Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.329.301-0

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: inconstitucionalidade do art. 1º da Emenda Constitucional n. 32/01 e do §§ 3º e 11 do art. 62 da Constituição Federal e do art. 15-B do Decreto-lei n. 3.365/41 introduzido pela Medida Provisória n. 2.183-56/01

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade. Direito Constitucional e Administrativo. Desapropriação. Medida Provisória. Art. 15-B, DL 3.365/41 (na redação dada pelo art. 1º da MP 2.183-56/01) e aos §§ 3º e 11 do art. 62 da CF na redação dada pelo art. 1º da EC 32/01. Violação aos arts. 2º, 5º, XXIV, e 60, § 4º, III, CF. 1. Não merece conhecimento incidente de inconstitucionalidade se em relação à mesma quaestio iuris o colendo Órgão Especial julgou improcedente argüição anterior (Processo n. 994.09.222918-5). 2. A EC 32/01 acrescentou o § 11 ao art. 62 da CF/88 conservando os efeitos das relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a medida provisória se não editado o decreto legislativo para discipliná-las até sessenta dias após sua rejeição ou sua perda de eficácia. 3. A fórmula adotada que repousa no direito italiano (art. 77, Constituição), substituindo a antiga redação do parágrafo único do art. 62 da CF/88 que obrigava o Poder Legislativo a edição de decreto legislativo para tanto, não vulnera o princípio fundamental da separação dos poderes na medida em que o Poder Legislativo é senhor da conveniência e da oportunidade da edição de decreto legislativo para disciplina dos efeitos das situações jurídicas produzidas sob o pálio de medida provisória com perda de eficácia, podendo optar pela sua regulação, mediante o ato normativo referido, ou pela conservação dos efeitos delas por ato tácito, caracterizado pelo decurso de prazo de legislar. 4. O art. 15-B do DL 3.365/41 (na redação dada pela MP 2.183-56/01) estabelecendo como termo a quo dos juros moratórios na desapropriação a data de “1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito, nos termos do art. 100 da Constituição” tem como pressuposto a mora no momento em que a obrigação deve ser cumprida. 5. Presença dos requisitos de relevância e urgência à vista da interferência direta no dispêndio público gerado pela desapropriação. Parecer pelo não conhecimento e, se superada a preliminar, pela rejeição da declaração de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.                 A colenda 5ª Câmara de Direito Público do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento de reexame necessário e de apelação interpostas contra sentença que julgou procedente desapropriação movida pela Municipalidade de São Paulo em face de Vila do Rodeio S/C de Empreendimentos Imobiliários e Participações Ltda., suscitou incidente de inconstitucionalidade conforme venerando acórdão assim ementado:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO – EMENDA CONSTITUCIONAL 32/2001 – MEDIDA PROVISÓRIA 2.183-56/2001 – INCONSTITUCIONALIDADES – É inconstitucional o art. 1º da Emenda Constitucional 32/2001 na parte em que acrescenta o § 11 ao art. 62 da Constituição Federal, bem como, por conseguinte, a referência a ele introduzida no § 3º do mesmo artigo por violação ao art. 60, § 4º, III, da Carta Magna – São inconstitucionais os dispositivos acrescentados ao Decreto-Lei 3.365/1941, notadamente os arts. 15-A e 15-B e os §§ 1º, 3º e 4º do art. 27, pela Medida Provisória 2.183-56/2001, por esta não atender aos requisitos de urgência e relevância do art. 62, caput, e da necessidade de prévia e justa indenização em dinheiro do art. 5º, XXIV, ambos da Constituição Federal – Impossibilidade de apreciação, contudo, da inconstitucionalidade do art. 15-A e parágrafos e do § 1º do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/1941 em virtude da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2332/DF proferida pelo STF, e, por decorrência, dos §§ 3º e 4º do aludido art. 27 – Remessa dos autos ao Órgão Especial deste E. Sodalício para apreciação da constitucionalidade dos demais dispositivos – Inteligência da CF/1988, art. 97, do CPC, arts. 480 a 482, e RITJESP (Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), arts. 657 e 658 – Suspende-se o julgamento” (TJSP, AC 994-07-056800-1, São Paulo, Rel. Des. Xavier de Aquino, v.u., 01-03-2010 – fls. 2108/2117).

