Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

Autos nº 185.740.0/8-00

Órgão Especial

Suscitante: 15ª Câmara de Direito Público

Apelante: Municipalidade de Santa Fé do Sul

Apelado: (...)

Objeto: inconstitucionalidade do art. 36, caput e § 1º da Lei Complementar Municipal nº 93/2003, de Santa Fé do Sul.

 

Ementa:

1)Incidente de inconstitucionalidade. Art. 36, caput e § 1º da Lei Complementar Municipal nº 93/2003, do Município de Santa Fé do Sul. Alegação de inconstitucionalidade do dispositivo legal que estabelece o valor da receita bruta como base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), quanto aos serviços notariais e de registro.

2)Inexistência de inconstitucionalidade. Previsão contida no art. 7º da Lei Complementar Federal nº 116/2003 de que a base de cálculo do ISSQN é o “preço do serviço”. Conformidade entre o art. 36, caput e § 1º da Lei Complementar Municipal nº 93/2003, e o art. 7º da Lei Complementar Federal nº 116/2006.

3)Não ocorrência de ofensa à imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, VI, a da CR/88. Dispositivo que impede a tributação de um ente federativo por outro. Hipótese em que, no ISSQN, contribuinte é o prestador do serviço (art. 5º da Lei Complementar Federal nº 116/2003). Inexistência de participação da Fazenda Estadual na relação tributária, sendo consequente a não aplicação da imunidade constitucional referida.

4)Parecer no sentido do conhecimento do incidente, mas pela constitucionalidade da norma.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 15ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, nos termos do v. acórdão de fls. 128/132, rel. Des. Silva Russo, proferido nos autos da apelação cível com revisão nº 443.055-5/0-00, na sessão de julgamento realizada em 02.07.2009.

Ao suscitar a instauração do incidente, a C. 15ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça afirmou a inconstitucionalidade da do art. 36, caput, e  § 1º da Lei Complementar Municipal nº 93/2003, de Santa Fé do Sul, que adota a receita bruta do ato notarial como base de cálculo para a incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), tendo em vista que parte do valor recolhido não é revertido ao serviço notarial.

Nesse sentido, confira-se o excerto transcrito a seguir, do voto do i. desembargador relator:

“(...)

          Contudo, esta receita bruta não pode servir como a grandeza do elemento tributário quantitativo, na espécie, eis que os emolumentos atinentes ao custo dos serviços notariais e de registro são integrados, não só pela remuneração reservada ao oficial delegatário, como também pela receita do Estado oriunda do processamento da arrecadação e fiscalização, pela contribuição à Carteira Previdenciária das Serventias não Oficializadas da Justiça Estadual, pelos valores destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias, bem como pelos valores destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, segundo o art. 19 da Lei Estadual nº 11.331/02.

          Nesse passo, a base de cálculo do aludido imposto deve ser apenas o valor auferido pelo oficial delegatário, daí estando excluídos, por óbvio, os demais encargos a ele não pertencentes e que possuem naturezas de taxa e contribuição.

          Com efeito, dispondo a sobredita legislação local de maneira diversa neste caso, onde se está a exigir imposto municipal, indiretamente, sobre taxas e contribuições estaduais, vislumbro sua inconstitucionalidade por afronta ao artigo 150, inciso VI, alínea ‘a’, da Carta da República.

(...)” (fls. 131)

É o relato do essencial.

O incidente de inconstitucionalidade deve ser conhecido, mas, com o devido respeito, não merece acolhimento.

Diversamente da conclusão a que chegou a C. 15ª Câmara de Direito Público, ao suscitar o incidente de inconstitucionalidade, os dispositivos questionados não se mostra inconstitucionais.

A Lei Complementar Municipal nº 93, de 19 de dezembro de 2003 (fls. 14 e ss), em conformidade com a respectiva rubrica, “Dispõe sobre a incidência e cobrança de Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza e dá outras providências” no Município de Santa Fé do Sul.

Os dispositivos questionados no incidente de inconstitucionalidade têm a seguinte redação:

“(...)

Art. 36. A base de cálculo do imposto é o preço do serviço, sobre o qual está aplicada a alíquota de 5% (cinco por cento) sobre o valor da receita bruta.

§ 1º. Considera-se preço do serviço a receita bruta a ele correspondente.

(...)

