Incidente de Inconstitucionalidade

Autos n. 990.10.221292-0

Suscitante: Décima Quarta Câmara de Direito Público

Objeto da impugnação: Lei Complementar Municipal n. 06/90 do Município de Diadema

 

 

 

Ementa: 1) Lei Complementar Municipal n. 06/90 do Município de Diadema, que institui a cobrança da Taxa de gerenciamento, controle operacional e fiscalização do sistema público municipal de transporte coletivo; 2) Inconstitucionalidade material; 3) Violação ao art. 145, II, e § 2.º, da Constituição Federal, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Estadual; afronta direta ao art. 160, II e seu §2º, da Constituição Paulista; 4) Parecer pela decretação da inconstitucionalidade.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Colendo Órgão Especial

 

 

Trata-se de Acórdão proferido pela Colenda Décima Quarta Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 190.577.5/3-00, que determinou a remessa dos autos, para distribuição, ao Excelso Órgão Especial.

Ocorre que em atenção aos embargos de declaração o Acórdão suspendeu o julgamento e, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal, determinou a remessa dos autos para serem distribuídos perante o Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça, ao vislumbrar a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 06/90, de Diadema.

É o breve relatório.

A lei impugnada ressente-se, de fato, de incontornável inconstitucionalidade.

Ocorre que há flagrante violação ao disposto no artigo 160, inciso II, e seu § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo, que incorpora, expressamente, princípios constitucionais tributários limitadores da autonomia das entidades políticas, consagrados no artigo 145, inciso II, e seu § 2º, da Carta Magna, de atendimento obrigatório pelos Municípios, por força do artigo 144, da Constituição Paulista.

Assim dispõe a norma constitucional estadual violada:

“Art. 160. Compete ao Estado instituir:

(...)

II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

§ 2º. As taxas não poderão ter base de cálculo própria dos impostos.”

A lei impugnada é inconstitucional porque institui taxa cujo fato gerador é serviço público geral e indivisível e ainda contém base de cálculo própria dos impostos.

Ora, ao eleger como base de cálculo "o valor da tarifa por passageiro transportado", o legislador afastou-se do permissivo constitucional e enveredou pela proibição contida no art.145, §2º da Constituição Federal, repetida no art.160,§2º da Constituição Estadual, já que repete a mesma base de cálculo do ISSQN que prevê que "a base de cálculo do imposto é o preço do serviço".

Quanto a isto, veja-s que:

"STF - 'O Tribunal declarou incidentalmente a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 6.989/66, do Município de São Paulo, que prevêem a cobrança de taxa pelos serviços de conservação e limpeza de ruas, ao fundamento de que a referida taxa, por possuir base de cálculo própria de imposto, ofende o art. 145, §2º, da CF, e pelo fato de não serem divisíveis os serviços públicos que ela visa custear, o que ofende o inciso II do art. 145 da CF (Lei 6.989/66, arts. 86,I, II, III; 87, I e II; 91; 93, I e II e 94)' "   apud  Constituição do Brasil Interpretada, por Alexandre de Moraes, Ed. Atlas, 2002, pág. 1669

Convém, ainda, salientar ser incontroverso que, já no que tange à indivisibilidade do serviço que se quer tributar, pela Constituição Federal, os Municípios integram a Federação e têm garantida sua autonomia, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (art. 29, CR). E essa autonomia é revelada pela competência dos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência, dentre outras (art. 30, CR).

Entretanto, a competência tributária dos Municípios – consubstanciada na capacidade de instituir tributos – encontra limite nas normas da Constituição Federal referentes ao Sistema Tributário Nacional (art. 145 e seguintes, CR), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais a regra matriz dos tributos (impostos, taxas e contribuições de melhoria).

Mesmo reconhecendo que a Constituição da República não criou tributos, é certo que, além de discriminar competências, ela traça a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser criados pelos entes federativos. Em outras palavras, a Constituição da República, no art. 145, ao conferir às pessoas políticas competência para que instituam impostos, taxas e contribuições de melhoria, classifica juridicamente os tributos, traçando o modelo de cada  um  deles  e  vinculando o legislador ordinário.

Sobre isso, ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA que:

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 4º ed., pág. 257).

E o artigo 145, II, da Constituição Federal, que traça a regra matriz das taxas - regra que é repetida no artigo 160, II, da Constituição do Estado de São Paulo -, dispõe que:

“Art. 145 - A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios poderão instituir os seguintes tributos:

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestado ao contribuinte ou postos a sua disposição”

Como se vê, a regra matriz constitucional das taxas fixa como hipótese de incidência desse tributo uma atuação estatal (poder de polícia ou serviço público específico e divisível) direta e imediatamente referida ao obrigado (cf. GERALDO ATALIBA, em “Hipótese de Incidência Tributária”, 2º ed., pág. 164).

