Parecer
Autos nº. 179.281-0/3
Suscitante: 15ª. Câmara de Direito Público
Objeto: Arts.
Ementa: 1) Arts.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se
de Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta Câmara de Direito Público do
Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 833.429-5/5-00,
que negou provimento ao recurso e determinou a remessa dos autos, para
distribuição, ao Excelso Órgão Especial.
Ocorre
que o Acórdão deliberou pela não aplicação da legislação impugnada, negou provimento ao recurso e, por
força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, determinou a
remessa dos autos para serem distribuídos perante o Órgão Especial do Egrégio
Tribunal de Justiça.
É
o breve relatório.
Preliminarmente.
Da nulidade do V. Acórdão.
Antes
do órgão fracionário deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para
provê-lo ou não, há necessidade de ser instaurado o necessário Incidente de
Inconstitucionalidade, disciplinado a partir do art. 480 do CPC.
Assim,
arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, é
necessária a prévia deliberação da Câmara, que, se rejeitar a argumentação,
deverá prosseguir no julgamento e, nesse caso, negar ou dar provimento ao
recurso.
Todavia,
quando há o acolhimento da arguição de inconstitucionalidade, a Câmara
“suspende” o julgamento, isto é, não pode prosseguir no julgamento para dar ou
negar provimento ao recurso. Deve determinar a instauração do Incidente de
Inconstitucionalidade, a fim de provocar a deliberação do Pleno.
Portanto,
o v. Acórdão proferido pelo órgão fracionário, s.m.j., deve ser anulado, para
que outro seja proferido, sem que seja adentrado o exame da questão de fundo
antes da análise da questão prejudicial pelo Excelso Órgão Especial.
De
fato, é prejudicial a questão da eventual inconstitucionalidade, sendo que o
órgão competente para apreciá-la, como se disse, é o Órgão Especial, por força do
princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior.
Requer-se,
pois, seja declarada a nulidade do V. Acórdão.
Em
função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral passa a analisar o mérito, com a advertência de que o
parecer se restringe à questão prejudicial. E, no mérito, tem-se que é
inconstitucional a legislação impugnada.
Ocorre
que há flagrante incompatibilidade da norma ao disposto no artigo 160, inciso
II, e seu § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo, que incorpora,
expressamente, princípios constitucionais tributários limitadores da autonomia
das entidades políticas, consagrados no artigo 145, inciso II, e seu § 2º, da
Carta Magna, de atendimento obrigatório
pelos Municípios, por força do artigo 144, da Constituição Paulista.
Assim
dispõe a norma constitucional estadual violada:
“Art. 160. Compete ao Estado instituir:
(...)
II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
§ 2º. As taxas não poderão ter base de cálculo própria dos impostos.”
As
normas impugnadas são inconstitucionais porque instituem taxa cujo fato gerador
é serviço público geral e indivisível.
Primeiramente,
convém salientar ser incontroverso que, pela Constituição Federal, os
Municípios integram a Federação e têm garantida sua autonomia, atendidos os
princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado
(art. 29, CR). E essa autonomia é revelada pela competência dos Municípios para
legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e
a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência,
dentre outras (art. 30, CR).
Entretanto,
a competência tributária dos Municípios – consubstanciada na capacidade de
instituir tributos – encontra limite nas normas da Constituição Federal
referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e seguintes, CR), que
envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra matriz dos tributos
(impostos, taxas e contribuições de melhoria).
Mesmo
reconhecendo que a Constituição da República não criou tributos, é certo que,
além de discriminar competências, ela traça a “norma padrão de incidência” de
cada um dos tributos que podem ser criados pelos entes federativos. Em outras
palavras, a Constituição da República, no art. 145, ao conferir às pessoas
políticas competência para que instituam impostos, taxas e contribuições de
melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada um
deles e vinculando o legislador ordinário.
Sobre
isso, ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA que:
“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 4º ed., pág. 257).
