Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 185.635-0/9-00

12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Apelante: Caixa Beneficente da Polícia Militar do Estado de São Paulo (CBPM)

Apelado: (...) e outros

Objeto: Lei Estadual nº 452, de 02 de outubro de 1974

 

Ementa:

1)Incidente de inconstitucionalidade. Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974, que institui a Caixa Beneficente da Polícia Militar do Estado de São Paulo e estabelece os regimes de pensão e de assistência médico-hospitalar e odontológica. Discussão a respeito da obrigatoriedade de contribuição para fins de assistência médico-hospitalar e odontológica, a cargo da “Cruz Azul de São Paulo”.

2) Controle incidental de inconstitucionalidade pode ser exercido em relação a normas emanadas anteriormente à Constituição Federal de 1988.

3) Inconstitucionalidade reconhecida. Facultatividade da contribuição para fins de assistência médica. O servidor deve ter o direito de optar entre serviços de assistência médico-hospitalar, inclusive dos planos privados de saúde existentes no mercado, sob pena de colisão com o art. 149, § 1º, da Constituição Federal de 1988. Precedentes: Apelação Cível n° 139.284.5/2-00, 4ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Sérgio Godoy, j. 11/12/03; Apelação Cível n° 149.117.5/0-00, 3a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Magalhães Coelho, j . 06/04/04; Agravo de Instrumento n° 421.344.5/8-00, 5a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Xavier de Aquino, j . 11/08/05; Apelação Cível n° 226.515.5/7-00, 10a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Antônio VillenJ. 23/03/06.

4)Parecer no sentido da admissão do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos art. 30, 31 e 32 da Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

1) Relatório.

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos termos do v. acórdão de fls. 237/242, rel. Des. Edson Ferreira da Silva, proferido nos autos da apelação nº 185.635-0/9-00, na sessão de julgamento realizada em 18.02.2009.

Por força da referida decisão, foi remetido o feito a esse C. Órgão Especial, para apreciação quanto à possível inconstitucionalidade da Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974.

É o relato do essencial.

2) Dos dispositivos legais questionados

Para maior clareza, é importante transcrever os dispositivos legais combatidos:

TÍTULO III

Do Regime de Assistência Médico-Hospitalar e Odontológica

CAPÍTULO ÚNICO

Artigo 30 — A assistência médico-hospitalar e odontológica, aos beneficiários dos contribuintes da CBPM, será prestada pela Cruz Azul de São Paulo, nos termos desta lei e em conformidade com convênio a ser firmado com essa entidade, no prazo de 30 (trinta) dias, contados a partir da data da vigência desta mesma lei com a prévia aprovação do Secretário da Segurança Pública.

§ 1º — Do convênio a que alude este artigo deverá constar cláusula mediante a qual a CBPM se comprometa a contribuir, para a Cruz Azul de São Paulo, com importância que compense a deficiência que se verificar entre o valor do produto da arrecadação da taxa a que se refere este artigo e o do custo da manutenção dos serviços de assistência prestada aos dependentes de seus contribuintes. (Suspensa a eficácia pelo Decreto n.º 46.538/02).

§ 2º — O custo do serviço será comprovado pela Cruz Azul de São Paulo pela forma que for convencionada.

Artigo 31 — A taxa de contribuição para a assistência médico-hospitalar e odontológica, é de 2% (dois por cento) da respectiva retribuição-base definida no artigo 24 desta lei.

§ 1º — A taxa de contribuição dos pensionistas,da CBPM de 1% (um por cento) do valor da pensão que estejam percebendo.

§ 2º — As taxas de contribuição de que trata este artigo serão recolhidas diretamente à Cruz Azul de São Paulo. (Lei 316/83).

Artigo 32 — São contribuintes obrigatórios:

I — os contribuintes inscritos, obrigatoriamente, para efeito de pensão;

II — os que obtenham reinscrição, nas condições previstas no inciso I do artigo 7º;

III — os servidores civis da CBPM que optarem pelo seu regime de pensão;

IV — os inativos da Polícia Militar e os pensionistas da CBPM. (Lei n.º 1069/76).

3) Juízo de admissibilidade do incidente.

