Autos n. 178.606-0/0-00
Suscitante: Sétima Câmara de Direito Criminal
Objeto da impugnação: Art. 41 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha)
Ementa: 1) Incidente
de Inconstitucionalidade. Art. 41 da Lei Maria da Penha; 2) Constitucionalidade
do dispositivo legal impugnado, uma vez que o art. 98, I, da CF, submeteu ao
legislador ordinário a definição das infrações penais de menor potencial
ofensivo, bem como o estabelecimento dos requisitos necessários à transação e
à suspensão condicional do processo; 3) O
legislador ordinário possui plenos poderes para, diante de situações que lhe
pareçam graves, afastar a incidência dos dispositivos penais e processuais da
Lei dos Juizados Especiais; 4) Incidência
do princípio da proporcionalidade que determina a proibição de proteção
deficiente (Untermassverbot) às vítimas da violência doméstica; 5)
Constitucionalidade do rigor imprimido pela Lei n. 11.340/06 ao afastar do
alcance das infrações penais ligadas à violência doméstica ou familiar contra
a mulher os dispositivos da Lei n. 9.099/95; 6) Parecer
no sentido de ser proclamada a constitucionalidade do dispositivo legal
questionado, com a conseqüente devolução dos autos ao Colendo Órgão judicante
que suscitou o incidente, para apreciar a causa. |
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
Trata-se
de Acórdão proferido pela Colenda Sétima Câmara de Direito Criminal do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Mandado de
Segurança n. 990.08-062856-9, da Comarca de São José dos Campos, em que é
impetrante o 13º Promotor de Justiça de São José dos Campos e impetrado o MM
Juiz de Direito da 1ª. Vara Criminal da Comarca de São José dos Campos que, por
força do art. 97 da Constituição Federal, ratificado pelo Enunciado n. 10 da
Súmula Vinculante do Pretório Excelso, suscitou a instauração de Incidente de Inconstitucionalidade,
regulado pelos arts. 480/482 do Código de Processo Civil e pelos arts. 657/658
do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Ocorre
que o V. Acórdão, de ofício, deliberou pela inconstitucionalidade do art. 41 da
Lei n. 11.340/2006, segundo o qual aos
crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de
setembro de 1995.
É
o breve relatório.
Com
a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial, tem-se que deve
ser proclamada a constitucionalidade do dispositivo legal questionado e, publicadas
as conclusões do acórdão, devem os autos ser devolvidos ao Colendo Órgão
judicante que suscitou o incidente, para apreciar a causa, nos exatos termos do
art. 658 do Regimento Interno do TJSP.
A
questão central a ser analisada consiste na vigência do art. 41 da Lei n.
11.340/06, o qual veda a aplicação da Lei n. 9.099/95 a fatos alcançados pela
“Lei Maria da Penha”.
Todavia,
nada há de inconstitucional no texto de Lei supra transcrito.
O
legislador ordinário possui plenos poderes para, diante de situações que lhe
pareçam graves, afastar a incidência dos dispositivos penais e processuais da
Lei dos Juizados Especiais.
Ademais
disso, os fatos tratados na Lei n. 11.340/06, que cuida dos “mecanismos para coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o
do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados
internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil” (art. 1º da
Lei) poderiam ter sido validamente retirados da esfera de abrangência da Lei n.
9.099/95.
De
há muito se reconhece a gravidade de comportamentos ligados à violência
doméstica e familiar contra a mulher. Durante muitos anos tais fatos foram
subsumidos à Lei dos Juizados Especiais com desastrosas conseqüências para as
vítimas do crime.
Deveras,
mulheres eram (e são) covardemente agredidas no âmbito de seu lar e, por temor
ou vergonha, não comunicavam o fato às autoridades. Das poucas que se decidiam
a fazê-lo, muitas voltavam atrás e se retratavam, seja por verificarem que nada
se fazia para protegê-las ou por terem sido novamente ameaçadas ou agredidas
pelo agente. Daí a razão de ser do art. 16 (que estabelece a necessidade de
confirmação em juízo da retratação da representação nos crimes de ação penal
pública a ela condicionada) e das medidas protetivas dos arts.
Nos
poucos casos em que o fato era comunicado à Polícia e a ofendida não recuava em
sua atitude, aplicava-se a Lei n. 9.099/95 e, sendo o ofensor primário e de
bons antecedentes, recebia uma proposta de transação penal, muitas vezes
resumida ao pagamento de valores em dinheiro a entidades ou à entrega de cestas
básicas. Ou seja, o autor do fato desembolsava uma quantia em dinheiro e se via
livre da acusação, retornando ao lar para conviver com a ofendida. Por este
motivo é que não se permitem “aplicação,
nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta
básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de
multa” (art. 17 da Lei).
Pois
bem. O art. 41 da Lei, objeto central da discussão trazida neste processo,
coloca-se na mesma linha de Política Criminal dos dispositivos acima
mencionados, consistente em tratar com severidade infrações relacionadas com
violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Parece-nos,
aliás, que agiu bem o legislador. Essa atitude coaduna-se com a moderna
concepção do princípio da
proporcionalidade.
Em
sua concepção originária, a proporcionalidade fora concebida como limite ao
poder estatal em face da esfera individual dos particulares; tratava-se de
estabelecer uma relação de equilíbrio entre o “meio” e o “fim”, ou seja, entre
o objetivo que a norma procurava alcançar e os meios dos quais ela se valia.
Sua origem normativa repousa na Carta
Magna de 1215, nos itens 20 e 21,
quando dizia que: “For a trivial offence,
a free man shall be fined only in proportion to the degree of his offence...”;
“Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the
gravity of their offence”.
