Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.103258-9

Requerente: 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 273, § 1º-B, III e IV, do Código Penal

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade. Art. 273, § 1º-B, III e IV, Código Penal. Não conhecimento. 1. Compete ao órgão fracionário se pronunciar sobre a inconstitucionalidade suscitada, fundamentando seu acolhimento ou sua rejeição. 2. Se o órgão fracionário já julgou a apelação, não há mais lugar para o processamento de incidente de inconstitucionalidade, porque a eficácia vinculante precede o julgamento do mérito. 3. Inexistência de inconstitucionalidade por observância do princípio da proporcionalidade à vista do bem jurídico tutelado. O deslocamento de uma figura típica por pretensa violação ao princípio da proporcionalidade constitui medida só admissível a título excepcionalíssimo, até porque importaria em indevida intromissão em atividade privativa do legislador, a quem incumbe definir a moldura típica e as conseqüências punitivas do ato.

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.                 O venerando acórdão deu parcial provimento à apelação do Ministério Público na ação penal pública para condenar o réu (...) à pena de 10 (dez) anos de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, por infração ao art. 273, § 1º-B, III e V, do Código Penal (fls. 1503/1553). Opostos embargos de declaração pelo réu (fls. 1556/1567), foram parcialmente acolhidos para retificação dos dispositivos legais basilares à condenação – art. 273, § 1º-B, III e IV, do Código Penal (fls. 1570/1578). Em seguida, novos embargos declaratórios foram interpostos pelo réu objetivando a submissão da argüição de inconstitucionalidade do art. 273, § 1º-B, III e IV, do Código Penal, ao colendo Órgão Especial deste egrégio Tribunal de Justiça (fls. 1599/1605). Os embargos não foram conhecidos, mas, a colenda 6ª Câmara de Direito Criminal recebeu-os, ex officio, como incidente de inconstitucionalidade, determinou sua remessa ao egrégio Órgão Especial (fls. 1607/1611).

2.                 Consta a interposição de recurso extraordinário pelo réu (fls. 1615/1643).

3.                 É o relatório.

4.                 Preliminarmente, não merece conhecimento o incidente.

5.                 Consoante entendimento pacificado neste colendo Órgão Especial, o incidente de inconstitucionalidade não pode ser conhecido se o órgão judiciário suscitante não examina a questão da inconstitucionalidade, como ocorrido in casu em que o douto órgão fracionário recebeu embargos declaratórios como incidente de inconstitucionalidade e determinou sua remessa ao colendo Órgão Especial.

6.                 A título de exemplo assim já decidiu este colendo Órgão Especial em venerando acórdão da lavra do eminente Desembargador Mário Devienne Ferraz, cujos valiosos fundamentos, no que interessa, são transcritos e incorporados expressamente:

“Ocorre que a instauração do incidente de inconstitucionalidade, regulado nos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil, exige que o órgão fracionário enfrente a alegação e decida se a acolhe ou a rejeita. Se a rejeitar, declarará as razões pelas quais concluiu nesse sentido e prosseguirá no julgamento de mérito. Na hipótese contrária, se acolher a argüição, deverá lavrar acórdão nesse sentido e suspenderá o julgamento, determinando a remessa dos autos ao Órgão Especial para decisão quanto à declaração incidental de inconstitucionalidade, nos moldes do que dispõe o artigo 97 da Constituição Federal e a Súmula Vinculante nº 10, do colendo Supremo Tribunal Federal. Se o Órgão Especial concluir pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, os autos de qualquer forma retornarão ao órgão fracionário, que prosseguirá no julgamento do mérito, ficando vinculado, entretanto, ao que for decidido pelo Órgão Especial.

(...)

Como visto, a leitura do acórdão revela que a questão relativa ao acolhimento ou não da inconstitucionalidade da norma atacada não foi submetida à turma julgadora, que sobre isso não se pronunciou” (Incidente de Inconstitucionalidade de Lei n. 172.877-0/2-00, Miguelópolis, Órgão Especial, v.u., 18-02-2009.

7.                 Com efeito, compete ao órgão fracionário, em qualquer hipótese, se pronunciar sobre a inconstitucionalidade suscitada, fundamentando seu acolhimento ou sua rejeição.

8.                 Não bastasse, há outra preliminar que, igualmente, impede o conhecimento do incidente.

9.                 O contorno jurídico do incidente de inconstitucionalidade indica que o expediente tem como meta o exame de vício de inconstitucionalidade prejudicial ao julgamento do mérito do recurso. Assim sendo, se declarada a inconstitucionalidade pelo Órgão Especial como consectário do processamento do incidente, seu julgamento, na questão da inconstitucionalidade, tem efeito vinculante à futura decisão do órgão fracionário sobre o mérito da causa.

