Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 185.082-0/4

Suscitante: 6ª. Câmara de Direito Criminal

Objeto: art. 28 da Lei nº 11.343/06

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, suscitado pela 6ª. Câmara de Direito Criminal. Órgão fracionário que, diante da questão constitucional, não suspende o julgamento e decide o mérito do recurso, absolvendo a apelada. Acórdão que se reputa nulo a teor da Súmula Vinculante nº 10 do STF. No mérito, tem-se que a criminalização do porte de droga se justifica pela lesão potencial à saúde pública, notando-se que o tipo penal não incrimina o consumo propriamente dito, mas condutas que gravitam em torno dele, como os atos de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo. Direito à intimidade do usuário que cede ao interesse coletivo de proteção à saúde pública. Parecer pela rejeição da argüição de inconstitucionalidade.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 6ª Câmara de Direito Criminal, nos autos da Apelação nº 993.07.126739-2, interposta pelo Ministério Público. Nesse processo, (...) figura como apelada.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 28 da Lei nº 11.343/06.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente

Pela regra do artigo 480 do CPC, o órgão fracionário não deve deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para provê-lo ou não, diante da argüição da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público.

Com efeito, acolhida a argüição, a Câmara “suspende” o julgamento, isto é, não pode dar ou negar provimento ao recurso. Nessa fase, determina a instauração do incidente de inconstitucionalidade, a fim de submeter a questão constitucional ao Órgão Especial.

No caso dos autos, todavia, o órgão fracionário não se conteve diante da eventual inconstitucionalidade do dispositivo legal aplicável ao caso e julgou o mérito. Lê-se no v. Acórdão que, por maioria de votos, foi negado provimento ao recurso, absolvendo-se a recorrida, forte no artigo 386, III, do Código de Processo Penal, vencido, em parte, o relator sorteado, que declarava a nulidade do processo.

A Decisão é nula, a teor da Súmula Vinculante nº 10 do STF, devendo assim ser declarada pelo C. Órgão Especial.

Mérito

Em função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral de Justiça passa a analisar o mérito, com a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial.

No caso, a C. 6ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo cogita da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, tendo consignado que “a criminalização primária do porte de entorpecente para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil”.

Esse entendimento, data venia, não prospera.

A criminalização do porte de droga está plenamente justificada pela lesão potencial ao bem jurídico tutelado, isto é, a saúde pública. O crime se aperfeiçoa, independentemente do resultado danoso, para coibir a difusão do uso de entorpecente, não pelo prejuízo que este possa causar individualmente ao usuário, mas pelo mal que a expansão do consumo de drogas pode acarretar à coletividade.

Citando pronunciamento da Corte Constitucional Italiana, Vicente Greco Filho nos convence de que os malefícios do porte de entorpecentes transcendem ao indivíduo, interessando à sociedade. Pela sua clareza, transcreve-se a lição:

“A punição do simples porte se insere, como parte no todo, no quadro geral e no ciclo operativo completo, da luta, com meios legais, em todas as frentes, contra o alto poder destrutivo do uso de estupefacientes e contra a difusão de seu contágio que alcançam o nível de manifestações criminosas tais que suscitam, em medida cada vez mais preocupante, a perturbação da ordem.

...

A razão jurídica da punição daquele que adquire, guarda ou traz consigo para uso próprio é o perigo social que sua conduta representa. Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo, porque é fato decisivo na difusão dos tóxicos. Já vimos ao abordar a psicodinâmica do vício que o toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno” (Vicente Greco Filho. Tóxicos, Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 11ª ed., 1996, p. 112-113)

Na esteira desse raciocínio, Damásio explica que “a lei não pune, com efeito, o consumo da droga” e nos adverte que, “se o fizesse, violaria o princípio da alteridade e o tipo seria inconstitucional”. Incrimina-se, segundo o autor, “o ato de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo (para consumo pessoal) drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (Damásio de Jesus. Lei antidrogas anotada: comentários à Lei n. 11.343/2006. 9ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 40, grifos do original). Tais comportamentos, conclui, vulneram efetivamente o bem tutelado pela norma incriminadora:

“A essência do delito de porte de droga para uso próprio se encontra na lesão ao interesse jurídico da coletividade, que se consubstancia na própria saúde pública, não pertencendo aos tipos incriminadores a lesão a pessoas que compõem o corpo social. Tomando em consideração o respeito que deve existir entre os membros da coletividade no que tange à proteção da saúde pública, o portador da droga lesiona o bem jurídico difuso, i. e., causa um dano massivo, uma lesão ao interesse estatal de que o sistema social funcione normalmente. O delito por ele cometido decorre da “falta de respeito com a pretensão estatal de vigilância” do nível da saúde pública (Schmidhauser), fato que não se confunde com o uso da droga, evento que se passa na esfera íntima do cidadão. Como se nota, não é necessário socorrer-se da tese do perigo abstrato, uma vez que, partindo-se do conceito de interesse difuso, pode-se construir uma teoria adequada à solução do tema. Essa lesão já conduz à existência do crime, dispensando a demonstração de ter causado perigo concreto ou dano efetivo a interesses jurídicos individuais, se houve invasão da sua esfera pessoal ou se o fato causou ou não perigo concreto a terceiros” (Damásio de Jesus. Portar droga para uso próprio é crime? Revista Jus Vigilantibus. 29 Mai. 2008. Disponível em http://jusvi.com/artigos/33669. Acesso em 17 Out. 2009).

