Parecer
Autos n. 990.10.
098739-9
Suscitante: Décima
Terceira Câmara de Direito Público
Objeto da
impugnação: Art. 9º, §1º , “a”, da Lei Municipal n. 7.329/66, do Município
de São Paulo
Ementa.
Possibilidade de ser suscitado o Incidente de Inconstitucionalidade. Dispositivo
legal que impede a pessoa condenada por crime doloso a obter inscrição no CONDUTAX- Cadastro de Condutores do
Sistema de Transporte Público Municipal de São Paulo. Lei Municipal nº 7.329/69.
Edição anterior à Constituição. Caso de recepção, ou não, da norma questionada,
mas não de inconstitucionalidade. Situação fático-jurídico não alcançada pelo
teor da Súmula Vinculante nº 10 do STF. Parecer pela desnecessidade de
suscitação do incidente de inconstitucionalidade. De toda forma, quanto ao mérito da questão,
nosso posicionamento é pela não recepção do no art. 9º, §1º, “a”, da Lei
Municipal n. 7.329/69, do Município de São Paulo
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
No curso da presente ação ordinária -- em que o
autor condenado por crime de roubo qualificado em março de 2000, pede: (a) a
declaração de ilegalidade da exigência da Municipalidade de São Paulo para sua
inscrição no CONDUTAX- Cadastro de Condutores do Sistema de Transporte Público
Municipal de inexistência de condenação pretérita deste crime doloso; (b)
anulação da exigência do ato administrativo baseado no art. 9º, §1º, “a”, da
Lei Municipal n. 7.329/69, que indefere a inscrição do autor no CONDUTAX-
Cadastro de Condutores do Sistema de Transporte Público Municipal, diante de
sua condenação pretérita por crime
doloso; deferimento ao autor do direito de inscrição no CONDUTAX – Cadastro de
Condutores do Sistema de Transporte Público Municipal sem observância da
exigência constante do art. 9º, §1º, alínea, de mencionada Lei 7.329/69;
condenação da requerida a pagar ao autor indenização por danos morais no valor
de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais); condenação da requerida, a contar de 05
de março de
Como foi questionada a
validade jurídico-constitucional do art. 9º, §1º, “a”, da Lei Municipal n.
7.329/69, motivando o Desembargador IVAN
SARTORI, com assento na Egrégia 13.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo a submeter à apreciação de seus pares eventual
suscitação do incidente de inconstitucionalidade, nos termos do art. 97 da
Constituição Federal (fl. 171), notadamente em função da Súmula Vinculante nº
10, do Supremo Tribunal Federal.
Entendemos não ser o caso de suscitar o incidente de
inconstitucionalidade de lei.
Segundo o despacho de fl. 201, trata-se de incidente de
inconstitucionalidade cuja instauração tem por objeto o art. 9º, §1º, “a”, da
Lei Municipal n. 7.329/69, obviamente anterior à Constituição Federal em vigor.
Entende o Supremo Tribunal Federal que a anulação de uma
norma inconstitucional é necessária somente quando a lei é mais recente que a
Constituição. Tratando-se de uma lei anterior em contraste, estará ela não
recepcionada, sem a declaração formal da inconstitucionalidade. Isso significa que os tribunais e os agentes
administrativos devem verificar a existência de uma contradição entre a
Constituição e a norma mais antiga que aquela.
Não deixamos de ressaltar os inconvenientes da adoção dessa
sistemática, sendo mesmo um dos fundamentos daqueles que aceitam a
inconstitucionalidade superveniente, é dizer, o de parecer ser um erro deixar a
decisão às várias autoridades encarregadas de aplicar ou desaplicar a lei
anterior, por se tornar um ponto fluído na ordem jurídica; seria melhor
atribuir ao tribunal constitucional a tarefa, via controle abstrato, o que
significa negar à nova Constituição a força de derrogar as leis anteriores
incompatíveis e permitir efeito mais amplo a uma decisão do Tribunal
Constitucional. Mesmo no direito brasileiro, há
casos de mutação constitucional, v.g., que, para Clèmerson Merlin Clève,
podem levar à inconstitucionalidade superveniente.
As normas de uma Constituição se projetam sobre todo o
sistema jurídico, globalmente, alterando-lhes os critérios de validade,
princípios e valores subjacentes. A nova Constituição tem os seguintes efeitos
sobre a ordem jurídica, a saber:
a) a nova Constituição revoga
globalmente a Constituição anterior (revogação de sistema);
b) novas normas constitucionais
(advindas de emenda ou revisão) revogam normas constitucionais em contrário,
anteriores;
c) a nova Constituição produz novação
em relação às normas anteriores, não desconformes com ela (no Brasil comumente
se fala em recepção);
d) normas constitucionais novas revogam
normas infraconstitucionais com ela incompatíveis, data venia, com as
observações que fizemos.