Montesquieu e Beccaria
também desenvolveram o conceito de proporcionalidade, o último, como é cediço,
o fez no âmbito do Direito Penal.
A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, declara que: “a lei não
deve estabelecer outras penas que não as estrita e evidentemente necessárias”
(art. 8º).
A evolução da proporcionalidade deve-se muito
à contribuição de países ocidentais no pós-guerra, referentemente à vedação de
arbitrariedade.
Mais
recentemente, todavia, se tem admitido outra faceta do princípio: a proibição
de proteção deficiente (Untermassverbot), cuja dignidade constitucional
foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional da Alemanha.
A
proibição de proteção deficiente deve ser um “recurso auxiliar” para
determinação da medida do dever de prestação legislativa, estabelecendo-se um padrão
mínimo das medidas estatais do qual não se pode abrir mão, sob pena de
afronta à Constituição. Nesse sentido, a obra de LUCIANO FELDENS, intitulada “A
Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas
penais” (Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005).
Diante
do que se expôs, pode-se concluir que o rigor imprimido pela Lei n. 11.340/06,
a qual, entre outras disposições, afastou do alcance das infrações penais
ligadas à violência doméstica ou familiar contra a mulher os dispositivos da
Lei n. 9.099/95, afina-se com o princípio da proporcionalidade, pois visa a
evitar a proteção (material e processual) deficiente à ofendida que vigorava
até então.
GUILHERME
SOUZA NUCCI, em sua obra Leis Penais e
Processuais Penais Comentadas (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2a
ed.) chega a semelhante conclusão:
“…o art. 41, da Lei n. 11.340/2006, pode estipular outra exceção,
agora para restringir o alcance da Lei n. 9.099/95. Na realidade, com outras
palavras, firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher não
são de menor potencial ofensivo, pouco importando o quantum da pena, motivo pelo qual não se submetem ao disposto na
Lei n. 9.099/95, afastando, inclusive, o benefício da suspensão condicional do
processo, previsto no art. 89 da referida Lei do JECRIM. Embora severa, a disposição do art. 41, em comento, é constitucional”
(p. 1.061; grifo nosso).
Deve-se
ponderar, por derradeiro, sobre eventual argumento de que a
inconstitucionalidade residiria na outorga de tratamento jurídico diferenciado
por conta do gênero, também não podendo prevalecer, com a devida vênia.
Como
destaca MARIA BERENICE DIAS, “Como tudo o que é novo gera resistência, há quem
sustente a inconstitucionalidade tanto da Lei Maria da Penha como de um punhado
de seus dispositivos na vã tentativa de impedir sua vigência ou limitar sua
eficácia” (A Lei Maria da Penha na
Justiça, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 55).
Acrescenta
a citada autora que:
“Leis voltadas a parcelas da população merecedoras de especial proteção
procuram igualar quem é desigual, o que nem de longe infringe o princípio
isonômico. (...). Aliás, é exatamente para pôr em prática o princípio
constitucional da igualdade substancial, que se impõe sejam tratados
desigualmente os desiguais. Para as diferenciações normativas serem
consideradas não discriminatórias, é indispensável que exista uma justificativa
objetiva e razoável. E justificativas não faltam para que as mulheres recebam
atenção diferenciada...” (p. 55-56).
De
fato, como pondera CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em sua clássica obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade
(São Paulo, Malheiros, 3ª ed., 10ª tir.):
“Supõe-se, habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha,
pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não
poderiam ter sido eleitos como matrizes do discrímen. Isto é, acredita-se que
determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são
insuscetíveis de serem escolhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação,
pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade.
Assim, imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas
em razão da raça, ou do sexo (...).
Então, percebe-se, o próprio ditame constitucional que embarga a
desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções
políticas, nada mais faz do que colocar em evidência certos traços que não
podem, por razões preconceituosas mais comuns em certa época ou meio, ser
tomados gratuitamente como ratio fundamentadora
de discrímen.” (p. 15, 17-18).
O
consagrado jurista, então, propugna três critérios para se avaliar se o
elemento discriminatório contido na Lei se coaduna com a Constituição Federal:
1) a identificação do discrímen; 2) a correlação lógica entre este e a disparidade
no tratamento jurídico diferenciado; 3) a consonância desta correlação lógica
com “os interesses absorvidos no sistema constitucional”.
Na
hipótese em estudo, o fator de discriminação é o sexo da vítima. O diferenciado
tratamento conferido pela Lei guarda correspondência lógica, porquanto visa à
proteção não-deficiente da mulher fragilizada em função da violência doméstica
e familiar. Tal correlação lógica encontra total compatibilidade com os
interesses absorvidos no sistema constitucional, notadamente com a proibição de
proteção deficiente e com compromissos assumidos pelo Brasil
Não
se pode olvidar que o Brasil, no ano de 2001, sofreu condenação junto à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington (EEUU),
ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), justamente por conta de
omissão das autoridades nacionais com relação ao “Caso Maria da Penha”.
Diante
do exposto, é forçoso reconhecer a plena compatibilidade da Lei n. 11.340/06
com a Constituição Federal e com os Tratados Internacionais suso citados, de
modo que válido o óbice contido no art. 41 da Lei Maria da Penha.
Em
tais circunstancias, o parecer é no sentido de que seja proclamada a
constitucionalidade do dispositivo legal questionado e, publicadas as
conclusões do acórdão, sejam os autos ser devolvidos ao Colendo Órgão judicante
que suscitou o incidente, para apreciar a causa, nos exatos termos do art. 658
do Regimento Interno do TJSP.
São Paulo, 21 de maio de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos –
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