Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 990.10.117815-0

Órgão Especial

Suscitante: 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Agravante: Municipalidade de Piracicaba

Agravados: (...) e outros

Objeto: § 3º do art. 1º da Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba

 

 

Ementa:

1)     Incidente de inconstitucionalidade. § 3º do art. 1º da Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba. Regulamentação do pagamento de precatórios de pequeno valor.

2)     Dispositivo legal que, ao tratar do pagamento de requisições de pequeno valor, deles exclui os créditos de pequeno valor que tenham natureza alimentar.

3)     Inconstitucionalidade. Pagamento de débito de pequeno valor. Dispensa de precatório. Ausência de distinção, no regime constitucional, no que toca às dívidas de pequeno valor, quanto à natureza do crédito (alimentar ou não). Precedentes do Colendo STF.

4)     Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente, com reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo legal impugnado.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 7ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, nos termos do v. acórdão de fls. 507/514, rel. Des. Nogueira Diefenthaler, proferido nos autos do agravo de instrumento nº 994.09.251168-5, na sessão de julgamento realizada em 08.02.2010.

Ao suscitar a instauração do incidente, a C. 7ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça afirmou a inconstitucionalidade do § 3º do art. 1º da Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba, que impossibilita o reconhecimento de créditos alimentares como obrigações de pequeno valor, o que se revelaria inconstitucional.

Segue trecho do voto vencedor, para melhor delimitação do incidente:

“(...)

          Sucede que o artigo 1º, § 3º da Lei Municipal 5.235/2002 excluiu do regime das RPV as dívidas alimentares, sujeitando-as invariavelmente ao regime de precatório. Este expediente acaba por privilegiar dívidas que são também de pequeno valor, embora não alimentares.

          Ora, a perfeita compreensão da finalidade do artigo 100 e parágrafos não pode conduzir à conclusão pretendida pela Municipalidade agravante. O ‘caput’ do referido dispositivo dispõe que ‘à exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios’; a ressalva contida no início do dispositivo, conforme assentou a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, não implica exclusão dos créditos alimentares do regime de precatório, mas sim em considerar esta característica como geratriz de uma ordem privilegiada, visando pagamento mais célere.

          Ora, considerando estes aspectos, o fato do crédito ostentar natureza alimentar não poderia culminar em prejuízo aos credores, quando a própria Constituição dispensa tratamento especial a estas importâncias. Logo, se a obrigação é, a um só tempo, alimentar e de pequeno valor, deve o Administrador ordená-la de modo a que o pagamento seja mais célere, ou seja, mediante a não expedição de precatório e com preferência sobre as demais, não alimentares. Só assim observar-se-á o ‘topos’ normativo que justificará a infirmação da disciplina legal nos casos aos quais presentemente aplicamos.

          Forçoso considerar, portanto, a inconstitucionalidade do artigo 1º, § 3º da Lei Municipal 5.235/2002 (fls. 302/303), em razão da aparente afronta aos artigos 100 e §§ da Constituição Federal.

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e acolhido.

A Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba, conforme respectiva ementa, “Dispõe sobre os débitos oriundos de sentenças judiciais de pequeno valor, em face do disposto na Emenda Constitucional nº 37, e dá outras providências”.

Ao disciplinar o pagamento das requisições de pequeno valor, o art. 1º, e o respectivo § 3º assim dispuseram:

“(...)

Art. 1º - Serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, os créditos decorrentes de sentença judicial transitada em julgado, cujos valores não forem superiores a 30 (trinta) salários mínimos na data em que for homologada a conta de liquidação, conforme disposto pelo § 3º do artigo 100, da Constituição Federal, alterado pela Emenda Constitucional nº 37.

(...)

§ 3º - O disposto neste artigo não se aplica aos créditos de natureza alimentícia.

(...)”

Pela disciplina legal, tem-se nitidamente a seguinte situação: (a) os créditos definidos em lei como de pequeno valor são dispensados da expedição de precatório, sendo pagos diretamente pela Municipalidade; (b) os créditos alimentares, mesmo que de pequeno valor, somente serão pagos, em Piracicaba, mediante expedição de precatório, para formação de ordem própria inerente aos créditos alimentares.

