Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 990.10.096567-0

Órgão Especial

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Apelante: (...)

Apelados: Câmara Municipal de Piracicaba e outros

Objeto: Lei Municipal nº 5.286 de 02 de julho de 2003, de Piracicaba.

 

Ementa:

1)Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.286 de 02 de julho de 2003, de Piracicaba. Modificação dos subsídios dos Vereadores na legislatura em curso, a pretexto de “revisão geral anual” (art. 37, X da CR/88).

2)Inconstitucionalidade. Vedação à modificação dos subsídios dos Vereadores dentro da legislatura em curso (“regra da legislatura” – art. 29, VI da CR/88). Não aplicação da regra da “revisão geral anual”, destinada aos servidores públicos (art. 37, X da CR/88), aos titulares de mandatos eletivos.

3)Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 6ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, nos termos do v. acórdão de fls. 275/280, rel. Des. Sidney Romano dos Reis, proferido nos autos da apelação cível com revisão nº 382.335-5/4-00, na sessão de julgamento realizada em 09.11.2009.

Ao suscitar a instauração do incidente, a C. 6ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça afirmou a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.286 de 02 de julho de 2003, de Piracicaba, que não teria observado parâmetros da Lei Orgânica Municipal ao reajustar os subsídios dos Vereadores, no período de junho de 2002 a maio de 2003, em 28,67%. Isso, na medida em que teria ocorrido majoração do valor dos subsídios na legislatura em curso (fls. 277/278).

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e acolhido.

O objeto do presente incidente de inconstitucionalidade é a Lei Municipal nº 5.286, de 2 de julho de 2003, de Piracicaba, cujo projeto foi apresentado pela Mesa Diretora da Câmara, e que, conforme respectiva rubrica, “Dispõe sobre revisão do subsídio dos Vereadores do Município de Piracicaba, conforme prevê o art. 2º, da Lei nº 4.778/00, que ‘fixa subsídios dos Vereadores para a próxima legislatura’ e o inciso X, do art. 37, da Constituição Federal” , tendo a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica revisto em 28,67% (vinte e oito vírgula sessenta e sete por cento) o subsídio dos Vereadores da Câmara de Vereadores de Piracicaba, conforme previsto no art. 2º da Lei Municipal nº 4.778, de 03 de abril de 2000, e inciso X, do art. 37, da Constituição Federal.

Parágrafo único. O percentual aplicado para a revisão de que trata o caput deste artigo corresponde à inflação ocorrida no período de janeiro de 2001 a maio de 2003, apurada pela média dos índices oficiais IPC-FIPE, IPC-FGV e DIEESE.

Art. 2º. As despesas com a execução da presente lei correrão por conta da dotação orçamentária própria 01.122.0026.2.099 – gastos e benefícios pessoal da Câmara – 3.1.90.11 – vencimentos, vantagens fixas de pessoal civil, suplementada se necessário.

(...)”

Como se sabe, os subsídios dos Vereadores são fixados pela Câmara Municipal em cada legislatura para a subseqüente, nos termos do art. 29, VI da CR/88 (red. EC nº 25/2000), que estipula a denominada “regra da legislatura”.

Por força dessa disposição é que se entende que é vedado o aumento de subsídios dos Vereadores na legislatura em curso.

De outro lado, ao tratar da questão no âmbito do Poder Executivo, o art. 37, X da CR/88 (red. EC nº 19/98) estabelece que a “remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso”.

Ademais, esse mesmo dispositivo (art. 37, X da CR/88), em sua parte final determina que seja “assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.

Há, portanto, duas questões diversas relacionadas ao art. 37, X da CR/88.

Não se pode confundir a (a) fixação dos subsídios, ou mesmo sua majoração, com a (b) revisão geral anual da remuneração e dos subsídios, que diz respeito à respectiva atualização monetária, para preservar o poder aquisitivo da moeda. Essa distinção já foi destacada pelo Colendo STF (ADI 2.726, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-12-02, Plenário, DJ de 29-8-03).

A finalidade da revisão geral e anual sem distinção de índices e na mesma data é singela: assegurar tratamento isonômico aos servidores públicos quanto ao índice e à data que serão empregados para afastar a corrosão do poder aquisitivo do capital em função da inflação, na medida em que sendo esta um fenômeno uniforme, não se justificaria, quanto a ela, a adoção de índices diferenciados.

