Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.285781-6

Suscitante: 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: Lei nº 11.487/07 (MP nº 340/06) 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Lei nº 11.487/07, que decorre da Medida Provisória nº 340/06. Alegação do Órgão fracionário de que a MP foi editada para “o fim de beneficiar os interesses das seguradoras conveniadas ao seguro obrigatório DPVAT, o que evidencia flagrante desvio de finalidade e abuso do poder de legislar”, abrindo-se, então, a possibilidade de se reconhecer a inconstitucionalidade do ato normativo, por ofensa ao art. 62 da Constituição Federal. Excepcionalidade da censura sobre os requisitos da relevância e da urgência das MPs, a não ser diante do inequívoco desvio de finalidade ou abuso no poder de legislar, hipóteses que não se mostram evidentes no caso em estudo. Existência, à época, de discussão acerca da recepção pela Constituição Federal de 1988 do art. 3º da Lei nº 6.194/74, alterado pela norma questionada. Parecer pela rejeição da arguição.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos de Apelação Cível nº 992.09.033790-4, em que figuram como partes (...) e outros (apelantes) e MARÍTIMA SEGUROS S/A (apelado).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), porque se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, da Lei nº 11.487/07, que decorre da Medida Provisória nº 340/06.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

O v. Acórdão explica que a Medida Provisória nº 340/06, convertida na Lei nº 11.482/07, alterou a indenização do seguro DPVAT para, entre outras coisas, determinar que o valor da indenização para os casos de morte e invalidez, que correspondia a 40 salários-mínimos, fosse estabelecido em R$ 13.500,00.

Essa alteração – que resultou na redução do valor da indenização para referidos eventos – foi feita, segundo o Órgão fracionário, para “o fim de beneficiar os interesses das seguradoras conveniadas ao seguro obrigatório DPVAT, o que evidencia flagrante desvio de finalidade e abuso do poder de legislar”, abrindo-se, então, a possibilidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Medida Provisória convertida em lei, por ofensa ao art. 62 da Constituição Federal.

Falando sobre o controle de constitucionalidade das medidas provisórias, Alexandre de Moraes afirma ser ele possível, “tanto em relação à disciplina dada a matéria tratada pela mesma, quanto em relação aos próprios limites materiais e aos requisitos de relevância e urgência” (Direito constitucional, 23ª. ed., São Paulo, Atlas, 2008, p. 677).

Explica, entretanto, que, desde a constituição anterior – em relação aos Decretos-lei – o STF inadmite a censura sobre os requisitos da relevância e da urgência, como pretende a C. Câmara, a não ser diante de inequívoco desvio de finalidade ou abuso no poder de legislar, hipótese, entretanto, que não se mostra evidente no caso em estudo.

Diz o renomado autor:

Os requisitos de relevância e urgência, em regra, somente deverão ser analisados primeiramente pelo próprio Presidente da República, no momento da edição da medida provisória, e, posteriormente, pelo Congresso Nacional, que poderá deixar de convertê-la em lei, por ausência dos pressupostos constitucionais. Excepcionalmente, porém, quando presente desvio de finalidade ou abuso de poder de legislar, por flagrante inocorrência de urgência e relevância, poderá o Poder Judiciário adentrar a esfera discricionária do Presidente da República, garantindo-se a supremacia constitucional” (idem, ibidem, p. 678).

Essa lição pode ser comprovada no seguinte julgado:

“Conforme entendimento consolidado da Corte, os requisitos constitucionais legitimadores da edição de medidas provisórias, vertidos nos conceitos jurídicos indeterminados de 'relevância' e 'urgência' (art. 62 da CF), apenas em caráter excepcional se submetem ao crivo do Poder Judiciário, por força da regra da separação de poderes (art. 2º da CF) (ADI 2.213, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23-4-2004; ADI 1.647, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 26-3-1999; ADI 1.753-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 12-6-1998; ADI 162-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19-9-1997).” (ADC 11-MC, voto do Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 28-3-2007, Plenário, DJ de 29-6-2007.)

Fincadas tais premissas, impõe-se reconhecer que, embora a Medida Provisória 340/06 tenha reduzido o valor da indenização para os casos de morte e invalidez permanente, não é possível, por esse único aspecto, enxergar o abuso do poder de legislar.

O DPVAT é um seguro de danos pessoais, destinado a indenizar vítimas de acidentes de trânsito.