Como bem anotado no v. acórdão no qual o incidente foi suscitado, trata-se de interpretação, com a devida vênia, equivocada da disciplina constitucional atinente ao pagamento dos créditos de pequeno valor.

O correto entendimento que deve ser dispensado à matéria é no sentido de que: (a) os precatórios em matéria alimentar formam ordem distinta dos demais; (b) as dívidas de pequeno valor, sejam elas alimentares ou não, devem ser pagas diretamente, sem a necessidade de expedição de precatório.

Entendimento diverso, como aquele consubstanciado por força do teor do § 3º do art. 1º da Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba, leva a um resultado logicamente incompatível com a prioridade que naturalmente é concedida, pelo sistema constitucional, aos créditos alimentares de pequeno valor, fazendo com que antes deles sejam quitados os que são de pequeno valor, mas não ostentam natureza alimentar.

Averbe-se, ademais, que essa absoluta prioridade dos débitos alimentares, acabou sendo expressamente reconhecida na nova redação do § 1º do art. 100 da CR/88, por força da EC nº 62/2009, que ao conceituá-los, assenta expressamente que “serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo”, que se refere aos créditos de pessoas maiores de sessenta anos de idade, ou portadores de doença grave.

Nesse sentido, sem fazer qualquer distinção sobre a natureza da dívida de pequeno valor – se alimentar ou não – vem decidindo o Colendo STF:

“(...)

Na ADI 1.662, o STF tratou, especificamente, dos precatórios que têm o seu regime jurídico traçado pelo § 2º do art. 100 da Constituição. Dispositivo que não cuida das obrigações de pequeno valor, porquanto, nesses casos, o pagamento das dívidas judiciais do Poder Público é realizado à margem do precatório. (Rcl 3.270, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 13-12-06, DJ de 22-6-07)

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. DÉBITO DE NATUREZA ALIMENTAR. REQUISIÇÃO PARA PAGAMENTO DE OBRIGAÇÃO DE PEQUENO VALOR. ALEGADO DESRESPEITO AO DECIDIDO NA ADI 1662. No julgamento da referida ação direta de inconstitucionalidade, este Supremo Tribunal Federal tratou, especificamente, dos precatórios e dos pedidos de seqüestro que têm o seu regime jurídico previsto no § 2º do art. 100 da Constituição Federal de 1988. Dispositivo constitucional que não dispõe sobre as obrigações definidas em lei como de pequeno valor, cujo cumprimento se processa à margem do precatório. Reclamação julgada improcedente. (Rcl 3396/SP, rel. Min. Carlos Britto, Julgamento 13/12/2006, DJ 16-03-2007, g.n.)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR EM RECLAMAÇÃO. CRÉDITO ALIMENTAR DE PEQUENO VALOR. LITISCONSÓRCIO. MERA PARTICULARIZAÇÃO DO DÉBITO. INEXISTÊNCIA DE FRACIONAMENTO. ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO À ADI 1.662/SP E À ADI-MC 3.057/RN. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE MATERIAL ENTRE OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO RECLAMADA E OS PARADIGMAS INVOCADOS. RECLAMAÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I - Crédito de pequeno valor originado de dívida alimentar. II - Decisão que deferiu ordem de seqüestro de verbas públicas, fundamentada no art. 100, § 3º, da CF. Possibilidade. III - Ausência de afronta ao que decidido na ADI 1.662/SP e na ADI-MC 3.057/RN. Precedentes. IV - Reclamação julgada improcedente, recurso de agravo prejudicado. (Rcl 3811 MC-AgR/SC, rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 26/06/2008, g.n.)

(...)”

Como se vê, mormente considerando o teor dos julgados do Colendo STF com relação ao tema, torna-se patente a inconstitucionalidade do dispositivo glosado pela Colenda 7ª Câmara no presente incidente.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade § 3º do art. 1º da Lei Municipal nº 5.235, de 20 de dezembro de 2002, de Piracicaba.

São Paulo, 29 de março de 2010.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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