A C. 6ª. Câmara Criminal também divisa a inconstitucionalidade pela ofensa à privacidade individual (art. 5º, X, da CF). Nesse aspecto, está ressuscitando vetusta tese lançada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS, ACrim 687043661, RJTJRS 127/99) sobre o revogado art. 16 da Lei nº 6.368/76, que acabou sendo superada, com melhores argumentos, por sucessivos julgados da Corte Paulista (TJSP, ACrim 72.037, RT 650/273; ACrim 151.129, 5ª. Câm., rel. Des. Dante Busana, JTJ 150/307 e RT 702/334; TJSP, RT 666/292; sobre a superação da tese da inconstitucionalidade, vide: TJSP, ACrim 151.129, 5ª. Câm., rel. Des. Dante Busana, RT 702/334 e TJSP, RT 819/581).

Em recentíssimo julgado, aliás, a 10ª. Câmara de Direito Criminal reafirmou a orientação prevalente, agora dizendo especificamente sobre o art. 28 da Lei nº 11.343/06:

“Cumpre esclarecer que o crime descrito no artigo 28 da Lei de Drogas não pune o uso de entorpecentes, e sim as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo referida substância.

Sendo assim, quando a legislação ordinária tipifica e pune as condutas acima descritas, não o faz em ofensa aos princípios constitucionais da intimidade e da vida privada. A proibição recai não sobre o uso, mas sim sobre aqueles comportamentos que afrontam a saúde pública e que, portanto, prejudicam os interesses da coletividade.

Nesse sentido merece ser lido o respeitoso julgado:

‘INCONSTITUCIONALIDADE – Artigo 16 da Lei nº 6.368/76 – Porte de tóxico para uso próprio – Violação ao princípio constitucional garantidor da intimidade e vida privada – Inocorrência – Usuário que coloca em perigo a saúde pública – Liberdade individual relativa sujeita ao interesse comum – Inconstitucionalidade afastada. Sempre que qualquer conduta individual prejudique o interesse público, a sociedade tem autoridade sobre ela, para coarctar a soberania do indivíduo sobre a própria intimidade ou vida privada (Ap. Crim 192.793-3, Ribeirão Preto, 4ª. Câm. Crim., Rel. Bittencourt Rodrigues, 27.12.1995, v.u.)’

Além disso, não se pode opor o direito à intimidade de um cidadão – usuário – ao interesse coletivo de proteção à saúde pública, que é o bem jurídico tutelado pela referida lei.

É certo também que a Constituição, ao proteger o direito à vida privada e à intimidade, não o fez com o escopo de descriminar condutas proibidas pela legislação ordinária ...” (TJSP, ACrim 990.09.052059-0, rel. Des. Rachid Vaz de Almeida, j. 17.09.2009)

O Supremo Tribunal Federal inclina-se pela constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, na esteira da jurisprudência consolidada sobre o art. 16 da Lei nº 6.368/76. Em recente pronunciamento (26 de junho de 2009), negou seguimento a agravo de instrumento contra decisão obstativa de recurso extraordinário criminal, interposto com fundamento na alínea “a” do inciso III do art. 102 da Constituição Federal, contra acórdão de Turma Recursal Criminal da Comarca de Caxias do Sul-RS, cuja ementa era a seguinte:

“APELAÇÃO CRIME. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI Nº 11.343/2006. Constitucionalidade. A quantidade de entorpecente apreendida com o acusado, já presume a ameaça a bem jurídico que extrapola a individualidade estrita do agente possuidor. Materialidade e autoria comprovadas. Conduta típica. Pena corretamente aplicada. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.”

O recurso foi denegado porque o dispositivo não havia sido prequestionado. Aplicaram-se as Súmulas 282 e 356. De toda sorte, o Min. CARLOS BRITTO lembrou que:

“quanto à atipicidade da conduta, o acórdão não destoa da jurisprudência desta Corte. Confira-se, na parte que interessa, a ementa da Questão de Ordem no RE 430.105, sob a relatoria do ministro Sepúlveda Pertence: “I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 – nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo ‘rigor técnico’, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado ‘Dos Crimes e das Penas’, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão ‘reincidência’, também não se pode emprestar um sentido ‘popular’, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C. Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 se seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de ‘despenalização’, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C. Penal, art. 107). [...]”. 7. No mesmo sentido, veja-se o AI 743.710, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski” (AI 754940/RS – rel. Min. CARLOS BRITTO, j. 26/06/2009, DJe-144, Div. 31/07/2009, Public. 03/08/2009).

Em outras palavras, a proteção constitucional da intimidade não serve de escudo para a prática de infração penal. A opção pessoal pelo consumo de determinadas substâncias pode, realmente, ser adotada, mas encontra na lei o seu limite. E, se a conduta põe em perigo um interesse social, como a saúde pública, a criminalização é legítima.

Não se pode perder de vista que os direitos fundamentais citados no v. Acórdão são dotados de dupla dimensionalidade: uma subjetiva, de cunho individualista, e outra objetiva, que expressa os valores da comunidade política. Na realização desses direitos fundamentais, sempre será preciso harmonizar os interesses individuais com os interesses da comunidade (interesse público) ou de parte dela (interesse coletivo)(Willis Santiago Guerra Filho. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2ª. ed. rev. e ampl., São Paulo: Celso Bastos, 2001, p. 66), pois, do contrário, negam-se os direitos difusos, que também desfrutam da proteção constitucional.

Desse modo, a punição daquele que porta droga proibida, mesmo que a tenha para o consumo próprio, não conflita com a Constituição.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração de nulidade do v. Acórdão, para que outro seja proferido, e, no mérito, pela rejeição da argüição de inconstitucionalidade.

 

São Paulo, 19 de outubro de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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