É por tal fundamento que o Colendo Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a atribuição privativa do Poder Executivo para o encaminhamento do projeto de lei destinado à definição do índice de revisão geral anual da remuneração e dos subsídios, previsto no art. 37, X, in fine da CR/88 o que impede ao “Poder Judiciário deferir pedido de indenização no tocante à revisão geral anual de servidores, por ser atribuição privativa do Poder Executivo” (RE 548.967-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-11-07, 1ª Turma, DJE de 8-2-08). No mesmo sentido: RE 529.489-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 27-11-07, 2ª Turma, DJE de1º-2-08; RE 561.361-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-11-07, 1ª Turma, DJE de 8-2-08; RE 547.020-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6-11-07, 1ª Turma, DJE de15-2-08.

Do mesmo modo, já pontuou o Colendo STF que:

“(...)

Mesmo que reconheça mora do Chefe do Poder Executivo, o Judiciário não pode obrigá-lo a apresentar projeto de lei de sua iniciativa privativa, tal como é o que trata da revisão geral anual da remuneração dos servidores, prevista no inciso X do artigo 37 da Lei Maior, em sua redação originária. Ressalva do entendimento pessoal do Relator. Precedentes: ADI 2.061, Relator Ministro Ilmar Galvão; MS 22.439, Relator Ministro Maurício Corrêa; MS 22.663, Relator Ministro Néri da Silveira; AO 192, Relator Ministro Sydney Sanches; e RE 140.768, Relator Ministro Celso de Mello. Agravo regimental desprovido. (RE 519.292-AgR, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 15-5-07, 1ª Turma, DJ de 3-8-07, g.n.)

(...)”

Tal entendimento – no sentido de que uma única lei deve definir o índice relacionado à revisão geral da remuneração dos servidores prevista no art. 37, X da CR/88 -, foi inclusive sedimentado, ao menos na esfera da União, com a edição da Lei nº 10.331/2001, que, conforme respectiva rubrica, “Regulamenta o inciso X do art. 37 da Constituição, que dispõe sobre a revisão geral e anual das remunerações e subsídios dos servidores públicos federais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais”, prevendo em seu art. 1º, combinado com o art. 2º, II, que mediante lei específica “as remunerações e os subsídios dos servidores públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações públicas federais, serão revistos, na forma do inciso X do art. 37 da Constituição, no mês de janeiro, sem distinção de índices, extensivos aos proventos da inatividade e às pensões”.

Outra questão, contudo, é saber os Vereadores estão sujeitos à revisão, nos moldes acima expostos.

Em, outras palavras, importa saber se a isonomia na revisão da remuneração do pessoal do serviço público alcança apenas os servidores públicos em geral, ou atinge também os agentes políticos, e, em especial, os Vereadores.

Referindo-se ao art. 37, X da CR/88, Maria Sylvia Zanella Di Pietro anota que “Os servidores passam a fazer jus à revisão geral anual, para todos na mesma data e sem distinção de índices (estas últimas exigências a serem observadas em cada esfera de governo). A revisão anual, presume-se que tenha por objetivo atualizar as remunerações de modo a acompanhar a evolução do poder aquisitivo da moeda; se assim não fosse, não haveria razão para tornar obrigatória a sua concessão anual, no mesmo índice e na mesma data para todos. Esta revisão anual constitui direito dos servidores, o que não impede revisões outras, feitas com o objetivo de reestruturar ou conceder melhorias a carreiras determinadas, por outras razões que não a atualização do poder aquisitivo dos vencimentos e subsídios” (Direito administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 523). No mesmo sentido o pensamento de Carmen Lúcia Antunes Rocha, Princípios constitucionais dos servidores públicos, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 323.

Destaque-se: a doutrina acima, ao tratar do tema, deixa implícito o entendimento de que a garantia contida no art. 37, X da CR/88 aplica-se apenas aos servidores públicos em geral.

Não se pode perder de vista no exame da matéria, ademais, que a Constituição Federal submete a fixação da retribuição pecuniária devida aos Vereadores à denominada “regra da legislatura”, que contem em essência, duas diretrizes: (a) primeiro, a determinação de que o valor dos subsídios pagos aos parlamentares seja fixado pela legislatura anterior, para a subseqüente; (b) segundo, a vedação de aumentos no curso da própria legislatura, ou seja, em benefício dos próprios mandatários populares.