Sustenta o v. acórdão da 15ª Câmara de Direito Público, ao suscitar o incidente, que a base de cálculo deveria estar limitada à receita líquida, pois apenas esta é destinada ao prestador de serviços delegados (Notário ou Registrador), tendo em vista que o valor que sobeja, e compõe a receita bruta tem outras destinações, quais sejam: a Fazenda Estadual, o Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e complementação da receita mínima das serventias deficitárias, Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça (em decorrência da fiscalização dos serviços), entre outros, nos termos dos arts. 19 e 20 da Lei Estadual nº 11.331/2002.

Anote-se inicialmente, apenas para registro e destaque, que a constitucionalidade da tributação da atividade realizada pelas serventias extrajudiciais, instituída pela Lei Complementar Federal nº 116/2003, foi reconhecida pelo Colendo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI nº 3.089 em 13/02/2008, relator para o acórdão Min. Joaquim Barbosa, conforme ementa transcrita a seguir:

“(...)

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ITENS 21 E 21.1. DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR 116/2003. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA - ISSQN SOBRE SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. CONSTITUCIONALIDADE. Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.1 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN. Alegada violação dos arts. 145, II, 156, III, e 236, caput, da Constituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza permitiria a incidência do tributo tão-somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Ademais, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofenderia o art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º da Constituição, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados. As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva. A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas. Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente.

(...)”

É oportuno observar que a Lei Complementar Federal nº 116/2003, ao dispor sobre regras gerais relativas ao ISSQN, fixou, no art. 7º, a abrangência da base de cálculo do respectivo tributo, nos termos transcritos a seguir:

“(...)

Art. 7º. A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

(...)”

“Preço do serviço”, locução que conceitua e delimita a base de cálculo do ISSQN em conformidade com a lei nacional que trata do tema, nada mais é que o valor pago pelo usuário do serviço ao prestador.

Como salienta Hely Lopes Meirelles já na vigência da Lei Complementar Federal nº 116/2003, analisando a previsão legislativa de que a base de cálculo do ISSQN é o “preço do serviço”, é necessário ter-se em conta que “preço (...) é a quantificação monetária do valor do serviço e só surge com a sua prestação, ou melhor, com a sua venda. (...) O essencial é que resulte de atividade exercida com finalidade econômica.” Acrescenta ainda o doutrinador que são possíveis exclusões ou deduções quanto ao “preço do serviço” apenas quando houver disposição legal expressa, por tratar-se de “liberalidade (... que) não atinge outros serviços (...)” (Direito Municipal Brasileiro, 15. Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 225/226).

Sobre o tema, da mesma forma, Paulo de Barros Carvalho, com erudição peculiar, anota que “a base de cálculo é a grandeza instituída na consequência da regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária” (Curso de Direito Tributário, 14. Ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 324).

Na hipótese considerada – tributação da atividade notarial – o “preço do serviço” é o valor pago pelo usuário do serviço ao notário ou registrador, pouco importando que por força de lei estadual, parte da receita assim auferida tenha destinação a outras finalidades, que não especificamente a remuneração do titular do Cartório ou Tabelionato.

A matriz constitucional tributária, nesse caso, define a hipótese de incidência do ISSQN nos termos do art. 156, III da CR como sendo precisamente a prestação do serviço. Tal diretriz é complementada pela legislação nacional, que fixa o respectivo preço como base de cálculo.

É sobre este (preço) que o imposto incide, mostrando-se irrelevante que a legislação estadual determine destinações paralelas ao produto deste recolhimento, mormente considerando que se trata de serviço público, apenas prestado por particulares mediante delegação (art. 236 da CR), com finalidade evidentemente econômica.

A esse propósito, destacando que o preço do serviço é aquele efetivamente pago pelo respectivo usuário, já decidiu o Colendo STJ, em hipóteses que podem ser invocadas como parâmetros para análise, o que segue:

“(...)

2. A base de cálculo do ISSQN é o preço do serviço prestado, conforme o disposto no DL 406/68, art. 9º, não sendo possível deduzir, para efeito de tributação, o preço referente aos insumos

utilizados, o que corresponderia à exclusão da própria tributação. (...) (REsp 781456/MG, rel. Ministro JOSÉ DELGADO, 1ª T., j. 18/04/2006, DJ 22/05/2006 p. 166, g.n.).

(...)