Somente uma Constituição pode vigorar em um país em um certo
momento, o que é assaz lógico. A Constituição,
superveniente, revoga globalmente o direito anterior, o que já não ocorre em
caso de emenda ou revisão, como é o caso dos autos, em que a revogação é
individualizada. Na hipótese de revisão constitucional não se opera a novação.
As normas de revisão retiram seu fundamento de validade da própria
Constituição.
Uma nova ordem não destrói todo o direito
infraconstitucional anterior; seria incongruente e muito penoso refazê-lo por
inteiro. O que há é novação, ou recepção do direito anterior, que é a mudança
no seu fundamento de validade, no seu título; as normas continuam e apenas sua
força jurídica, seu título subjacente, é outro.
Isso significa que o novo direito constitucional acarreta as
seguintes conseqüências: a) os princípios gerais de todos os ramos do direito
passam a ser aqueles previstos na nova Constituição, explícitos e implícitos;
b) as normas legais e regulamentares devem ser interpretadas face à nova ordem;
c) as normas contrárias à Constituição, mesmo em relação às normas programáticas,
não subsistem. -
O direito não contrário à nova Constituição subsiste, tendo
como único requisito o de ser com ela compatível. Mas o juízo a ser feito é o
da compatibilidade material com a nova Constituição, não formal ou orgânico.
Note-se que o critério de aferição da constitucionalidade em relação às leis
anteriores à Constituição, e o pormenor tem importância na subsistência de leis
anteriores não substancialmente contrárias ao parâmetro, é o critério material
e não formal.
Entre nós, como se disse, não se admite a tese da
inconstitucionalidade superveniente. As normas inferiores, anteriores e
incompatíveis com a Constituição estão revogadas. Não cabe ação direta em face
de leis anteriores à Constituição e os efeitos são de revogação e não há necessidade
de 'quorum' especial (art. 97 da Constituição da República) para que seja
reconhecida a revogação.
Na mesma linha de raciocínio, se não cabe ação direta de
inconstitucionalidade, não caberá o incidente de inconstitucionalidade.
Aliás, este Egrégio Tribunal de Justiça já decidiu no
sentido por nós sustentado, em incidente suscitado pela 3ª Câmara da Seção de
Direito Público do Tribunal de Justiça, tendo por suscitados o Instituto de
Previdência do Estado de São Paulo e Fazenda do Estado de São Paulo,
tratando-se do Incidente de Inconstitucionalidade de Lei nº 138.227-0/8-00,
relatado pelo Des. PENTEADO NAVARRO, que transcrevemos naquilo que relevante ao
caso:
“Incidente de
constitucionalidade. Argüição pela 3a Câmara de Direito Público deste Tribunal,
objetivando ver declarada inconstitucionalidade da Lei Complementar Estadual nº
180/78 em face da Constituição da República de 1988. Lei anterior à
Constituição. Caso de recepção, ou não, do texto referido, mas nunca de
declaração de inconstitucionalidade. Não conhecimento do incidente, com retorno
dos autos à origem.
Vistos estes autos de incidente
de inconstitucionalidade de lei suscitado pela 3ª Câmara da Seção de Direito
Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da apelação cível n°
232.773-5/2, para ver declarada a inconstitucionalidade do art. 133, inc. V, da
Lei Complementar Estadual n° 180/78, que prevê a contribuição previdenciária
dos servidores públicos inativos (fls. 216/234). Opinou o douto Procurador
Geral de Justiça pela inconstitucionalidade do dispositivo acima apontado, em
vista das considerações que faz sobre a espécie em julgamento (fls. 243/245).
