Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.224577-2

Suscitante: 13ª. Câmara de Direito Criminal “B” do Tribunal de Justiça

Objeto: art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 13ª. Câmara de Direito Criminal “B” do Tribunal de Justiça, do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Pretensa ofensa ao princípio da igualdade (art. 5, CF), sob a alegação de não ser possível punir diferentemente um homicídio culposo pelo fato de ter sido praticado com veículo automotor. Precedentes do STF e STJ que reconhecem a constitucionalidade do dispositivo, assentados no entendimento de que a isonomia não impede tratamento penal diferenciado se houver um discrímen razoável, como ocorre nos crimes de trânsito. Parecer pela constitucionalidade do dispositivo questionado.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 13ª Câmara Criminal “B” do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos Embargos de Declaração interpostos pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), porque se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 302 da Lei n. 9.503/07 – Código de Trânsito Brasileiro.

É que, de acordo com o entendimento da C. Câmara Criminal, diante do princípio da igualdade (art. 5º da Constituição Federal), não é possível punir diferentemente um homicídio culposo pelo fato de ter sido praticado com veículo automotor:

... não pode a lei distinguir, onde não há distinção de fato, até porque o agente não quis o resultado morte e, por isso, não escolheu voluntariamente o meio para a prática do crime. Por não ter escolhido o meio para a prática do crime, não pode o agente ter sua conduta qualificada pela lei.

Enfim, em qualquer situação, no crime culposo, qualquer que seja o meio empregado, há apenas a violação a um dever de cuidado.

(...)

Pela mesma violação, não pode haver penas diferentes. Entende-se, pois, que o art. 302, caput, da Lei n. 9.503/97, assim como o parágrafo único do mesmo artigo, afronta o artigo 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil”

Este é resumo dos autos.

Apreciando a apelação interposta pelo réu (...), o Órgão fracionário acabou concluindo o julgamento, reconhecendo, efetivamente, a inconstitucionalidade do art. 302 da Lei n. 9.503/97.

Com o acolhimento dos Embargos de Declaração e vislumbrando os efeitos infringentes do último pronunciamento do Órgão fracionário, abre-se ao C. Órgão Especial a possibilidade de apreciar questão ainda não decidida nem por este, nem pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Não se depara, aqui, com o óbice do parágrafo único do art. 481 do Código de Processo Civil.

Nesses moldes e, em atenção ao princípio da instrumentalidade do processo, tem-se que a arguição pode ser conhecida, sendo ela, contudo, improcedente.

A Câmara Criminal cogitou de que o art. 302 da Lei n. 9.503/97 é inconstitucional, por ofensa ao princípio da isonomia, insurgindo-se contra o apenamento mais severo do homicídio culposo ocorrido na direção de veículo automotor em relação aos demais homicídios culposos enquadráveis no Código Penal.

Essa situação, contudo, não contraria a Carta Política.

Com efeito, o Código de Trânsito Brasileiro, Lei n. 9.503, de 23/9/1997, definiu, em seu capítulo XIX, os crimes de trânsito, ou seja, aqueles cometidos na direção do veículo automotor. A pena do homicídio culposo passou a ser de dois a quatro anos de detenção.

Com a entrada em vigor da nova lei, ocorre a revogação da lei anterior que regulava a matéria. Desse modo, a partir da vigência do CTB, não mais se aplica o art. 121, § 3º do Código Penal para os casos de homicídio culposos praticados no trânsito.

Sabe-se que a Lei n. 9.503/07 foi editada para contribuir com a redução dos acidentes de trânsito. Era preciso estabelecer regras específicas e mais rígidas para o trânsito, pois a legislação existente havia se mostrado insuficiente para disciplinar nossos motoristas, sabidamente imprudentes e negligentes.

Sendo o Código de Trânsito Brasileiro norma especial, ele derroga norma geral. E a punição mais intensa dos crimes da espécie é plenamente justificável pela necessidade de se inibir efetivamente as condutas perigosas do trânsito.

Assim, em hipóteses como a dos autos, é a lei especial que deve ser aplicada, atendendo-se ao princípio da especialidade.

O Supremo Tribunal Federal vem, em reiteradas oportunidades, afirmando a constitucionalidade do art. 302 do CTB.

A Corte Constitucional manifesta o seguinte entendimento sobre a matéria:

“DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. HOMICÍDIO CULPOSO. DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI 9.503/97. IMPROVIMENTO. 1. A questão central, objeto do recurso extraordinário interposto, cinge-se à constitucionalidade (ou não) do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), eis que passou a ser dado tratamento mais rigoroso às hipóteses de homicídio culposo causado em acidente de veículo. 2. É inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas - conforme dados estatísticos que demonstram os alarmantes números de acidentes fatais ou graves nas vias públicas e rodovias públicas - impondo-se aos motoristas maior cuidado na atividade. 3. O princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações quando houver elemento de discrímen razoável, o que efetivamente ocorre no tema em questão. A maior freqüência de acidentes de trânsito, com vítimas fatais, ensejou a aprovação do projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97. 4. A majoração das margens penais - comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3º, do Código Penal - demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira envolvendo os homicídios culposos provocados por indivíduos na direção de veículo automotor. 5. Recurso extraordinário conhecido e improvido” (RE 428.864, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 14.11.2008 – grifos nossos).

No mesmo sentido está a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

‘RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III, DA LEI Nº 9.503/97. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. INOCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE (ART. 12, DO CP). (...)

1. O fato de o ora recorrente ter sido denunciado como incurso nas penas do art. 302 do Código Nacional de Trânsito (Lei nº 9.503/97), ao invés do art. 121, § 3º do Código Penal, não constitui qualquer inconstitucionalidade, vez que o princípio da especialidade (art. 12, do CP) permite a aplicação da legislação especial em detrimento das normas contidas no CP’ (STJ - RHC 14456/SC. Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. T5 - Quinta Turma. DJU 17.05.2004, p. 241).

Na esteira dos precedentes indicados, opino pela constitucionalidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

 

São Paulo, 2 de junho de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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