Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.274211-3

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Urbanístico. Incidente de inconstitucionalidade. Art. 3º, MProv. 2.200/01. Concessão de uso especial para fins de moradia. Bens públicos estaduais e municipais. Inconstitucionalidade reconhecida. 1. Não inspira o controle de constitucionalidade no sistema concentrado, quer o difuso, exigem o contraste entre lei ou ato normativo e norma constitucional, resultando inadmissível o exame de eventual confronto entre a MProv 2.200/01 e a LC101/00. 2. A previsão genérica e uniforme de institutos jurídico-urbanísticos para regularização fundiária se inclui na competência normativa da União, adstrita a normas gerais (art. 24, I, § 1º, CF). 3. A MProv 2.200/01 extrapolou esse âmbito ao tratar no art. 3º, de modo obrigatório, da concessão de uso especial para fins de moradia incidente sobre imóveis públicos dos Estados e dos Municípios, pois, regulou a utilização privativa de bens estaduais e municipais, matéria da alçada dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendida na sua autonomia (art. 18, CF). 4. Se diante da partilha de competências a União pode editar normas gerais, não lhe é dado obrigar Estados e Municípios à outorga de concessão de seus bens, cuja administração é exclusiva, suprimindo a liberdade de escolha dos institutos jurídicos de uso privativo de bem público. 5. Inconstitucionalidade das expressões “dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” constantes do art. 3º da MProv 2.200/01.    

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                 No exame de apelação (fls. 147/157), recebida (fl. 160) e respondida (fls. 162/164), contra a respeitável sentença que julgou improcedente pretensão de concessão de uso especial para fins de moradia de imóvel pertencente à autarquia estadual (fls. 131/137), a colenda 8ª Câmara da Seção de Direito Público suscitou incidente de inconstitucionalidade em venerando acórdão (fls. 183/189) que está assim ementado:

“CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA – Estatuto da Cidade – Pretensão voltada ao reconhecimento do direito de concessão de uso especial de imóvel de propriedade do DER para fins de moradia – Improcedência da demanda pronunciada em primeiro grau, ante o reconhecimento da inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 2.200/01 – Vislumbrada a possibilidade do reconhecimento de inconstitucionalidade declarada pelo Juízo a quo – Exigência, entretanto, da instauração do incidente de argüição de inconstitucionalidade, nos termos do art. 97 da Constituição Federal, 481, do CPC e do enunciado da Súmula Vinculante n° 10 – Determinação de remessa dos autos para o Órgão Especial deste Eg. Tribunal de Justiça” (fl. 184). 

2.                 É o relatório.

3.                 O venerando acórdão, com lastro no art. 24, I, da Constituição Federal, estimou que:

“(...) não pode a União dispor sobre a utilização de bens públicos que estejam afetos a outros entes federados, tais como Estados e Municípios, mas apenas estabelecer as normas gerais a respeito da matéria, somente lhe sendo possível dispor sobre a concessão de uso em relação aos seus próprios bens, eis que cada ente federativo tem competência privativa para legislar sobre seus bens.

(...)

Por conseguinte, emerge clara a possível inconstitucionalidade do art. 3º, da Medida Provisória n. 2.200/01 ao garantir o exercício do direito aos ocupantes de imóveis públicos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, eis que a União assim não poderia fazê-lo.” (fls. 186/188).

4.                 Além disso, reputou que o preceito normativo feriu o princípio da legalidade na medida em que ordenou a concessão de uso especial para fins de moradia afetando gravemente a situação financeira de Estados e Municípios, “diante da necessidade de disposição de elevados recursos públicos a fim de dispor outra área aos invasores de imóveis públicos (...) em clara violação à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/00) em razão do desequilíbrio orçamentário imposto pela União” (fl. 188). E assim concluiu:

“Sendo a Lei de Responsabilidade Fiscal uma lei complementar, à evidência que a estipulação do § 3º, da Medida Provisória, a qual tem a mesma categoria de lei ordinária federal, não poderia impor um ônus aos demais entes federados sem a observância do equilíbrio orçamentário que deve ser por eles mantido, em conformidade com o que determina a Lei Complementar n. 101/00” (fl. 189).

5.                 Permissa venia, esse segundo fundamento não inspira o controle de constitucionalidade porque, quer o sistema concentrado, quer o difuso, exigem o contraste entre lei ou ato normativo e norma constitucional.

6.                 Destarte, inadmissível o exame de eventual confronto entre a Medida Provisória n. 2.200/01 e a Lei Complementar n. 101/00 neste incidente.

7.                 A Medida Provisória n. 2.200, de 04 de setembro de 2001, instituiu concessão de uso especial para fins de moradia àquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público urbano, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, e desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano e rural (art. 1º), para além de idêntica concessão coletiva (art. 2º).

8.                 O foco do presente incidente é o art. 3º da mencionada medida provisória que assim dispõe:

“Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1º e 2º também aos ocupantes, regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até 250 m2, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento”.

9.                 Há uma diferença sutil entre os arts. 1º e 2º e o art. 3º da Medida Provisória n. 2.200/01 porque este último preceito, expressamente aplicável ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios, confere direito subjetivo à concessão de uso especial (individual ou coletiva) para fins de moradia à posse (ocupação) consentida de imóveis públicos.

10.               É bem verdade que não se trata da atribuição de domínio, senão do reconhecimento de posse-moradia para fins de concessão de uso assim qualificada especial, tal como prevista no art. 4º, V, h, da Lei n. 10.257/01 (Estatuto da Cidade).

11.               A Constituição Federal inscreve o direito urbanístico na competência normativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, I), sendo certo que, a esse título, a competência federal “limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (art. 24, § 1º).

12.               A previsão genérica e uniforme de institutos jurídico-urbanísticos para regularização fundiária decerto se inclui na competência normativa da União, adstrita a normas gerais. Porém, a Medida Provisória n. 2.200/01 extrapolou esse âmbito ao tratar no art. 3º, de modo obrigatório, da concessão de uso especial para fins de moradia incidente sobre imóveis públicos dos Estados e dos Municípios, pois, para além, regulou a utilização privativa de bens estaduais e municipais, matéria que é da alçada dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendida na expressão de sua autonomia (art. 18, Constituição Federal).

13.               No ponto, partilho da opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, transcrita no venerando acórdão (fl. 187):

“Não lhe cabe, em conseqüência, impor aos Estados e Municípios a outorga de título de concessão de uso, transformando-a em direito subjetivo do possuidor de imóveis públicos estaduais ou municipais. Se a norma constitucional fala em título de domínio e concessão de uso é porque deixou a decisão à apreciação discricionária do Poder Público titular do bem. A União pode, validamente, impor a concessão de uso, como decisão vinculada, em relação aos bens que integrem seu patrimônio, mas não pode fazê-lo em relação aos bens públicos estaduais e municipais” [Concessão de uso especial para fins de moradia in Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001), São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª. ed., pp. 159-161, coordenação de Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz].

14.               Ora, se diante da partilha de competências a União pode editar normas gerais, não lhe é dado obrigar Estados e Municípios à outorga de concessão de seus bens, cuja administração é exclusiva, suprimindo a liberdade de escolha dos institutos jurídicos de uso privativo de bem público.   

15.               Face ao exposto, opino pela declaração de inconstitucionalidade das expressões “dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” constantes do art. 3º da Medida Provisória n. 2.200/01.

 

São Paulo, 11 de agosto de 2010.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

wpmj