2.                 É o relatório.

3.                 Não merece conhecimento o incidente de inconstitucionalidade.

4.                 Com efeito, em relação à mesma quaestio iuris o colendo Órgão Especial julgou improcedente argüição anterior, alçada pela egrégia 5ª Câmara de Direito Público (Processo n. 994.09.222918-5, Rel. Des. José Roberto Bedran, v.u., 28-04-2010 – doc. anexo).

5.                 Se superada a preliminar, no mérito a argüição deve ser julgada improcedente.

6.                 Coloca em foco o venerando acórdão a inconstitucionalidade do art. 1º da Emenda Constitucional n. 32, de 2001, quando acrescenta ao art. 62 o § 11 - e, por conseguinte, a referência a ele promovida no § 3º do mesmo art. 62 – porque, em síntese, com o art. 2º da citada emenda constitucional, haveria uma “perenização” das medidas provisórias editadas anteriormente à Emenda Constitucional n. 32/01, significando renúncia das prerrogativas do Poder Legislativo que violenta o princípio da separação de poderes – cláusula pétrea amparado no inciso III do § 4º do art. 60 da Constituição Federal.

7.                 Assim dispõem os §§ 3º e 11 do art. 62 da Constituição de 1988, acrescentado pela citada Emenda n. 32/01:

“§ 3º. As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

(...)

§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”.

8.                 A inovação do § 11 do art. 62 consiste na atribuição de efeito definitivo a estatuto provisório de matéria disciplinada em medida provisória rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia, contemplando exceção à regra do § 3º que exige, no caso de perda da eficácia da medida provisória por exaurimento de seu prazo de vigência, a disciplina da matéria legislada por decreto legislativo.

9.                  Como pondera a doutrina, “a inércia do Congresso Nacional no exercício de sua competência acarretará a conversão dos tradicionais efeitos ex tunc (retroativos), decorrentes de rejeição de medida provisória, para efeitos ex nunc (não retroativos). Trata-se, pois, de envergonhado retorno aos efeitos não retroativos decorrentes da rejeição expressa do antigo Decreto-lei. Ressalte-se, porém, que essa transformação de efeitos somente ocorrerá caso o Congresso Nacional não edite o necessário Decreto legislativo no prazo constitucionalmente fixado. Dessa forma, a Constituição permite, de forma excepcional e restrita, a permanência dos efeitos de medida provisória expressa ou tacitamente rejeitada, sempre em virtude de inércia do Poder Legislativo” (Alexandre de Moraes. Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 1123).

10.               A solução da argüição de inconstitucionalidade desse preceito depende de seu contraste com a anterior disciplina do assunto e da dimensão da cláusula de separação de poderes (art. 2º, Constituição Federal), tida como pétrea.

11.               Na redação antecedente à Emenda Constitucional n. 32, de 2001, dispunha o parágrafo único do art. 62 da Carta Magna que “as medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.

12.               O texto constitucional anterior só fornecia uma possibilidade ao Poder Legislativo: a disciplina do assunto, de forma positiva e obrigatória, como se constata do parágrafo único in fine do art. 62. É certo que, àquele tempo, tinha ampla liberdade conformadora o Congresso Nacional para normatizar o assunto, inovando total ou parcialmente ou, no mínimo, convolando o provisório em norma de efeito temporário para as situações jurídicas produzidas sob o império da medida provisória.

13.               Com a inovação, a disciplina das situações jurídicas desenvolvidas sob o pálio de medida provisória cuja eficácia foi perdida pode ser também tácita, em atenção ao disposto na parte final do § 11 acrescentado ao citado art. 62.

14.               A possibilidade envolve questionamentos que atendem, de um lado, a isonomia, e de outro, a segurança jurídica.

15.               A solução disposta no § 11 do art. 62 se amolda aos contornos do instituto do decretto-legge no direito italiano, pois, o art. 77 da Constituição italiana expressa que:

I decreti perdono efficacia sin dall’inizio, se non sono convertiti in legge entro sessanta giorni dalla loro pubblicazione. Le Camere possono tuttavia regolare con legge i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non convertiti”.

