Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.159020-4

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo

Objeto: art. 305 da Lei nº 9.503/97

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 8ª. Câmara de Direito Criminal do TJSP do art. 305 da Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro. Confrontação com o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal (garantia contra a auto-incriminação). Garantia essencialmente processual, que não inibe a possibilidade de se incriminar a fuga do local do acidente. Distinção entre o dever de colaborar com a justiça e o direito ao silêncio. Parecer pela constitucionalidade do dispositivo questionado.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 8ª Câmara de Direito Criminal, nos autos do pedido de Habeas Corpus impetrado pelos advogados Dr. (...) e outros, em que figura como paciente (...).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 305 da Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

A questão a ser submetida ao C. Órgão Especial diz respeito ao art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que define como crime o ato de “afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”.

O Órgão suscitante propôs a confrontação desse dispositivo com o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal (“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”), supondo ser ele incompatível com a garantia contra a auto-incriminação.

Para a C. Câmara Criminal, o condutor do veículo envolvido em acidente tem o dever moral de permanecer no local, mas, se não o fizer, não poderá ser responsabilizado criminalmente, com risco à sua liberdade.

De fato, parte da doutrina tem colocado em dúvida a constitucionalidade do tipo penal em estudo, vislumbrando sua contradição com o art. 5º, LXIII, CF ou com o art. 8º, II, g, do Pacto de São José, segundo o qual ninguém tem o dever de se auto-incriminar.

O dispositivo questionado, contudo, segue “a trilha da maioria das legislações, definindo o ‘crime de fuga’, forçando o motorista a permanecer no local do acidente de trânsito, com isso não dificultando a apuração da responsabilidade penal e civil” (Damásio E. de Jesus, Crimes de trânsito, 7ª. ed., rev. e atual., São Paulo, Saraiva, p. 147).

Atento a essa realidade, pensamos que o tipo penal não conflita com o parâmetro constitucional invocado, que não tem o alcance que lhe empresta o Órgão fracionário.

Com efeito, o art. 5º, LXIII, CF consagra o direito de permanecer calado, inovação da Carta de 1988, segundo o qual “ninguém pode ser obrigado a dar qualquer possibilidade de se lhe arrancar, pela habilidade técnica, palavras que possam ser utilizadas contra sua defesa e, pois, em favor de sua condenação; e, por outra, ninguém pode ser obrigado a exprimir-se, a falar, quando não quer ou não lhe convenha. E seu silêncio não pode ser tido como consentimento. Aliás, em matéria jurídica em hipótese alguma vale a parêmia ‘quem cala, consente’. Uma interpretação desse jaez, agora, está constitucionalmente afastada. A norma é de permanência, o que dá direito ao preso de ficar sempre calado, inclusive diante do juiz” (José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 4ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 159).

Cuida-se, à evidência, de garantia essencialmente processual, que não inibe a possibilidade de se incriminar a fuga do local do acidente, conduta altamente reprovável e que, pelas suas consequências, pode, por opção do legislador, ensejar a resposta penal.

Tem-se dito, em favor da tese da inconstitucionalidade, que a responsabilidade civil ou criminal do indivíduo que causa um acidente de trânsito não depende de sua permanência no local da ocorrência. Desse modo, a finalidade da norma incriminadora seria alcançável pela aplicação das leis civis e penal, tornando despicienda a tutela penal.

O argumento é interessante, mas serve à tese oposta, precisamente porque evidencia a distinção entre os institutos.

Quando o art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro impõe ao condutor o dever de permanecer no local do acidente, não o obriga a fazer prova contra si. Na verdade, o dever de não se afastar do local do acidente existe para os condutores envolvidos, independente da culpa que possam ter pelo fato. Em consequência, a atitude do condutor – de permanecer no local ou fugir – não induz presunção alguma de sua responsabilidade, civil ou criminal, realçando a idéia de que a colaboração com a justiça e a auto-incriminação não são faces da mesma moeda.

O STF tem afirmado que o exercício do direito de permanecer em silêncio é prerrogativa fundamental e a compreende com o seguinte contorno:

“O direito ao silêncio - enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) - impede, quando    concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado" (HC no 79.812-SP,    Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.02.2001)

Não passa despercebido à Corte, porém, que essa garantia “tem sido objeto de críticas da sociedade e dos meios de comunicação, no sentido de se conferir um bill of indemnity”, advertindo-nos sobre o equívoco de se “atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das normas meramente programáticas” (HC 92.225 – DF, Decisão monocrática, j. 14/8/2007). No campo dos direitos fundamentais, cabe ao interprete identificar precisamente os contornos e limites de cada direito.

Com essas premissas, o STF concedeu, nos autos do HC já referido, salvo-conduto a investigado por CPIs para garantir ao paciente “o tratamento próprio à condição de acusado ou investigado, assegurando-se-lhe o direito de: i) não assinar termo de compromisso na qualidade de testemunha; e ii) sobre os assuntos que não haja dever legal de sigilo, permanecer calado, em seu depoimento perante a CPI, sem que, por esse motivo específico, seja preso ou ameaçado de prisão”. Essa Decisão, contudo, trouxe expressa ressalva, que, para nós, constitui a chave para o deslinde da questão: “com relação aos fatos que não impliquem auto-incriminação, persiste a obrigação de o depoente prestar informações”.

É lícito entender que o dever de permanecer no local do acidente corresponde ao dever de comparecer perante uma CPI, à Polícia ou em Juízo. Honra-se, com isso, a dignidade e a administração da justiça, sem tisnar a garantia constitucional do direito ao silêncio, cujos contornos são mais restritos.

Nesses termos, não se divisa a incompatibilidade entre o tipo incriminador e o art. 5º, LXIII, CF.

Diante do exposto, o parecer é pela constitucionalidade do dispositivo questionado.

São Paulo, 20 de abril de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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