Como se sabe, o procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade tem por escopo, em última análise, a observância da denominada “cláusula de reserva de plenário”, prevista no art. 97 da CR/88, pela qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Essa regra define a competência funcional e absoluta do Tribunal (Pleno ou Órgão Especial), bem como o quorum mínimo para a deliberação, quando for o caso de reconhecimento de incompatibilidade entre determinado ato normativo e o texto constitucional.

Em razão disso é que o Código de Processo Civil estabelece o procedimento previsto nos seus art. 480 a 482.

O procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade é dividido em três fases: (a) a primeira, com a manifestação do órgão colegiado fracionário, admitindo o recurso e determinando a instauração do incidente por vislumbrar a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade do ato normativo; (b) a segunda perante o Tribunal ou respectivo Órgão Especial, para exame efetivo da questão constitucional; (c) a terceira, com o retorno dos autos ao órgão fracionário, para conclusão do julgamento do recurso, com aplicação do direito à espécie.

Isso decorre expressamente do CPC, na medida em que: (a) o art. 481 caput prevê que se for acolhida, no órgão fracionário, a alegação de inconstitucionalidade, “será lavrado acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno”; e (b) tratar o art. 482 e §§ do procedimento relativo ao julgamento do incidente no Tribunal Pleno ou Órgão Especial.

Esse sistema estabelece, nesse caso, o julgamento como um ato complexo, na medida em que o resultado final será formado pela manifestação de vontade de diferentes órgãos, todos eles com competência funcional e absoluta: (a) primeiro, a deliberação do colegiado fracionário, imprescindível à instauração do incidente; (b) depois, a deliberação do Tribunal, que se limita a examinar a quaestio iuris consubstanciada na discussão constitucional; (c) por último, o retorno dos autos com o acórdão relativo ao incidente ao colegiado fracionário, a quem caberá concluir o julgamento.

No caso ora em análise, muito embora a Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974, seja anterior à Constituição Federal de 1988, cabível a análise de sua constitucionalidade em via incidental. Assenta a doutrina que “o controle incidental de inconstitucionalidade pode ser exercido em relação a normas emanadas dos três níveis de poder, de qualquer hierarquia, inclusive as anteriores à Constituição”(BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 92). Logo, a compatibilidade ou não de uma norma precedente com o sistema constitucional em vigor somente poderá ser aferida em controle incidental.

4) Mérito

O incidente de inconstitucionalidade deve ser conhecido e merece acolhimento.

De fato, a Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974, que institui a Caixa Beneficente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, estabelece os regimes de pensão e de assistência médico-hospitalar e odontológica. Discute-se nos autos a questão da compulsoriedade da contribuição para fins de assistência médico-hospitalar e odontológica, a cargo da “Cruz Azul de São Paulo”.

Conforme já sinalizado pelo Acórdão proferido pela 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, da lavra do Des. Edson Ferreira, proferido nos autos da apelação nº 185.662-0/1-00, na sessão de julgamento realizada em 01.04.2009, a obrigatoriedade para a contribuição médico-hospital não se compadece com o atual sistema constitucional, vale dizer:

“O servidor deve ter o direito de optar entre este e outros serviços de assistência médico-hospitalar, inclusive dos planos privados de saúde existentes no mercado, e de somente pagar pelo serviço de sua escolha.

A Constituição divide a seguridade social em saúde, previdência social e assistência social e só impõe a filiação em caráter obrigatório e contributivo à previdência social, que não engloba assistência à saúde.

É certo que o art. 195 dispõe que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais, inclusive do trabalhador.

Mas no que tange à saúde, tais contribuições sociais, inclusive do trabalhador, só podem ser direcionadas para o custeio do Sistema Único de Saúde (art. 198, § 1º), não cabendo a instituição de contribuições especiais, com o mesmo caráter obrigatório, para o custeio de assistência à saúde que os entes federados entendam de organizar para os seus servidores”(Apelação Cível nº 185.662-0/1-00).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgado de 07 de outubro de 2009 (Apelação Cível com Revisão n° 929.102-5/8-00,  Oitava Câmara de Direito Público), pronunciou-se pela facultatividade da contribuição para fins de assistência médica, reconhecendo, pois, a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974, que impõe referida exação. Imperativo trazer à colação, também, mencionado julgado:

“Impende considerar que a Cruz Azul de São Paulo é entidade beneficente, de natureza privada, voltada à prestação de serviços médicos e odontológicos, que atende os beneficiários da Caixa da Polícia Militar, por força do convênio celebrado.