16.               Essa previsão é tida como faculdade (Carolina Alves de Barros. Medidas Provisórias: o decretto-legge nos países que adotaram o instituto, in Medidas Provisórias e Segurança Jurídica, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, pp. 290-291, coordenação Carlos Aurélio Mota de Souza).

17.               Ela encontrou apoio na doutrina brasileira assinalando que “no caso teremos uma Medida Provisória de validade efêmera, como uma lei temporária ou passageira, mas que produzirá efeitos concretos duradouros. Esta solução veio em boa hora, para normatizar uma grave omissão anterior” (Samuel Nobre Sobrinho. Medidas Provisórias: suas origens, deformação de seu uso e a nova regulamentação advinda da Emenda Constitucional n. 32/2001, in Medidas Provisórias e Segurança Jurídica, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 335, coordenação Carlos Aurélio Mota de Souza).

18.               Mas, também, não ficou ilesa de crítica sustentando que o dispositivo pode “causar celeuma jurídica e problemas práticos (...) sendo intuitivo que, mantido esse procedimento, graves conseqüências e injustas situações advirão, corroborando com a insegurança jurídica” (Alexandre Gir Gomes. Medidas Provisórias e Poder Legislativo, in Medidas Provisórias e Segurança Jurídica, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, pp. 352-353, coordenação Carlos Aurélio Mota de Souza).

17.               O enfrentamento da questão demanda aferir se a inovação tem a potencialidade de caracterizar-se como medida tendente à abolição o princípio da separação de poderes, constante do art. 2º da Constituição de 1988, e, portanto, violar a cláusula pétrea referida no inciso III do § 4º do art. 60 da mesma.

18.               Mercê da diversidade de enfoque acerca da interpretação das cláusulas pétreas, o que importa avaliar é a dimensão da conformidade ou compatibilidade – positiva ou negativa - do § 11 do art. 62 com o esquema da separação de poderes que orienta a divisão funcional da estrutura política na Constituição de 1988. No ponto, o venerando acórdão estima a influência negativa do preceito asseverando que isso proporciona ao “Executivo se sobreponha mesmo quando o ato legislativo excepcional não se transforme em lei!” (fl. 429).

19.               No entanto, deve se considerar que a fórmula adotada na inovação implantada pela Emenda Constitucional n. 32/01 – que, como visto, repousa no direito italiano – não vulnera o princípio fundamental da separação dos poderes na medida em que o Poder Legislativo é senhor da conveniência e da oportunidade da edição de decreto legislativo para disciplina dos efeitos das situações jurídicas produzidas sob o pálio de medida provisória com perda de eficácia, podendo optar pela sua regulação, mediante o ato normativo referido, ou pela conservação dos efeitos delas por ato tácito, caracterizado pelo decurso de prazo de legislar.

20.               Portanto, não se verifica inconstitucionalidade.

21.               O segundo tópico que embasa o exame de constitucionalidade nesta via é o art. 15-B do Decreto-lei n. 3.365/41 introduzido pela Medida Provisória n. 2.183-56/01.

22.               O venerando acórdão discute, en passant, a própria integralidade da Medida Provisória n. 2.183 (fls. 429/430), asseverando a inexistência de urgência e relevância no trato da desapropriação, mas, e como ressalvado no próprio decisum, a discussão é centrada no art. 15-B citado (fls. 430/431).

23.               A norma invocada estabelece como escopo dos juros moratórios a recomposição da “perda decorrente do atraso no efetivo pagamento da indenização fixada na decisão final de mérito”, sendo devidos à taxa de 6% ao ano e inscrevendo como seu termo a quo “a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte àquele em que o pagamento deveria ser feito, nos termos do art. 100 da Constituição”.

24.               Imputa o venerando acórdão inexistência de urgência e relevância, requisitos habilitantes da edição de medida provisória ut art. 62 da Constituição Federal, e ofensa à necessária indenização justa e prévia em dinheiro, prevista na cláusula do inciso XXIV do art. 5º da Constituição de 1988.