A arrecadação dos consórcios do seguro DPVAT tem destinação vinculada. Dados oficiais do gestor dão conta de que, em 2009, dos R$ 5,409 bilhões arrecadados, somente R$ 1,808 bilhão, ou 33,42%, foram destinados às indenizações. A maior parte do dinheiro segue para o Fundo Nacional de Saúde. Outras frações destinam-se ao DENATRAN (para a realização de programas de prevenção de acidentes), à constituição do fundo de reserva ou são consumidas com as despesas operacionais (cf. em <http://www.dpvatseguro.com.br/conheca/informacoes.asp>. Acesso em 12 ago. 2010).

Destarte, da forma como a questão foi delimitada pelo Órgão fracionário, não é de se reconhecer o abuso do poder de legislar por um aspecto isolado da regulação do DPVAT, pois, se é certo que o valor da indenização foi reduzido, maior fração do montante arrecadado agora se reserva a outras finalidades sobre as quais recai, igualmente, a presunção de que atendem ao interesse público.

Nem se perca de vista que, à época da edição da MP questionada, havia quem sustentasse, com bons argumentos, a inaplicabilidade do art. 3º da Lei 6.194/74, gerando conflitos entre as vítimas e as seguradoras e inúmeras demandas judiciais.

É que, como o dispositivo fazia referência a salários mínimos, o Consórcio sustentava a sua inaplicabilidade. Falava-se que a norma não havia sido recepcionada pela nova ordem constitucional, ante a vedação constante da parte final do inciso IV, do art. 7º da Carta Política de 1988.

Tal era a insegurança que o Conselho Nacional de Seguros Privados desprezou a lei e editou Resolução para definir o montante das indenizações em valores fixos e desvinculados do salário mínimo.

O próprio STF ficou dividido sobre a alegada não-recepção do art. 3º da Lei nº 6.194/74, como demonstra a ementa a seguir transcrita:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. MEDIDA CAUTELAR. ARTIGO 3º DA LEI FEDERAL N. 6.194. SEGURO OBRIGATÓRIO. PRECEITO QUE DISCIPLINA OS VALORES PAGOS EM RAZÃO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE, OU POR SUA CARGA, A PESSOAS TRANSPORTADAS OU NÃO. FIXAÇÃO DOS VALORES EM SALÁRIOS MÍNIMOS. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 7º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA NÃO CARACTERIZADOS. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA. 1. O artigo 3º da Lei federal n. 6.194 vincula ao salário mínimo as indenizações pagas em decorrência de morte, invalidez permanentes e despesas de assistência médica e suplementares resultantes de acidentes causados por veículos automotores de via terrestre. 2. O Tribunal dividiu-se quanto à caracterização do fumus boni iuris e do periculum in mora: i) votos majoritários que entenderam ausentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, eis que o artigo 7º, inciso IV, da Constituição do Brasil não vedaria a utilização do salário mínimo como parâmetro quantificador de indenização e a Lei n. 6.194 teria sido inserida no ordenamento jurídico em 1.974, respectivamente; ii) votos vencidos, incluindo o do Relator, no sentido de que o fumus boni iuris estaria configurado na impossibilidade de vinculação do salário mínimo para fins remuneratórios, indenizatórios --- embora em situações excepcionais esta Corte tenha manifestado entendimento diverso --- e o periculum in mora evidenciado pela existência de inúmeras decisões judiciais que, aplicando o texto normativo impugnado, impondo às entidades seguradoras obrigações pecuniárias. 3. Medida cautelar indeferida, contra o voto do Relator, que determinava a suspensão do trâmite dos processos em curso que respeitem à aplicação do artigo 3º da Lei n. 6.194, de 19 de dezembro de 1.974, até o julgamento final do feito.

(ADPF 95 MC, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2006, DJe-013 DIVULG 10-05-2007 PUBLIC 11-05-2007 DJ 11-05-2007 PP-00047 EMENT VOL-02275-01 PP-00001)

Como se vê, a Medida Provisória, que foi editada poucos meses depois dessa Decisão, colocou o ponto final na discussão, esta sim, prejudicial à massa segurada e a toda sociedade.

Por tais motivos e com os elementos informativos constantes dos autos, não se reconhece a situação de excepcionalidade configuradora do abuso do poder de legislar, que autorizaria a declaração de inconstitucionalidade de Medida Provisória, por violação do art. 62 da Constituição Federal.

Diante do exposto, opina-se pela rejeição da arguição, reputando-se constitucional a Lei nº 11.487/07, que decorre da Medida Provisória nº 340/06.

 

São Paulo, 16 de agosto de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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