Esse o relatório. Nada obstante o brilho do parecer aludido, penso que a Autos
n° 138.227-0/8 Comarca de São Paulo Voto n° 10931 Poder Judiciário Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo Órgão Especial hipótese é de não conhecimento do
incidente em questão, porque tanto a Constituição da República, de 05/10/1988,
quanto a Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998, foram editadas muito após
a vigência do questionado diploma legal. Com efeito, segundo o ensinamento de
Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, ‘O Supremo Tribunal
Federal admitiu, inicialmente, a possibilidade de examinar, no processo do
controle abstrato de normas, a questão da derrogação do direito
pré-constitucional, em virtude de colisão entre a Constituição superveniente e
o direito pré-constitucional... Essa posição foi abandonada, todavia, em favor
do entendimento de que o processo do controle abstrato de normas destina-se,
fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas
pós-constitucionais (RTJ, 82/44 e 99/544). Dessa forma, eventual colisão entre
o direito pré-constitucional e a nova Constituição deveria ser simplesmente
resolvido segundo os princípios de direito intertemporal (RTJ, 95/990). Assim,
caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao Supremo Tribunal Federal,
examinar a vigência do direito pré-constitucional no âmbito do controle
incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação
do princípio do lex posterior derrogat priori e não de um exame de
constitucionalidade’ (Controle Concentrado de Constitucionalidade, 2a ed.,
Saraiva, 2005, item 3.3.5, págs. 181-2, grifei). Sem dissentir, explica Luís Roberto
Barroso: ‘Não cabe ação direta contra leis anteriores à Constituição’
(Constituição da República Federativa do Brasil Anotada, 5a ed., Saraiva, 2006,
art. 102, pág. 614). Ainda não discrepa José Afonso da Silva, que também
sustenta a inadmissibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade de leis
anteriores à Carta Magna de 1988, afirmando: ‘se contrastarem com ela, não se
tem uma relação de validade, mas simples relação de vigência, de modo que a
questão se afere com base no princípio lex posterior derrogat lex prior, e não
segundo o princípio lex superior derrogat lex inferior, quer dizer, a questão
se resolve pela consideração de sua revogação, e não pelo julgamento de sua
inconstitucionalidade’ (Comentário Contextual à Constituição, 2a ed., Malheiros,
art. 102, pág. 542, grifei). Voga nas mesmas águas o entendimento do colendo
Supremo Tribunal Federal ao decidir que ‘A ação direta de inconstitucionalidade
não é o meio idôneo ao exame de alegado conflito de norma legal com a
Constituição da República quando exsurja indispensável, a tanto, a análise de
lei anterior que se diz não recepcionada por esta última’ (Pleno, ADI 454/PR,
rel. Min. Marco Aurélio, DJU 19/05/95, pág. 13.990). No mesmo teor outros
precedentes podem ser indicados (cf., p. ex., RTJ, 95/993, 99/544, 109/1220,
110/1094, 116/652, 124/415, 141/56, 143/3, 143/355, 145/339, 145/491, 147/372,
154/739, 158/491, 159/741, 160/62, 169/763, 169/843, 174/719 e 183/592; RDA,
138/116, 188/215 e 188/288; RT, 675/244 e 686/218; RSTJ, 47/120). Como se vê, a
declaração de inconstitucionalidade no caso é juridicamente impossível,
circunstância que afasta a possibilidade do exame de mérito (CPC, art. 267,
inc. VI, 1ª fig.). De todo o exposto, não conheço da argüição, determinando o
retorno dos autos à 3ª Câmara de Direito Privado, para que aprecie a causa, nos
termos do arts. 658, § 1º, do Regimento Interno.”
Necessário dizer que em hipóteses como a tratada nestes
autos, ou seja, de recepção ou não de determinada lei, não tem aplicação a
norma da Súmula Vinculante nº 10, do Supremo Tribunal Federal, dado que esta se
direciona aos casos em que há - formalmente – declaração ou afastamento de lei
ou ato normativo do Poder Público. O verbete só pode ser lido à luz do artigo
97 da Constituição e este é expresso quanto à declaração de
inconstitucionalidade.
Obviamente que não pode o Órgão fracionário deixar de
formalmente declarar a inconstitucionalidade de lei e, mesmo assim, não
aplicá-la justamente porque a entende inconstitucional. Essa a razão pela qual
a Súmula Vinculante nº 10 fala em “não declare expressamente”. O caso tratado
nos autos é de recepção, ou não, da norma cogitada, porém sem se falar em
inconstitucionalidade.
Nessa trilha, opinamos pela não suscitação do incidente, com
prosseguimento do julgamento.
De toda forma, relativamente ao mérito, nosso posicionamento
é pela não recepção da norma que faz indevida exigência para a concessão do
registro do CONDUTAX (Cadastro de
Condutores do Sistema de Transporte
Público Municipal), qual seja, a inexistência de condenação pretérita por crime
doloso como condição à inscrição, ainda que extinta a pena.
Isto porque, referido dispositivo legal contraria, não só a
alínea “b”, do inciso XLVII, do art. 5º da Constituição Federal, que é expresso
no sentido da inexistência de penas de caráter perpétuo, o art. 170, da
Constituição Federal, que consagra o princípio da livre iniciativa, mas também,
o princípio da razoabilidade, na medida em que foge à razoabilidade tal
exigência, eis que se trata de uma simples inscrição em cadastro municipal.
Nesses termos, nosso parecer é pela não suscitação do
incidente, com o prosseguimento do julgamento. De toda forma, quanto ao mérito
da questão, nosso posicionamento é pela não recepção do no art. 9º, §1º, “a”, da
Lei Municipal n. 7.329/69, do Município de São Paulo.
São
Paulo, 29 de março de 2010.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos –
vlcb