TRIBUTÁRIO. ISSQN. FATO GERADOR. SERVIÇO DE TRANSPORTE DE VALORES. COBRANÇA DE PREÇO ÚNICO, NELE INCLUÍDOS OS SERVIÇOS AUXILIARES INDISPENSÁVEIS À CONSECUÇÃO DA ATIVIDADE FIM. BASE DE CÁLCULO: PREÇO COBRADO PELA TOTALIDADE DO SERVIÇO (LC 116/03, ART. 7º; DL 406/68, ART. 9º). RECURSO IMPROVIDO. (REsp 901298/RS, rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª T., j. 21/10/2008, DJe 03/11/2008, g.n.).

(...)

3. Compõe a base de cálculo do ISSQN todas as parcelas que integram o preço do serviço de hotelaria, nele incluídos tinturaria, lavanderia e despesas telefônicas cobradas pelo hotel do hóspede. "Salvo nos casos previstos na Lei, as parcelas dos custos da prestação do serviço não são excluídas da base de cálculo." (REsp 982.952/RS, Rel. Ministro  JOSÉ DELGADO, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/10/2008, DJe 16/10/2008) (...) (EDcl no REsp 885014/RS, rel. Ministra ELIANA CALMON, 2ª T., j. 03/11/2009, DJe 17/11/2009, g.n.).

(...)”

Nem parece possível vislumbrar na hipótese – com a devida vênia quanto à conclusão a que chegou a C. 15ª Câmara ao suscitar o incidente – que estaria a ocorrer, na hipótese, violação ao disposto no art. 150, VI, a da CR/88.

O que a imunidade tributária recíproca existente entre os entes federativos busca evitar é que ao exigir tributos de outra pessoa política, possa a entidade instituidora “interferir em sua autonomia”, pois “cobrando-lhe impostos, poderia levá-la a situação de grande dificuldade econômica, a ponto de impedi-la de realizar seus objetivos institucionais” (Roque Antônio Carrazza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 22. Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 695).

Como isso não ocorre no caso em exame, nem mesmo de forma remota seria possível aplicar-se tal imunidade.

O que o art. 150, VI, a da CR impede, com o devido respeito, é que um dos entes federativos (União, Estado ou Município) institua imposto tendo como contribuinte outro ente, ou entidade da respectiva administração indireta, com relação ao respectivo patrimônio, renda ou serviços.

Na hipótese do ISSQN, o contribuinte é o prestador do serviço, notário ou registrador, titular da serventia extrajudicial. Nesse sentido dispõe o art. 5º da Lei Complementar Federal nº 116/2003, transcrito a seguir:

“(...)

Art. 5º. Contribuinte é o prestador do serviço.

(...)”

  Nesse quadro, não figura o Estado na relação material tributária, não havendo assim qualquer desrespeito nem mesmo indireto à imunidade constitucional tributária antes referida.

Mutatis mutandis, já decidiu o Colendo STF que:

“(...)

“A jurisprudência do Supremo firmou-se no sentido de que a imunidade de que trata o artigo 150, VI, a, da CF/88, somente se aplica a imposto incidente sobre serviço, patrimônio ou renda do próprio Município. Esta Corte firmou entendimento no sentido de que o Município não é contribuinte de direito do ICMS, descabendo confundi-lo com a figura do contribuinte de fato e a imunidade recíproca não beneficia o contribuinte de fato.” (AI 671.412-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 1º-4-08, 2ª Turma, DJE de 25-4-08). No mesmo sentido: AI 574.042-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 6-10-09, 2ª Turma, DJE de 29-10-09; AI 634.050-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 23-6-09, 1ª Turma, DJE de 14-8-09. (g.n.)

(...)”

Em síntese: (a) não há disposição legal que exclua, do preço do serviço notarial, frações (valores) que não são destinadas ao titular da serventia extrajudicial; (b) o “preço do serviço”, ou seja, o valor pago pelo seu usuário, é a base de cálculo do ISSQN; (c) a Fazenda Estadual não é contribuinte ou sujeito passivo da obrigação tributária quanto a esse tributo, e, portanto, é inaplicável a imunidade prevista no art. 150, VI, a da CR.

Por todas as razões, não se sustenta, com a devida vênia, a argumentação de que o dispositivo impugnado da lei municipal seja inconstitucional.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, que não deverá, entretanto, ser acolhido, reconhecendo-se a constitucionalidade do art. 36, caput e § 1º da Lei Complementar Municipal nº 93/2003, de Santa Fé do Sul.

São Paulo, 18 de dezembro de 2009.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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