Autos nº 182.013.0/9-00
Suscitante: Décima Quinta Câmara de Direito Público
Objeto da impugnação: Arts. 321 a 332 da Lei Complementar nº 158,
de 29 de dezembro de 1997, do município de Marília
Ementa: 1) Arts.
321 a 332 da Lei Complementar n. 158, de 29 de dezembro de 1997, do município
de Marília, que instituem a cobrança da Taxa de Conservação e serviços de
Estradas Municipais; 2) Inconstitucionalidade
material; 3)
Violação ao art. 145, II, e § 2.º, da Constituição Federal, aplicável aos
Municípios por força do art. 144 da Constituição Estadual; afronta direta ao
art. 160, II, da Constituição Paulista; 4) Parecer
pela decretação da inconstitucionalidade, se superada preliminar de nulidade
do V. Acórdão. |
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
Trata-se
de Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta Câmara de Direito Público do
Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 833.040-5/0-00,
que negou provimento ao recurso e determinou a remessa dos autos, para
distribuição, ao Excelso Órgão Especial.
Ocorre
que o Acórdão deliberou pela não aplicação da legislação impugnada, negou
provimento ao recurso e, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo
Tribunal Federal, determinou a remessa dos autos para serem distribuídos
perante o Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça.
É
o breve relatório.
Preliminarmente.
Da nulidade do V. Acórdão.
Antes
do órgão fracionário deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para
provê-lo ou não, há necessidade de ser instaurado o necessário Incidente de
Inconstitucionalidade, disciplinado a partir do art. 480 do CPC.
Assim,
arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, é
necessária a prévia deliberação da Câmara, que se rejeitar a argumentação,
deverá prosseguir no julgamento e, nesse caso, negar ou dar provimento ao
recurso.
Todavia,
quando há o acolhimento da arguição de inconstitucionalidade, a Câmara
“suspende” o julgamento, isto é, não pode prosseguir no julgamento para dar ou
negar provimento ao recurso. Deve determinar a instauração do Incidente de
Inconstitucionalidade, a fim de provocar a deliberação do Pleno.
Portanto,
o V. Acórdão proferido pelo órgão fracionário, s.m.j., deve ser anulado, para
que outro seja proferido, sem que seja adentrado o exame da questão de fundo
antes da análise da questão prejudicial pelo Excelso Órgão Especial.
De
fato, é prejudicial a questão da eventual inconstitucionalidade, sendo que o
órgão competente para apreciá-la, como se disse, é o Órgão Especial, por força do
princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior.
Requer-se,
pois, seja declarada a nulidade do V. Acórdão.
Em
função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral passa a analisar o mérito, com a advertência de que o
parecer se restringe à questão prejudicial. E, no mérito, tem-se que é
inconstitucional a legislação impugnada.
Ocorre
que há flagrante ao disposto no artigo 160, inciso II, e seu § 2º, da
Constituição do Estado de São Paulo, que incorpora, expressamente, princípios
constitucionais tributários limitadores da autonomia das entidades políticas,
consagrados no artigo 145, inciso II, e seu § 2º, da Carta Magna,
de atendimento obrigatório pelos Municípios, por força do artigo 144, da
Constituição Paulista.
Assim
dispõe a norma constitucional estadual violada:
“Art. 160. Compete ao Estado
instituir:
(...)
II - taxas em razão do
exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de
serviços públicos de suas atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao
contribuinte ou postos a sua disposição;
§ 2º. As taxas não poderão ter
base de cálculo própria dos impostos.”
Os
dispositivos impugnados são inconstitucionais porque instituem taxa cujo fato gerador é serviço público geral e
indivisível.
Primeiramente,
convém salientar ser incontroverso que, pela Constituição Federal, os
Municípios integram a Federação e têm garantida sua autonomia, atendidos os
princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado
(art. 29, CR). E essa autonomia é revelada pela competência dos Municípios para
legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e
a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência,
dentre outras (art. 30, CR).
Entretanto,
a competência tributária dos Municípios – consubstanciada na capacidade de
instituir tributos – encontra limite nas normas da Constituição Federal
referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e seguintes, CR), que
envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra matriz dos tributos
(impostos, taxas e contribuições de melhoria).
Mesmo
reconhecendo que a Constituição da República não criou tributos, é certo que,
além de discriminar competências, ela traça a “norma padrão de incidência” de
cada um dos tributos que podem ser criados pelos entes federativos. Em outras
palavras, a Constituição da República, no art. 145, ao conferir às pessoas
políticas competência para que instituam impostos, taxas e contribuições de
melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada um
deles e vinculando o legislador ordinário.