25.               José Carlos de Moraes Salles em seu afamado capolavoro acentua que o termo a quo dos juros moratórios na desapropriação é trânsito em julgado da decisão, lembrando que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 70 enunciando que “os juros moratórios, na desapropriação direta ou indireta, contam-se desde o trânsito em julgado da sentença” (A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, 4ª ed., pp. 615-618).

26.               Essa opinião é compartilhada por eminentes juristas, como, por exemplo, Celso Antonio Bandeira de Mello que, ao analisar o art. 15-B do Decreto-lei n. 3.365/41, acrescenta que “a disposição em causa é inconstitucional. (...) É que, de fora provir de medida provisória não relevante nem urgente e, ademais, reiterada, o que é inadmissível (razões, estas, que o Judiciário por certo ignorará), ofende o princípio da justa indenização, razão que – esta, sim – o Judiciário muito provavelmente considerará merecedora de acolhimento” (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2006, 21ª ed., p. 840).

27.               Para os fins de indenização justa e prévia na desapropriação, a que alude o inciso XXIV do art. 5º da Constituição Federal, há se compreender o momento efetivo de transmissão forçada da propriedade. Ora, este se dá com o pagamento da indenização. Considerando que o poder público deve promover os pagamentos devidos em razão de decisão judicial em atenção ao art. 100 da Constituição Federal, só é possível estimar sua mora se não o fez a partir do início do exercício seguinte ao qual deveria ter sido feito o pagamento, como consta da fórmula normativa do art. 15-B do Decreto-lei n. 3.365/41, pois, a partir de então se iniciou a mora, dado que o poder público não pode promover a satisfação desses débitos senão pela via do art. 100 da Constituição Federal observando seus mandamentos, em especial a inclusão orçamentária e a não-preterição.

28.               O venerando acórdão expõe a ausência de relevância e urgência para o trato do assunto por medida provisória. Esses requisitos habilitantes da edição de medida provisória são cumulativos e não há dúvida alguma da pertinência de seu exame no controle judiciário, mormente no de fiscalização abstrata de constitucionalidade.

29.               Mas, tal e qual ventilado na ação direta de inconstitucionalidade em que se discutiram os arts. 15-A e 27 do Decreto-lei n. 3.365, de 1941, também introduzidos por medida provisória (ADI-MC 2.332-DF), presentes esses dois requisitos dado que o art. 15-B interfere diretamente no dispêndio público gerado pela desapropriação, assunto que não se pode infirmar relevância e urgência.

30.               Acrescento, por derradeiro, que este colendo Órgão Especial assim rejeitou idêntica e anterior argüição de inconstitucionalidade, acolhendo as ponderações do parecer ministerial:

Incidente de Inconstitucionalidade. Art. 1º, da Emenda Constitucional n° 32/2001, na parte em que acrescentou o § 11 ao art. 62 da Constituição Federal, bem como de sua referência no § 3º do mesmo dispositivo, além do art. 15-B, do Decreto-lei n° 3.365/1941, com a redação da Medida Provisória n° 2.183-56/2001. Arguição formulada ao fundamento de violação da cláusula pétrea da separação dos poderes e indevida ‘perenização’ das medidas provisórias, com afronta do art. 60, § 4o, III, da Constituição Federal. Mecanismo excepcional que, no entanto, preserva a tripartição dos poderes, aplicável somente em caso de conservação dos efeitos jurídicos de medida provisória, por ato tácito do Legislativo, competente para a análise da conveniência e oportunidade na edição de leis e atos normativos. Indenizações pagas pelo Poder Público em desapropriações que devem, sempre, submeter-se a decisão judicial (art. 100, da CF), segundo a inclusão orçamentária e a não-preterição da ordem cronológica dos precatórios. Conveniência e oportunidade da edição da Medida Provisória evidenciadas pelas despesas públicas com desapropriações, com o que se harmoniza a regra do art. 15-B, do Decreto-lei n° 3.365/41. Arguição improcedente” (Processo n. 994.09.222918-5, Rel. Des. José Roberto Bedran, v.u., 28-04-2010).

 31.              Destarte, opino pelo não conhecimento do incidente de inconstitucionalidade ou por sua rejeição. 

São Paulo, 27 de julho de 2010.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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