E
o artigo 145, II, da Constituição Federal, que traça a regra matriz das taxas -
regra que é repetida no artigo 160, II, da Constituição do Estado de São Paulo
-, dispõe que:
“Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:
II - taxas, em
razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou
potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestado ao
contribuinte ou postos a sua disposição”
Como
se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência
desse tributo uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço público
específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (cf.
GERALDO ATALIBA, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2º ed., pág. 164).
E
as taxas de serviço, por definição constitucional, são aquelas cobradas pelo
Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de
sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a
sua disposição.” Já serviço público, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO,
“é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível
diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as
vezes, sob um regime de direito público” (em Curso de Direito Administrativo”,
7º ed., pág. 399).
Entrementes,
não é qualquer serviço público que possibilita a tributação por via de taxa,
mas apenas o serviço público específico e divisível, em contraste com o serviço
público geral e indivisível, este passível de tributação apenas pela via do
imposto. É o que ensina o já citado ROQUE ANTONIO CARRAZZA, nos seguintes
termos:
“Os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados “uti universi”, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados “uti singuli”. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 12.º ed., pág. 448).
De
fato, essa categoria jurídica, tanto no Brasil como no exterior, sempre foi
“uma técnica fiscal de repartição da despesa com um serviço público especial e
mensurável pelo grupo restrito de pessoas que se aproveitam de tal serviço, ou
o provocaram ou o têm ao seu dispor” (cf. ALIOMAR BALEEIRO, em “Direito
Tributário Brasileiro”, 10ª ed., 1985, Forense, p.328). Exatamente por isso,
EDWIN SELIGMAN enfatiza: “A característica essencial da taxa é a existência de
um benefício especial mensurável, ao mesmo tempo que um interesse público
predominante; a ausência de interesse público faz do pagamento um preço e a
ausência do benefício especial faz dele um imposto” (em “Essays in Taxation”,
1931, p. 431, “apud” BILAC PINTO, “Estudos de Direito Público”, ed. Forense, 1953,
p.162).
Diante
disso, inegável que o Município de Marília extrapolou os limites e parâmetros
constitucionais ao instituir a Taxa de Conservação impugnada, cujo fato gerador
é serviço público geral e indivisível, que beneficia um número indeterminado (ou,
pelo menos, indeterminável) de pessoas, serviços que não oferecem “benefício
especial” aos contribuintes 'eleitos' pela lei.
Ademais,
não basta que a lei instituidora de uma taxa afirme que
esta se destina a custear um serviço prestado ao contribuinte ou fruível
por este: também é indispensável que o benefício possa
ser quantificado em relação a cada contribuinte. Nesse sentido, já
decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que “o benefício especial objetivo,
mensurável é condição essencial para que o tributo seja conceituado como taxa”
(STF, RE 72.374-ES, RDA, 110-212, rel. Ministro Luiz Gallotti).
Por
fim, como restou consignado no V. Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta
Câmara de Direito Público, o STF, de fato, tem proclamado a inconstitucionalidade
da taxa questionada na presente ação:
TRIBUTÁRIO. TAXA DE CONSERVAÇÃO E SERVIÇOS DE ESTRADAS DE RODAGEM. ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º e 6.º DA LEI N.º 3.133/89, DO MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA/SP. INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 145, II, e § 2.º, DA CARTA MAGNA. Não se tratando de serviço público específico e divisível, referido apenas aos contribuintes lindeiros que utilizam efetiva ou potencialmente as estradas, não pode ser remunerado por meio de taxa, cuja base de cálculo, ademais, identifica-se com a de imposto, incidindo em flagrante inconstitucionalidade, conforme precedentes da Corte. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 3.133, de 27/06/89, do Município de Araçatuba/SP (RExt n. 259.889/SP, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento: 07/03/2002, Tribunal Pleno, DJ de 19-04-2002, p. 62).
Em
tais circunstancias, o parecer é no sentido da decretação da nulidade do v.
Acórdão ou, se assim não se entender, que seja reconhecida a inconstitucionalidade
dos arts.
São Paulo, 18 de junho de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
jesp