Sobre
isso, ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA que:
“A Constituição, ao
discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de
modo implícito e com certa margem de
liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo
genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a
hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base
de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de
tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária,
deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na
Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto
cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (em “Curso de
Direito Constitucional Tributário”, 4º ed., pág. 257).
E
o artigo 145, II, da Constituição Federal, que traça a regra matriz das taxas -
regra que é repetida no artigo 160, II, da Constituição do Estado de São Paulo
-, dispõe que:
“Art. 145 - A União, os estados,
o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:
II - taxas, em razão do
exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de
serviços públicos específicos e divisíveis, prestado ao contribuinte ou postos
a sua disposição”
Como
se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência
desse tributo uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço público
específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (cf.
GERALDO ATALIBA, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2º ed., pág. 164).
E
as taxas de serviço, por definição constitucional, são aquelas cobradas pelo
Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de
sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a
sua disposição.” Já serviço público, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO,
“é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível
diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as
vezes, sob um regime de direito público” (em Curso de Direito Administrativo”,
7º ed., pág. 399).
Entrementes,
não é qualquer serviço público que possibilita a tributação por via de taxa,
mas apenas o serviço público específico e divisível, em contraste com o serviço
público geral e indivisível, este passível de tributação apenas pela via do
imposto. É o que ensina o já citado ROQUE ANTONIO CARRAZZA, nos seguintes
termos:
“Os serviços públicos gerais,
ditos também universais, são os prestados “uti universi”, isto é,
indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo
considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável)
de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública,
de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser
custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do
Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos
específicos, também chamados de singulares, são os prestados “uti singuli”.
Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos,
determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam,
portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a
utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos
serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de
água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados
por meio de taxas de serviço” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”,
12.º ed., pág. 448).
De
fato, essa categoria jurídica, tanto no
Brasil como no
exterior, sempre foi “uma técnica fiscal de repartição da despesa com um
serviço público especial e mensurável pelo grupo restrito de pessoas que se aproveitam
de tal serviço, ou o provocaram ou o têm ao seu dispor” (cf. ALIOMAR BALEEIRO, em “Direito Tributário Brasileiro”,
10ª ed., 1985, Forense, p.328). Exatamente por isso, EDWIN SELIGMAN enfatiza:
“A característica essencial da taxa é a existência de um benefício especial
mensurável, ao mesmo tempo que um interesse público predominante; a ausência de
interesse público faz do pagamento um preço e a ausência do benefício especial
faz dele um imposto” (em “Essays in Taxation”, 1931, p. 431, “apud” BILAC
PINTO, “Estudos de Direito Público”, ed. Forense, 1953, p.162).
Diante
disso, inegável que o Município de Marília extrapolou os limites e parâmetros
constitucionais ao instituir a Taxa de Conservação impugnada, cujo fato gerador
é serviço público geral e indivisível, que beneficia um número indeterminado
(ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas, serviços que não oferecem
“benefício especial” aos contribuintes 'eleitos' pela lei.
Ademais,
não basta que a lei instituidora de uma taxa afirme que esta se destina a custear um serviço prestado
ao contribuinte ou fruível por este:
também é indispensável que o benefício
possa ser quantificado em relação
a cada contribuinte. Nesse sentido, já decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que
“o benefício especial objetivo, mensurável é condição essencial para que o
tributo seja conceituado como taxa”
(STF, RE 72.374-ES, RDA, 110-212, rel. Ministro Luiz Gallotti).
Por
fim, como restou consignado no V. Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta
Câmara de Direito Público, o STF, de fato, tem proclamado a
inconstitucionalidade da taxa questionada na presente ação:
TRIBUTÁRIO.
TAXA DE CONSERVAÇÃO E SERVIÇOS DE ESTRADAS DE RODAGEM. ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º e
6.º DA LEI N.º 3.133/89, DO MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA/SP. INCONSTITUCIONALIDADE.
ARTIGO 145, II, e § 2.º, DA CARTA MAGNA. Não se tratando de serviço público
específico e divisível, referido apenas aos contribuintes lindeiros que
utilizam efetiva ou potencialmente as estradas, não pode ser remunerado por
meio de taxa, cuja base de cálculo, ademais, identifica-se com a de imposto,
incidindo em flagrante inconstitucionalidade, conforme precedentes da Corte.
Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a
inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 3.133, de
27/06/89, do Município de Araçatuba/SP (RExt n.
259.889/SP, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento: 07/03/2002, Tribunal Pleno, DJ de 19-04-2002,
p. 62).
Em
tais circunstancias, o parecer é no sentido da decretação da nulidade do V.
Acórdão ou, se assim não se entender, que seja reconhecida a inconstitucionalidade
dos arts. 321 a 332 da Lei Complementar n. 158, de 29 de dezembro de 1997, do
município de Marília.
São Paulo, 20 de agosto de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos –
/md