Desse modo, qualquer contribuição para esse sistema de assistência à saúde deve ser facultativa, não podendo a citada Lei n° 452/74 obrigar os autores a financiar tais serviços.

Forçoso reconhecer que os dispositivos legais invocados pelas rés não foram recepcionados pela Carta Magna de 1988, razão pela qual a contribuição em causa apenas pode ser exigida daqueles que desejarem receber a assistência oferecida.

Ora, na redação original do artigo 149, parágrafo único, da CF/88, estava prevista a competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios para a instituição de contribuição dos servidores para o custeio de sistemas de previdência e assistência social.

Destacava-se, então, que, em havendo nítida diferenciação na Carta Maior entre previdência, assistência e saúde, conforme se vê do Capítulo que trata da Seguridade Social, não estava autorizada a instituição de contribuição compulsória para financiamento de serviços de saúde prestados ao servidor.

Com a Emenda Constitucional n° 41, de 19 de dezembro de 2003, ocorreu melhor explicitação do preceituado, definindo agora o §1° do citado artigo 149 que:

"Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em beneficio destes, do regime previdenciário de que trata o artigo 40, cuja alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União " (grifo nosso).

Como se vê, por injunção constitucional, é possível a instituição, em caráter obrigatório, de contribuição para o custeio do sistema de previdência social, que não alberga propriamente o sistema de saúde.

A evidência, cada ente federado pode instituir tal sistema em proveito de seus servidores, vedado, no entanto, o caráter compulsório da adesão e correspondente contribuição.

Deste modo, pode a Caixa Beneficente da Polícia Militar oferecer assistência médico-hospitalar a seus beneficiários, recebendo a contribuição prevista no citado artigo 32 da Lei 452/74; não pode, porém, obrigá-los a participar desse sistema.

Bem de ver, inclusive, que destinada a contribuição ao custeio de serviços prestados por entidade privada, a imposição da lei estadual contrasta com o disposto no artigo 5o, inciso XX, da Carta Magna, pelo qual ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.

Tal é a orientação que vem predominando na jurisprudência desta Corte (Apelação Cível n° 139.284.5/2-00, 4ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Sérgio Godoy, j. 11/12/03; Apelação Cível n° 149.117.5/0-00, 3a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Magalhães Coelho, j . 06/04/04; Agravo de Instrumento n° 421.344.5/8-00, 5a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Xavier de Aquino, j . 11/08/05; Apelação Cível n° 226.515.5/7-00, 10a Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Antônio VillenJ. 23/03/06).

Respeitados entendimentos em sentido contrário, é possível concluir que a “taxa de contribuição” para assistência médico-hospitalar e odontológica, no patamar de 2% (dois por cento) da retribuição-base definida no art. 24 da Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 2009, prevista no art. 31 do mesmo diploma legal, colide com o previsto no art. 149, § 1º, da Constituição Federal de 1988.

Com efeito: os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário. No que toca ao sistema de saúde, a contribuição, muito embora possível, deve ser facultativa, sobretudo quando se tem em mira entidade privada (Cruz Azul de São Paulo).

Nesse sentido, é o entendimento do Desembargador Antonio Carlos Malheiros:

CONTRIBUIÇÃO COMPULSÓRIA - Desconto de 2% nos vencimentos e proventos de policial militar, efetuado pela Caixa Beneficente da Polícia Militar em favor da Associação Cruz Azul, para cobertura de assistência-médica e odontológica, nos termos dos arts. 30 e 32, da Lei 452/74 - Inadmissibilidade de cobrança compulsória - Ao relacionar contribuintes "obrigatórios", referidos artigos, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 - Inteligência do art. 149, parágrafo I, da Constituição Federal – Embargos infringentes rejeitados (Embargos Infringentes n° 867.276-5/1-01).

5)Conclusão.

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade, reconhecendo-se, ademais, a inconstitucionalidade dos art. 30, 31 e 32 da Lei Estadual n. 452, de 02 de outubro de 1974, por afronta ao art. 149, §1º, da Constituição Federal de 1988.

São Paulo, 06 de novembro de 2009.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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