10.               Ora, no caso, o douto órgão fracionário já julgou a apelação – oportunidade na qual se pronunciou pela inexistência de inconstitucionalidade (fls. 1525/1528) -, não havendo mais lugar para o processamento de incidente de inconstitucionalidade, mormente em sede de embargos declaratórios, tendo em vista que o julgamento per saltum da constitucionalidade de lei ou ato normativo, no juízo incidental, é precedente ao julgamento do mérito.

11.               Se superadas as preliminares, o parecer da douta Procuradoria de Justiça Criminal bem repele a argüição de inconstitucionalidade com a seguinte argumentação, ora apropriada:

“(...) A norma sob comento é autorizada pelo juízo de proporcionalidade, porquanto visa a reprimir aquelas condutas típicas que difusamente exponham a sociedade a enormes danos. Não havendo tal potencialidade, a norma simplesmente não incide sobre o caso concreto, devendo o Julgador vasculhar à procura de outro tipo penal para a adequação normativa” (fl. 1485).

12.               E apreciando a quaestio juris, assim expressou a douta Turma Julgadora:

“Inicialmente, não há que se falar em inconstitucionalidade do referido tipo penal.

O legislador optou por atribuir pena elevada a esse crime, erigindo-o também à classificação de hediondo, diante da potencialidade lesiva, capaz de atingir número indeterminado de pessoas, que podem adoecer ou ter agravadas suas enfermidades, vindo até mesmo a óbito, em razão da utilização de medicamentos impróprios ao consumo. Assim, a reprimenda é proporcional aos resultados, em grande escala, que pode produzir.

(...)

Observo ainda que, para a configuração desse crime, não se exige a introdução, no medicamento, de substância nociva à saúde, bastando que ela esteja inadequada ou mesmo inócua ao fim proposto, o que pode ocorrer com o armazenamento irregular dos medicamentos ou suas matérias-primas” (fls. 1525/1527).

13.               Ora, a potencialidade lesiva que inspira a sanção prevista no caput do art. 273 do Código Penal também está presente nas situações do § 1º-B e justifica a equiparação das sanções, o que não caracteriza inconstitucionalidade por não haver distinção objetiva no bem jurídico tutelado que converge à situação de perigo construída.

14.               Acrescente-se, ademais, que o deslocamento de uma figura típica por pretensa violação ao princípio da proporcionalidade constitui medida só admissível a título excepcionalíssimo, até porque importaria em indevida intromissão em atividade privativa do legislador, a quem incumbe definir a moldura típica e as conseqüências punitivas do ato.

15.               Como obtempera Luciano Feldens:

“Um tal juízo, consistente no deslocamento do fato a uma espécie normativa menos rigorosa, por implicar o afastamento, ainda que parcial e in concreto, da lei penal, não pode fazer-se sem mais. Pelo menos, conforme já aventado, não se pode fazê-lo mediante uma constatação eminentemente empírica sobre a desproporcionalidade de uma determinada medida, que nada mais seria do que uma concepção subjetiva de proporcionalidade ostentada pelo julgador. Reitere-se: apesar de não ser absoluta, a regra é, e seguirá sendo, a liberdade de configuração do legislador. Para contrarrestá-la, devemos encontrar pontos de apoio seguros. Não poderá o juiz, simplesmente, suplantar o legislador, limitando-se a dizer que tal ou qual situação é ofensiva do princípio da proporcionalidade porquanto assim lhe parece” (A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 195).

16.               O que não se pode, destarte, é retirar do legislador a primazia da decisão política e seletiva sobre qual o tratamento penal que a conduta deve merecer, colocando-o nas mãos do julgador, por critérios exclusivamente subjetivos. Com relação à (aparente) desproporcionalidade das elevações promovidas pela lei ao crime em estudo, parece-nos que ela não resiste a uma análise cuidadosa e bem refletida. Mais uma vez, recorremos ao pensamento de Luciano Feldens:

“nem tudo que nos escapa à percepção, ou que à primeira vista se apresente como desproporcional, enseja a utilização de um princípio cuja aplicação, a pretexto de restaurar a proporcionalidade, projeta graves efeitos. O exame da coerência endonormativa requer algo mais, seja em termos de fundamentação jurídica, seja em termos de constatação empírica, a realizar-se à luz do caso concreto submetido à avaliação judicial” (A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 201).

17.               Destarte, opino pelo não conhecimento do incidente de inconstitucionalidade ou por sua rejeição. 

São Paulo, 22 de março de 2010.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

        - Assuntos Jurídicos -

wpmj