessenta e cinco) anos fica assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.”

Seu § 3º prevê:

“No caso de pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo.”

 

Logo, é indevida a restrição da gratuidade do transporte coletivo de passageiros na modalidade lotação para no máximo 2 (dois) idosos com mais de 60 (sessenta) anos de idade e seus acompanhantes, contida no inciso II, do parágrafo 1º, do art. 22, da Lei n. 1660-A.

O mesmo se pode dizer, com relação à necessidade do cadastramento dos beneficiários desta gratuidade, que deverão apresentar documento específico expedido pela SETRAM, quando da utilização do serviço, prevista no parágrafo 2º , do art. 22, da Lei n. 1660-A.

Note-se que a exigência de prévio cadastramento dos beneficiários desta gratuidade para a utilização do serviço é flagrantemente inconstitucional, na medida em que restringe  o benefício a apenas os que residam no município. Nada justifica que o benefício seja restrito a alguns e não estendido aos outros, de outras localidades. A regra constitucional, sobre a qual a lei municipal se apóia, não pode encontrar limitação territorial.

É até possível que a lei eleja um discrímen para tratar de maneira desigual os desiguais. Jamais, porém, poderá tratar desigualmente os iguais.

E no caso em exame foi o que aconteceu.  

Como afirma Alexandre de Moraes, “o princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamento abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas.

                                               .......................

A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja existência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos”.

 

Celso Antonio Bandeira de Mello afirma: “Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”.

A respeito da razoabilidade, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citando Diogo de Figueiredo Moreira Neto, leciona: “pelo princípio da razoabilidade, o ‘que se pretende é considerar se determinada decisão, atribuída ao Poder Público, de integrar discricionariamente uma norma, contribuirá efetivamente para um satisfatório atendimento dos interesses públicos’.  .....Para esse autor, ‘a razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação dos motivos, exige que sejam eles adequáveis, compatíveis e proporcionais, de modo a que o ato atenda a sua finalidade pública específica’”.

Enfim, o texto fundamental não autoriza o tratamento desigual, sem que haja uma razão objetiva que permita a discriminação, o que está a ocorrer com a legislação examinada.

4) Conclusão.

Por essas razões, o parecer é pela inconstitucionalidade  do inciso II, do parágrafo 1º e do parágrafo 2º , do art. 22, da Lei n. 1660-A, do Município de São Vicente.

 

                          São Paulo, 09 de junho de 2009.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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