Isso é o que decorre do inciso VI do art. 29 da CR (red. EC 25/00), ao prever que “o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subseqüente (...)”.

Nesse sentido, vários precedentes elucidando o sentido da “regra da legislatura” são apontados por Alexandre de Moraes, em sua Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 718/719:

“(...)

TJSP - A lei, ao estipular que a fixação dos subsídios dos Vereadores seja feita em cada legislatura para a subseqüente, prevê necessariamente, que o valor seja fixado antes das eleições, enquanto os Vereadores não saibam se serão ou não reeleitos. Se a fixação fosse feita após as eleições, eles estariam fixando, com certeza, os próprios vencimentos, contrariando o espírito das leis. Assim, com infringência ao princípio da moralidade e agindo com desvio de finalidade, é que foi aprovada a resolução 2, a qual deve ser declarada nula (JTJ 153/152).

STF – Constitucional. Ação popular, Vereadores. Remuneração. Fixação. Legislatura subseqüente. CF, 5º LXXIII; art.29, V. Patrimônio material do poder público, Moralidade Administrativa: lesão. I. A remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores será fixada pela Câmara Municipal em cada legislatura para a subseqüente, CF, art.29, V. Fixando os Vereadores a sua própria remuneração, vale dizer, fixando esta remuneração para viger na própria legislatura, pratica ato inconstitucional lesivo não só ao patrimônio material do Poder Público, como à moralidade administrativa, que constitui patrimônio moral da sociedade. Art.5º, LXXIII” (STF, 2ª T., RE 206.889/MG – rel. Min. Carlos Velloso, RTJ 165/373).

(…)”

Em síntese, em decorrência da “regra da legislatura” não é aplicável aos Vereadores a normativa contida no art. 37, X da CR. Não se pode falar, quanto a eles, em “revisão geral anual”, e menos ainda na adoção de índice único, coincidente com aquele adotado para o funcionalismo de modo geral.

Ademais, vem em reforço desse raciocínio o fato de que a sistemática remuneratória dos Vereadores tem regramento absolutamente próprio na Constituição Federal, pois, além da “regra da legislatura” há previsão de: (a) limites que associam a população do Município à fração do que percebem os Deputados Estaduais para definição dos subsídios dos Vereadores (art. 29, VI da CR, red. EC 25/00); (b) limites em percentual da receita do Município (5%, nos termos do art. 29, VII da CR, red. EC 01/92); (c) limites percentuais associados ao somatório da receita tributária e transferências constitucionais inerentes ao Município considerado (art. 29-A da CR, red. EC 25/00).

Todos estes argumentos induzem à conclusão de que não se aplica aos membros do Legislativo Municipal a unidade de índice de revisão, válida para o funcionalismo em geral. E mais: não há revisão geral anual para os Vereadores, a fim de reposição de índices inflacionários, sob pena de desrespeitar-se o disposto no art. 29, VI da CF, ou seja, a “regra da legislatura”.

Essa conclusão foi assentada também em sede doutrinária por Wallace Paiva Martins Júnior, Remuneração dos agentes públicos, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 120, ao observar com precisão que “a revisão geral não se aplica aos agentes políticos investidos em mandatos eletivos na medida em que para eles a providência situa-se no domínio da conveniência política”, mencionando ainda o r. autor importante precedente do E. TJSP nesse sentido (AI 356.170-5/5-00. 9ª Câmara de Direito Público, rel. des. Gonzaga Franceschini, j. 25.8.2004, v.u.).

Em síntese: a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.286, de 02 de julho de 2003, de Piracicaba, decorre do fato de que ao pretexto de conceder revisão anual para expurgar o efeito corrosivo decorrente do fenômeno inflacionário, com relação aos subsídios dos detentores de mandato eletivo de Vereador, o legislador desrespeitou a regra da legislatura, aplicável nos termos do art. 29, VI da CR/88, red. EC nº 25/2000.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.286, de 02 de julho de 2003, de Piracicaba.

São Paulo, 15 de março de 2010.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

- Assuntos Jurídicos -

rbl