E as taxas de serviço, por definição constitucional, são aquelas cobradas pelo Poder Público, “pela utilização, efetiva ou potencial de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.” Já serviço público, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público” (em Curso de Direito Administrativo”, 7º ed., pág. 399).

Entrementes, não é qualquer serviço público que possibilita a tributação por via de taxa, mas apenas o serviço público específico e divisível, em contraste com o serviço público geral e indivisível, este passível de tributação apenas pela via do imposto. É o que ensina o já citado ROQUE ANTONIO CARRAZZA, nos seguintes termos:

“Os serviços públicos gerais, ditos também universais, são os prestados “uti universi”, isto é, indistintamente a todos os cidadãos. Eles alcançam a comunidade, como um todo considerada, beneficiando número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas. É o caso dos serviços de iluminação pública, de segurança pública, de diplomacia, de defesa externa do País, etc. Todos eles não podem ser custeados, no Brasil, por meio de taxas, mas, sim, das receitas gerais do Estado, representadas basicamente pelos impostos. Já os serviços públicos específicos, também chamados de singulares, são os prestados “uti singuli”. Referem-se a uma pessoa ou a um número determinado (ou, pelo menos, determinável) de pessoas. São de utilização individual e mensurável. Gozam, portanto, de divisibilidade, é de dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes, sim, podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (em “Curso de Direito Constitucional Tributário”, 12.º ed., pág. 448).

De fato, essa categoria jurídica, tanto no Brasil  como  no  exterior, sempre foi “uma técnica fiscal de repartição da despesa com um serviço público especial e mensurável pelo grupo restrito de pessoas que se aproveitam de tal serviço, ou o provocaram ou o têm ao seu dispor” (cf. ALIOMAR  BALEEIRO, em “Direito Tributário Brasileiro”, 10ª ed., 1985, Forense, p.328). Exatamente por isso, EDWIN SELIGMAN enfatiza: “A característica essencial da taxa é a existência de um benefício especial mensurável, ao mesmo tempo que um interesse público predominante; a ausência de interesse público faz do pagamento um preço e a ausência do benefício especial faz dele um imposto” (em “Essays in Taxation”, 1931, p. 431, “apud” BILAC PINTO, “Estudos de Direito Público”, ed. Forense, 1953, p.162).

Diante disso, inegável que o Município de Diadema extrapolou os limites e parâmetros constitucionais ao instituir a Taxa de gerenciamento, controle operacional e fiscalização do sistema público de transporte coletivo impugnada, cujo fato gerador é serviço público geral e indivisível, que beneficia um número indeterminado (ou, pelo menos, indeterminável) de pessoas, serviços que não oferecem “benefício especial” aos contribuintes 'eleitos' pela lei.

Ademais, não basta que a lei instituidora de uma taxa afirme que esta se destina a custear um serviço prestado ao contribuinte ou fruível por este: também é indispensável que o benefício possa ser quantificado em relação a cada contribuinte. Nesse sentido, já decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que “o benefício especial objetivo, mensurável é condição essencial para que o tributo seja conceituado como taxa”  (STF, RE 72.374-ES, RDA, 110-212, rel. Ministro Luiz Gallotti).

Por fim, como restou consignado no V. Acórdão proferido pela Colenda Décima Quinta Câmara de Direito Público, o STF, de fato, tem proclamado a inconstitucionalidade da taxa questionada na presente ação:

TRIBUTÁRIO. TAXA DE CONSERVAÇÃO E SERVIÇOS DE ESTRADAS DE RODAGEM. ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º e 6.º DA LEI N.º 3.133/89, DO MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA/SP. INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 145, II, e § 2.º, DA CARTA MAGNA. Não se tratando de serviço público específico e divisível, referido apenas aos contribuintes lindeiros que utilizam efetiva ou potencialmente as estradas, não pode ser remunerado por meio de taxa, cuja base de cálculo, ademais, identifica-se com a de imposto, incidindo em flagrante inconstitucionalidade, conforme precedentes da Corte. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 3.133, de 27/06/89, do Município de Araçatuba/SP (RExt n. 259.889/SP, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento:  07/03/2002, Tribunal Pleno, DJ de 19-04-2002, p. 62).

Em tais circunstâncias, o parecer é no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei n. 06/90, do Município de Diadema.

São Paulo, 26 de maio de 2010.

 

 

 

 

       Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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